150 anos de “A Gênese”, de Allan Kardec, e o escândalo inevitável!, por Cristina Sarraf

Tempo de leitura: 7 minutos

Cristina Sarraf

A necessária divulgação dessa última e primorosa obra do Kardec, deve começar por esclarecer que, em língua portuguesa, salvo as traduções de Carlos Imbassahy e a de Albertina Sêco, todas as demais edições existentes de “A Gênese”, até agora, são traduções da 5ª edição francesa, de 1872, adulterada, deturpada e desviada dos objetivos.

Allan Kardec pôs a público “A Gênese”, em janeiro de 1868. Em fevereiro anuncia, na Revista Espírita, uma reedição, sem alteração de conteúdo. Em março, publica que está no prelo mais uma reedição, sem alteração de conteúdo, demonstrando o grande interesse e impacto positivo dessa obra, onze anos após a primeira edição de “O livro dos Espíritos”.

Ou seja, num momento em que os espíritas já tinham maturidade de conhecimento para renovarem, com os Princípios do Espiritismo, os conceitos religiosos, místicos e atemorizantes, que ainda predominavam na sociedade humana. Que ainda predominam…

Bem como já havia condição para aprofundar, ampliar e tornar mais funcional, eficiente e responsável o modo de pensar iluminado por esses Princípios, e pelo conhecimento de que o pensamento qualifica o perispírito e os fluidos do ambiente, estabelecendo saúde ou doença no corpo e vínculos espirituais, por afinidade. E também interferem na qualidade da mediunidade que se possa ter, e nas reuniões mediúnicas das que possamos participar.

Kardec deixa bem claro que o Espiritismo não estuda o Espírito e sim sua manifestação através do perispírito, estando encarnado ou desencarnado.

Curiosamente, apesar do grande interesse pelo livro, cujas edições esgotaram rapidamente, não se encontra nos meses seguintes da Revista, até a desencarnação de Kardec, um ano depois, em 31/03/1869, nenhuma citação de que outra reedição tenha sido feita. Kardec esqueceu de publicar? Alguém retirou do texto original dele?

Porque há uma 4ª edição, de 1868, inclusive traduzida para o português!

Mas… em 1872, uma 5ª e nova edição de “A Gênese”, chega às livrarias, passando-se pela 4ª! Nova mesmo!!! Suficientemente alterada a ponto de ser uma adulteração do trabalho de Kardec, criando confusão de entendimento sobre conceitos espíritas de suma importância.

A responsabilidade por essa edição é do presidente, nessa época, da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, sr. G. Leymarie.

Em 1884 Henry Sausse, biógrafo de Kardec denunciou essa adulteração.

No Brasil, a denúncia inicia com Carlos Imbassahy, que demonstra as mudanças deturpadoras, fazendo uma tradução ao pé da letra da 3ª edição francesa. Tradução essa que está disponibilizada na internet. Mas é necessário destacar que ele se enganou ao responsabilizar o tradutor, Guillon Ribeiro, pela adulteração, desconhecendo que este traduziu da 5ª edição francesa, a adulterada de 1872.

Agora, nos 150 anos dessa obra, a adulteração volta à tona, com provas contundentes, tanto nas ultra minuciosas pesquisas que temos feito com Paulo H. de Figueiredo, como no livro de Simoni P. Goidanich: “O legado de Allan Kardec”.

Há que se destacar uma tradução mais recente, feita da 4ª edição francesa, de 1868, por Albertina Escudeiro Sêco, que já está na 3ª edição esgotada, de 2010, do Centro Espírita León Denis (Celd), Rio de Janeiro, Brasil. Essa tradução apresenta foto da capa de “A Gênese”, idêntica às três primeiras relatadas por Kardec, e com a mesma diagramação e tipo de letra. Ou seja, houve em 1868 uma 4ª edição, que foi outra reimpressão da 1ª, sem alteração nenhuma! Uma cópia do original, para abastecer o mercado consumidor de obras da Codificação.

Mas, correta no conteúdo, peca por acrescentar, como fizeram outros tradutores, notas de rodapé, coisa que só Kardec poderia fazer, como fez.

Tradutores, revisores e editores, só deveriam por notas em anexo, no final do livro, por uma questão ética de respeito ao autor e sua obra.

No entanto, as notas, no livro traduzido por Albertina, são muito elucidativas e explicativas das mudanças que houve nos vários ramos da Ciência, desde o século XIX até hoje.

Porque, na verdade, é apenas isso que é preciso acrescentar, em anexo, a esse livro: explicações da evolução científica ocorrida e adequação aos conhecimentos científicos atuais. Nada mais precisa e nem jamais precisou ser mudado!

Até porque Kardec, que sempre reviu suas obras, nessa não fez qualquer modificação, mesmo tendo tempo hábil para isso!

Também, a tradução de Albertina peca por acrescentar gráficos e figuras, que ajudam, sim, no entendimento das diferenças científicas, mas deveriam estar, todas, em um anexo. Além disso, muda o título de dois capítulos, equivocando-se ao trocar Caracteres da Revelação Espírita, por fundamentos, o que altera o objetivo deste. Bem como, inadequadamente, muda medidas usadas no sec. XIX, no próprio texto de Kardec!

Mas… preserva o conteúdo original, que deveríamos conhecer desde sempre!

Supor, maldosamente, que Kardec tivesse feito o que se vê na 5ª edição, ou seja, em todas, exceto as de Imbassahy e Sêco, é entender que ele tenha deixado de ser espírita e estivesse mentalmente perturbado, misturando assuntos, inserindo frases sem nexo e outras truncagens; coisa que os artigos, estudos e reflexões dos números da “Revue Spirite”, de 1868 a abril de 1869, provam que não aconteceu. Ao contrário, ele se revela muitíssimo lúcido e firme em seus propósitos e postura. Aliás, mais que nunca!

Nesse último livro, Kardec mostra-se bem amadurecido diante do “mundo de coisas novas” que dominou sua vida após a primeira visita a uma sessão de mesas girantes, em 1855, na casa da sra. Plainemaison, em companhia de seu amigo Pâtier.

O livro “A Gênese”, no texto original, estabelece um amplo estudo dos aspectos físicos e psicológicos do que chamamos de lei de Progressão ou Evolução dos Espíritos, sempre gradativa e constante, tendo por consequência as transformações e aperfeiçoamento de tudo que é matéria, densa e fluídica, instrumentos para esse progredir.

E deixa muito claro, que depende de cada Espírito, conforme suas possibilidades, o avanço que faça, não havendo nenhum que seja privilegiado, criado com características diferentes ou que fique para trás, parado no atraso da ignorância. E também, que não depende de Deus ou de algum Espírito superior, fazer o progresso moral de quem quer que seja. Aprofundando, assim, o sentido de autonomia que o Espiritismo estabelece para todos os Espíritos, sem exceção, mostrando o quanto a heteronomia, sobretudo religiosa, limita e ilude. Mas… tudo isso só no texto original!!!

Em 1868 Kardec já sabia, aliás, desde cerca de 1862, da oposição ao seu trabalho, nascida em meios ditos espíritas, na cidade de Bordeaux, França. Ali está a fonte dos desvios de entendimento de muitos dos Princípios do Espiritismo, ocorridos de forma bem-sucedida, após a sua desencarnação; e bastante divulgados nos dias atuais.

Por exemplo, as equivocadas ideias da interferência de Deus nas nossas vidas, punindo e premiando; da reencarnação como castigo e pagamento de “pecados”, de Jesus como um ser especial, santificado, um deus que interfere na vida humana e salva as pessoas; da aceitação crédula das mensagens e comunicações de Espíritos; do endeusamento de médiuns; da confusão conceitual sobre o processo evolutivo, tirando-lhe as múltiplas nuances e pondo-o como uma linha reta, fora da qual haverá sofrimentos e punições; de Deus personalizado; do entendimento religioso, místico e temeroso de toda codificação, como sendo teológica…

Por isso, ele iniciou “A Gênese”, do modo que a escreveu, detalhando quais as características da revelação dos Princípios Básicos que especificam o Espiritismo, deixando bem claro que as informações vieram dos Espíritos; mas que sendo apenas um grupo e não todos os que existem, e nem de todas as naturezas, preferiu chamar de revelação divina, ou seja, vinda de um plano superior, do Bem.

No texto original, estragado pelas alterações, inserções, cortes e deturpação, Kardec examinou o Bem e o Mal, de forma coerente com a Psicologia espiritualista que adotou e imprimiu no Espiritismo. Esclareceu, por raciocínios que se encadeiam de forma lógica e didática, que somos, no momento observado, fruto do quanto pudemos aprender, amadurecer e nos firmarmos em conceitos retos e edificadores, ou em enganos, ilusões, orgulho e falsas interpretações das coisas da Vida.

Ele chamou de imperfeições, o que hoje podemos dizer que é pouca evolução no aspecto considerado, limpando essa palavra da falsa conotação de defeito ou “pecado”, que estragam a beleza e a grandiosidade do entendimento evolutivo dos Espíritos.

Mantendo sua postura e estilo de examinar reflexivamente cada assunto, e de só assumir um ensino quando estivesse comprovado de todas as formas, ao estudar por exemplo, no capítulo terceiro, o instinto, Kardec não chega a um conceito. Levanta hipóteses e contraposições, deixando em aberto uma conclusão final. Dá-nos, assim, mais uma demonstração de seriedade mental e ideológica, não criando teorias e nem as copiando de ninguém, nem dos Espíritos da Codificação, até que estivesse convencido do bom senso e da lógica. Exemplo para todos os espíritas!

Esse mesmo cuidado, postura e análise, são notórios nos estudos sobre os chamados milagres, encaixando-os nas possibilidades lógicas e nos conceitos espíritas sobre fluidos, mediunidade e capacidades não mediúnicas, como a clarividência. Sempre, insisto, no que deixou escrito em 1868.

O livro todo, no texto original, é de grande significado e importância, como parte consequente e aprofundada do processo crescente de construção do Espiritismo, em seus Princípios e decorrências. Processo esse que foi sendo desenvolvido e estabelecido, na sequência dos livros e números da “Revue”.

Vale destacar o magistral capítulo da Gênese Espiritual, no qual Kardec, item por item, repassa entrosando-os, o funcionamento de quase todos os Princípios Básicos que caracterizam o Espiritismo, numa sequência lógica. Inicia pela criação dos princípios espiritual – origem dos Espíritos – e material – seu instrumento. Depois inclui a reencarnação, em seus muitos aspectos, o perispírito e o papel dos corpos de matéria densa, a evolução como chave mestra, o arbítrio, as consequências naturais, a erraticidade e a transmigração, a comunicabilidade entre encarnados e desencarnados…

Estudar esse capítulo, claro que sem as deturpações, é adquirir um sólido conhecimento de como a Vida funciona, num encadeamento perfeito das leis universais, que são também o conteúdo básico do Espiritismo, que Kardec chamou de Princípios; “coluna vertebral” do modo de pensar espírita!

A necessária divulgação dessa última e primorosa obra do Kardec, deve começar por esclarecer que, em língua portuguesa, salvo a de Carlos Imbassahy e a de Albertina Sêco [2], todas as demais edições existentes de “A Gênese”, até agora, são traduções da 5ª edição francesa, de 1872, adulterada, deturpada e desviada dos objetivos.

Por mais que algumas dessas incluam, erroneamente, o ano de 1868 e até citem ser da primeira, editada por Kardec, o conteúdo comparado desmente essas informações falsas.

Agora é recomeçar! Ler e estudar no livro verdadeiro, para entender direito o Espiritismo, como uma ciência chamada de filosófica, no século XIX; sustentado na evolução gradativa dos Espíritos e seus múltiplos aspectos psicológicos.

Notas do ECK:
[1] Artigo publicado originariamente no “Portal do Espírito”, em março de 2018.
[2] A Fundação Espírita André Luiz, em 2018, após a divulgação deste artigo, lançou uma nova edição contendo a tradução da primeira edição, original, de “A Gênese”, com a tradução de Carlos de Brito Imbassahy e notas introdutórias de Paulo Henrique de Figueiredo, Simoni Privato Goidanich, Júlio Nogueira e Marcelo Henrique Pereira.

Written by 

Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

4 thoughts on “150 anos de “A Gênese”, de Allan Kardec, e o escândalo inevitável!, por Cristina Sarraf

  1. Obrigada Manoel F Neto, por nos disponibilizar esta informação irei com calma e serenidade ler essa tradução da Primeira Edição. Sou como você sabe uma novata nesta matéria, mas logo desde o princípio quando ouvi uma palestra do amigo Edison Figueiredo, fiquei alerta..Somos aprendizes, e não pecadores..e faz sentido com o que nos especifica neste seu artigo. Obrigada amigos.

  2. Peço desculpa se mencionei no meu comentário o nome de Manoel F Neto em vez de Manol Fernandes..só depois me apercebi do lapso…pela data do artigo não deverão ser a mesma pessoa. Peço a quem fizer a aprovação que emende por favor. Grata.

  3. Excelente artigo! Esclarecendo o cronograma dessas descobertas e restabelecendo o rumo do estudo Doutrinário. Parabéns, Cristina!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.