Por Lindemberg Castro
O Espiritismo à brasileira, mantém a sua produção bibliográfica focada nas obras psicografadas de dois médiuns há mais de 60 anos, e por vezes parece que as obras de Kardec perderam a sua importância epistemológica para a compreensão ampla do Espiritismo, levando a toda sorte de teorias absurdas criadas no seio do próprio movimento espírita, e muitas vezes referendadas pelas federações que insistem em se comportar em representantes absolutas do Espiritismo. Todo esse quadro faz com que o Espiritismo pareça muito mais uma religião espiritualista fragmentada em diversas seitas menores, sufocando a razão e a pesquisa como instrumentos poderosos de avanço cultural e espiritual.
Há uma extensa confusão epistemológica sobre a natureza do Espiritismo, tanto no meio espírita, e por consequência no meio não-espírita. Para uns ele não é senão uma religião no sentido popular do termo, para outros é uma filosofia, para terceiro, ele está fundamentado numa ciência de aspectos empíricos e psicológicos. No entanto, como afirma o filósofo espírita Herculano Pires, todos estão errados sobre esse ponto, uma vez que um estudo mais acurado sobre as bases epistemológicas do Espiritismo revela que ele se apresenta como doutrina multifacetada, ou, para ser mais específico, constitui-se em uma ciência com metodologia específica e com consequências filosóficas e morais. Herculano (1993) nos diz que “a força do Espiritismo não está nos fenômenos, como geralmente se pensa, mas na sua filosofia, o que vale dizer na sua mundividência, na sua concepção da realidade”.
Numa explicação sumária sobre essa questão, podemos citar as palavras do próprio Allan Kardec, ao afirmar o que se segue (1992): “O Espiritismo é ao mesmo tempo uma ciência de observação e uma doutrina filosófica. Como Ciência prática, ele consiste nas relações que se podem estabelecer com os Espíritos; como filosofia, ele compreende todas as conseqüências morais que decorrem dessas relações. Pode-se defini-lo assim: O Espiritismo é uma ciência que trata da natureza, da origem e da destinação dos Espíritos, e das suas relações com o mundo corporal; (O que é o Espiritismo, Prólogo).
Na citação acima é possível perceber os aspectos científico e filosófico do Espiritismo, mas Kardec, ainda não satisfeito com as especulações em torno de uma ciência nascente, e não querendo deixar margem para falsas idéias acerca da doutrina, se dedicou ainda à explicação do aspecto religioso do Espiritismo, sobretudo a partir da insistência do Sacerdote, diálogo reproduzido na obra “O que é o Espiritismo”. Kardec explica que a Doutrina Espírita não pode ser chamada de religião no sentido vulgar a que se atribui a esta palavra, mas sim, como possuidor de uma orientação para uma religiosidade que eleva as práticas morais do estudioso sério, no sentido de desenvolver sentimentos e comportamentos fraternos entre as pessoas, e da necessidade da prática desses ensinos para a transformação da sociedade, portanto, o papel do espírita não é o de apenas trabalhar pelo seu aperfeiçoamento enquanto indivíduo e nem o de desenvolver práticas ascéticas e espirituais para a sua iluminação, seu papel também será o de contribuir para um mundo mais justo e humano, atuando de forma direta pelo fim das injustiças sociais, muito embora, alguns espíritas se utilizem da Lei de Causa e Efeito para justificarem a necessidade dos problemas sociais como punição, o que não coaduna com a Filosofia Espírita.
Por consequência também não cabe ao espírita olhar as questões sociais sob o prisma do fundamentalismo religioso que já estamos vendo em parte do movimento espírita e que se junta a outras formas de fundamentalismo religioso já presentes no Brasil que tentam usurpar os direitos civis da população em prol de projetos de poder; esse mesmo fundamentalismo espírita, tenta justificar toda sorte de atrocidades na já desigual estrutura social, desde estupros, passando por miséria e fome, passando por assassinatos e violências e chegando na relativização de discursos de ódio. O fundamentalismo religioso a partir de parcela do movimento espírita, é o resultado do próprio igrejismo presente em parte dos centros espíritas, conforme nos alertou Herculano Pires em “A Pedra e o Joio”. Esse fundamentalismo espírita, é o mesmo que defendeu de maneira fanática, que uma criança de 10 anos, engravidada após estupros sucessivos dentro da sua própria família, não tivesse o seu direito garantido e previsto no código penal, o de abortar, tudo isso com nada de empatia e muito de visão moralista que tenta direcionar a vida das pessoas; em artigo próprio, trataremos desse assunto de forma mais detida.
O Espiritismo, enquanto doutrina progressista, e que desperta a atenção das pessoas igualmente progressistas, assim como define Allan Kardec, naturalmente se relaciona com as perspectivas humanitárias que visam corrigir as injustiças sociais pautadas em sistemas de opressão robustos e que dialogam entre si, com vistas e manter a estrutura de dominação histórica. Portanto, podemos dizer que ser espírita não é apenas investir em seu próprio progresso espiritual, é preciso ainda contribuir de forma positiva para o progresso dos costumes, das instituições, com vistas a ampliar o bem-estar social e as práticas que configurem em atos e sentimentos fraternos, e que possam ainda ser antirracistas, anticapitalistas, anti-preconceitos, antimachistas, antimisóginos, de modo a que todas as pessoas tenham os seus direitos básicos garantidos, e ainda possamos desfrutar de um mundo acolhedor e pautado no respeito às diferenças.
O Espiritismo não promete a salvação e nem possui nenhum dos atributos rituais das religiões, por isso, se configura muito mais numa filosofia moral, que exalta a ética e a necessidade do bem, do que numa religião. O próprio Kardec (1993) nos diz: “Por que, pois, declaramos que o Espiritismo não é uma religião? Pela razão de que não há senão uma palavra para expressar duas idéias diferentes, e que, na opinião geral, a palavra religião é inseparável da de culto; que ela desperta exclusivamente uma idéia de forma, e que o Espiritismo não a tem. Se o Espiritismo se dissesse religião, o público não veria nele senão uma nova edição, uma variante, se assim nos quisermos expressar, dos princípios absolutos em matéria de fé; uma casta sacerdotal com um cortejo de hierarquias, de cerimônias e de privilégios; não o separaria das idéias de misticismo, e dos abusos contra os quais a opinião freqüentemente é levantada. O Espiritismo, não tendo nenhum dos caracteres de uma religião, na acepção usual da palavra, não se poderia, nem deveria se ornar de um título sobre o valor do qual, inevitavelmente, seria desprezado; eis porque ele se diz simplesmente: doutrina filosófica e moral”. (Revista Espírita, Dezembro de 1868).
Podemos dizer que o aspecto religioso do Espiritismo está manifestado em seus objetivos da seguinte forma: 1) combate à incredulidade e suas conseqüências, o que atinge às perspectivas materialistas sobre a existência e o seu consequente niilismo, 2) apesar de não ser uma religião, conduz às idéias religiosas através de uma perspectiva ampla de espiritualidade e de religiosidade, 3) favorece ao autoconhecimento do indivíduo que passa a observar mais os seus atos, sentimentos e pensamentos, e retira o autoconhecimento da perspectiva mística da tradição do espiritualismo utópico, 4) alerta para o fato de que o que vale numa ação não é o ato em si, mas a intenção que o produziu, o que se relaciona diretamente com o autoconhecimento. O Espiritismo não impõe uma justificativa transcendente ao indivíduo para a necessidade de progredir moralmente; é uma necessidade imanente ao próprio ser a fim que se cumpra as suas potencialidades enquanto ser espiritual; em um sentido aristotélico, podemos dizer que o progresso espiritual é a atualização das potências espirituais do ser.
ESPIRITISMO COMO RELIGIÃO NATURAL
No Espiritismo a Religião é natural porque “Deus está na Natureza e no homem, que pode descobri-lo através da razão” (Kardec, 1998). A fé não é cega porque é iluminada pela luz da razão, e nesse sentido, o Epsiritismo demonstra a herança que recebeu do Iluminismo; e Kardec (1998) deixa bem claro essa questão fundamental, quando diz que “o argumento supremo deve ser a razão”. Segundo Kardec o Espiritismo foi chamado a desempenhar um papel imenso na Terra, mas não concretizará a sua missão espiritual enquanto os espíritas não saírem da compreensão pessoal que desenvolveram do Espiritismo, e passarem a intervir positiviamente no mundo para transformá-lo. De que adianta o progresso individual, se o espírita aceitar que todos os dias pessoas morrem de fome e sede, que há tantas injustiças, e que há tanta pobreza e miséria no mundo?! Certamente, essas questões não serão resolvidas pela caridade material apenas, a que boa parte dos espíritas se apegou, mas sim, pela reforma e ampliação de políticas públicas que sejam universais no atendimento aos direitos básicos ao ser humano.
Uma questão presente no entendimento do Espiritismo é quando se fala no seu papel de “restaurar a verdadeira religião”; normalmente se pensa no movimento espírita que o Espiritismo é o futuro das religiões, como se fosse engoli-las todas, como se todas confluissem para ele; restaurar a verdadeira religião é levar a compreensão às pessoas da imanência das suas próprias faculdades espirituais e, portanto, que compõem a sua religiosidade, em outras palavras, a religião natural é o caminho espiritual que todos precisamos seguir em prol da atualização das nossas potencialidades, sem rótulos religiosos, apenas o Espírito compreendendo a si mesmo a sua relação com Deus. Nesse sentido, se dizer espírita e não se reconhecer como Espírito, é estar mais apegado à forma do que ao fundo, é estar seguindo um caminho tradicional de religião, e não uma perspectiva ampla de espiritualidade e de religiosidade. É o próprio caminho espiritual socrático-platônico que se manifesta através do Espiritismo, um caminho ético e de naturalidade frente às manifestações e relações espirituais que nos são próprias.
Em diversas outras passagens da obra de Kardec (1993), encontraremos alusões feitas pelos Espíritos como também do próprio codificador, a respeito da religião convencional, como também a respeito do sentido do espiritismo na sua significação religiosa mais ampla. Dentre essas citações, destacamos: “(…) o Espiritismo se fundamenta em princípios gerais independentes de toda questão dogmática. É verdade que ele tem conseqüências morais, como todas as ciências filosóficas. Suas conseqüências são no sentido do cristianismo, porque é este, de todas as doutrinas, a mais esclarecida, a mais pura, razão por que, de todas as seitas religiosas do mundo, são as cristãs as mais aptas a compreendê-lo em sua verdadeira essência. O Espiritismo não é, pois, uma religião. Do contrário teria seu culto, seus templos, seus ministros. Sem dúvida cada um pode transformar suas opiniões numa religião, interpretar à vontade as religiões conhecidas; mas daí à constituição de uma nova igreja há uma grande distância e penso que seria imprudente seguir tal idéia. Em resumo, o Espiritismo ocupa-se da observação dos fatos e não das particularidades desta ou daquela crença; da pesquisa das causas, da explicação que os fatos podem dar nos fenômeno conhecidos, tanto na ordem moral quanto na ordem física, e não impõe nenhum culto aos seus partidários(…)” (Revista Espírita – Volume 2 – 1859 – Refutação de um artigo de “L’Univers”).
Ao aprofundarmos o estudo das bases epistemológicas do Espiritismo, e pelo exposto acima, é possível perceber que a doutrina independe de qualquer forma de culto, não aconselhando nenhum e não se preocupando com dogmas particulares, não constitui uma religião tradicional e nem especial, pois não possui nem sacerdotes nem templos, como afirma Herculano Pires (2000). Apesar disto, o movimento espírita no Brasil praticamente refundou o Espiritismo como uma religião cheia de cultos, de ritualísticas, e com “representantes” que são verdadeiros sacerdotes infalíveis, pela forma como são tratados por instituições espíritas dogmáticas; esta é uma realidade que acaba por direcionar a produção do conhecimento espírita no Brasil a obras psicografadas de toda sorte, deixando de lado o aspecto da pesquisa filosófica e científica, deixando na sombra grande pensadores como Allan Kardec, Léon Denis, Herculano Pires, Humberto Mariotti, Manuel Portero, Cosme Marino, Deolindo Amorim, Ney Lobo, Inácio Ferreira, e isso só para citar alguns. Parte considerável do movimento espírita trata as obras psicografadas do século 20 como representações da verdade absoluta, o que amplia o misticismo em um movimento já excessivamente religioso.
O Espiritismo à brasileira, se é que podemos nos exprimir desta forma, mantém a sua produção bibliográfica focada nas obras psicografadas de dois médiuns há mais de 60 anos, e por vezes parece que as obras de Kardec perderam a sua importância epistemológica para a compreensão ampla do Espiritismo, levando a toda sorte de teorias absurdas criadas no seio do próprio movimento espírita, e muitas vezes referendadas pelas federações que insistem em se comportar em representantes absolutas do Espiritismo. Todo esse quadro faz com que o Espiritismo pareça muito mais uma religião espiritualista fragmentada em diveras seitas menores, sufocando a razão e a pesquisa como instrumentos poderosos de avanço cultural e espiritual.
CONCLUSÃO
O aspecto religioso do Espiritismo perpassa por todas as 32 obras que compõem a base doutrinária construída por Allan Kardec (engana-se quem repete que Kardec só tem 5 obras); a aliança entre os aspectos da doutrina espírita não é feita ao acaso, mas é uma indicação, um resumo que alerta para o processo gnosiológico da própria humanidade, como nos afirma Herculano Pires em “Introdução à Filosofia Espírita” (1993).
O aspecto religioso do Espiritismo é uma religião psíquica, imanente, como a chamou Arthur Cona Doyle (2013), em “História do Espiritismo”. Kardec (1998) afirma na conclusão de O Livro dos Espíritos: “O Espiritismo é forte porque se apóia nas próprias bases da religião: Deus, a alma, as penas e recompensas futuras”; no entanto, no Espiritismo, as penas e recompensas presentes e futuras não são transcendentes ao homem, como um destino que lhe traçasse sua vida; não; na concepção espírita é o próprio indivíduo que constrói a si mesmo, experimentando a felicidade e a infelicidade de acordo como conduz a si mesmo pelas reencarnações. Esses preceitos são decisivos para o autoconhecimento dos indivíduos, e para o reconhecimento em si mesmo de sua divindade, e ao mesmo tempo serve de alerta para que nenhum espírita queira ditar regras moralizantes de comportamento para outrem, com base em preceitos falseados de Lei de Causa e Eefeito ou qualquer conceito espírita.
REFERÊNCIAS:
DOYLE, Arthur Conan. História do Espiritismo. 1º ed. Brasília: FEB, 2013.
KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de José Herculano Pires. 59ª ed. São Paulo: LAKE, 1998.
KARDEC, Allan. O que é o Espiritismo. Tradução de Wallace Leal V. Rodrigues. 24ª ed. São Paulo: LAKE, 1992.
KARDEC, Allan. Revista Espírita: edição de Maio de 1859. Tradução de Salvador Gentile. 1ª ed. São Paulo: IDE, 1993.
KARDEC, Allan. Revista Espírita: edição de 1868. Tradução de Salvador Gentile. 1ª ed. São Paulo: IDE, 1993.
PIRES, José Herculano. Introdução à Filosofia Espírita. São Paulo: FEESP, 1993.
PIRES, José Herculano. Agonia das Religiões. 5ª ed. São Paulo: PAIDEIA, 2000.
PIRES, José Herculano. A Pedra e o Jaio. 3º ed. São Paulo: PAIDEIA, 2005.
<strong>Acesse os textos da edição:</strong>
O dogmatismo (nem sempre ameno) dos espíritas, por Marcelo Henrique
Dogmatismo, Imobilismo e Ausência de Fraternidade (*), por Nícia Cunha
Espiritismo, Igrejismo e Questões Sociais, por Lindemberg Castro
A síntese kardequiana, por Maurice Herbert Jones (in memoriam)