Por Milton Medran
O laço ecumênico que terminou por unir a comunidade das igrejas cristãs, nestes tempos pós-modernos, outro não é que não um dogma das igrejas: o da divindade de Jesus e de sua exclusiva condição de “salvador”. Justo um princípio diametralmente oposto à filosofia espírita. Ou seja: a pós-modernidade deixou de identificar o cristianismo por uma conceituação ética ou moral, sedimentando, por amplo acordo entre as religiões cristãs (do qual ficou fora o espiritismo), que a condição essencial do cristianismo é definida pela aceitação daquele dogma.
José Herculano Pires, o maior (e, talvez, único) filósofo espírita brasileiro estaria longe de poder ser definido como aquilo que hoje se convencionou chamar de “espírita laico”. Homem de profundas raízes católicas, como a maioria dos grandes líderes espíritas de nosso país, foi, talvez, o último intelectual em nosso meio a alimentar o sonho que moveu eminentes vultos de nosso movimento desde que os primeiros sinais de espiritismo apareceram no Brasil, ainda no tempo do Império: o de que o espiritismo fosse o estuário no qual a religião cristã naturalmente desembocasse.
Ubiratan Machado, no clássico “Os intelectuais e o espiritismo”, retrata muito bem esse ardor dos primeiros pensadores espíritas brasileiros, destacando, por exemplo, que Luiz Olímpio Telles de Menezes, o jornalista baiano que editou o primeiro jornal espírita, em Salvador, no Século 19, mesmo sendo espírita, sempre se declarou católico e chegou a escrever carta a seu bispo diocesano, declarando-se “ovelha de seu rebanho”, enquanto lamentava que a Igreja não adotasse os principais postulados espíritas, tais como a comunicabilidade dos espíritos e a reencarnação.
Bezerra de Menezes, outro católico fervoroso, quando começou a escrever para a revista “Reformador”, da Federação Espírita Brasileira, ainda o fazia na qualidade de um pensador católico. Esses e muitos outros católicos-espíritas só deixaram a igreja porque viam tardar esse momento, mas sempre o fizeram guardando a esperança de que essa transformação fosse um dia possível.
A História está demonstrando exatamente o contrário, pois o laço ecumênico que terminou por unir a comunidade das igrejas cristãs, nestes tempos pós-modernos, outro não é que não um dogma das igrejas: o da divindade de Jesus e de sua exclusiva condição de “salvador”. Justo um princípio diametralmente oposto à filosofia espírita. Ou seja: a pós-modernidade deixou de identificar o cristianismo por uma conceituação ética ou moral, sedimentando, por amplo acordo entre as religiões cristãs (do qual ficou fora o espiritismo), que a condição essencial do cristianismo é definida pela aceitação daquele dogma.
Nunca devemos perder de vista que, até muito pouco tempo, os povos lusos e hispânicos da América Latina tiveram sua educação, seus costumes, sua cultura toda, inteiramente moldados pelos valores do cristianismo, notadamente da Igreja Católica de cuja influência era muito difícil se subtrair, mesmo nos meios mais cultos. Era natural a qualquer doutrina espiritualista que aqui aportasse que também a ela se moldasse. Com o espiritismo não foi diferente.
José Herculano Pires cedo se libertou do catolicismo, dele se tornando um crítico, em alguns momentos, mordaz e irreverente. Mesmo sendo de um tempo onde a religião já não tinha a mesma e decisiva influência (suas principais obras foram escritas nos anos 70) foi uma dessas figuras notáveis que, apesar de suas raízes profundamente cristãs, jamais se conformou com o divórcio histórico entre a pureza filosófica dos ensinos de Jesus de Nazaré e os dogmas das igrejas cristãs. Essa inconformidade é a marca de sua obra, demonstrando o sentimento de que o cristianismo se desviou de sua rota, pois caso este seguisse seu leito natural, desembocaria naturalmente no espiritismo religioso.
Herculano abre o seu livro “Revisão do cristianismo”, com essa antológica sentença: “Há um abismo entre o Cristo e o Cristianismo, tão grande quanto o abismo existente entre Jesus de Nazaré, filho de José e Maria, nascido em Nazaré, na Galiléia, e Jesus Cristo, nascido da Constelação da Virgem, na Cidade do Rei Davi em Belém da Judéia, segundo o mito hebraico do Messias”. E quase ao final da obra, propõe: “[…] o movimento espírita é o único a manter os princípios cristãos da reencarnação, da pluralidade dos mundos habitados, da encarnação natural de Jesus, da fé racional e assim por diante. Sobretudo, o princípio espírita da caridade, de amor ao próximo e socorro aos necessitados, sem qualquer discriminação ou exigência de tipo sectário, é o que mais aproxima esse movimento do Cristianismo livre e sem compromissos mundanos, ensinado e exemplificado pelo Cristo”.
O grande filósofo espírita paulista via, como está claro, justamente no espiritismo essa vocação de restaurar o ensino moral de Jesus. Adotando o que denominou de “triângulo emanuelino”, propunha uma visão tríplice da realidade espírita, como ciência-filosofia-religião. Entretanto, da mesma forma como via no cristianismo uma ruptura total com os ensinos de Jesus, também antevia a falência definitiva das religiões no mundo pós-moderno. Exatamente porque, tanto quanto o cristianismo se houvera apartado de Jesus, suas religiões haviam perdido inteiramente a noção daquilo que devia ser essencial a elas: o espírito. Diz isso claramente em sua obra “Agonia das religiões”, como o reproduzimos na abertura deste texto. Por isso, ao propor o espiritismo como “religião”, numa afirmativa que contraria o conceito proposto por Kardec, segundo quem “[…] o verdadeiro caráter do Espiritismo é o de uma ciência e não de uma religião”, Herculano também propõe um novo conceito de religião.
Como muito bem assinala Wilson Garcia em primoroso artigo – “Herculano Pires e a Religião dos Espíritos”, “A religião espírita, para Herculano, tem um caráter dual: é científica pelo fato de estimular o raciocínio lógico sobre os fenômenos espirituais, e é filosófica como busca incessante de explicação da vida, da natureza e do ser. A síntese dessa afirmação, presente em diversas obras onde aborda o tema, pode ser vista nesta sentença: ‘O Espiritismo é a Ciência do Espírito e de suas relações com os homens; dessa Ciência resulta uma Filosofia e dessa Filosofia as consequências religiosas do Espiritismo, que constituem a Religião Espírita’. Apesar do reducionismo contido na frase, com ela Herculano resolve o seu lugar em relação à religião espírita, ou seja, a religião é vista por ele como subsidiária da ciência do espírito que o espiritismo é, na contramão, portanto, do conceito moderno de religião, pois, tradicionalmente, a religião possui funções específicas e é dotada de características próprias como crença e fé que se manifestam através de ritos e símbolos. O conceito de uma religião dotada de valores científicos surge formalmente apenas com o espiritismo, não sendo, portanto, crível falar de espiritualismo científico antes de 1857”.
No atual movimento espírita convencionou-se classificar como “espíritas laicos” aqueles segmentos que, em consonância com Kardec, têm resistido em classificar o espiritismo como religião. Fazem-no exatamente para evitar que uma palavra de múltiplos significados termine por reservar ao espiritismo justamente aquele significado que ele definitivamente não tem.
O próprio Herculano Pires reconhece isso ao escrever em “O espírito e o tempo”: “Pestalozzi, mestre de Kardec, considerava a existência de três tipos de religião: a animal ou primitiva, a social ou positiva, e a espiritual ou moral. A esta última preferia chamar simplesmente moralidade, a fim de não confundi-la com as duas formas anteriores. Kardec recebeu dos Espíritos a confirmação dessa teoria pestalozziana”.
Vê-se, pois, que se há alguma divergência entre Herculano Pires e Kardec, nesse aspecto, ou entre Herculano e o segmento conhecido como “laico”, no movimento espírita, é apenas de termos e não de conteúdo. Divergências meramente formais não poderiam, assim, comprometer a imensa admiração que, por exemplo, a CEPA – Associação Espírita Internacional nutre pelo grande filósofo espírita brasileiro, mesmo tendo a CEPA, como um de seus conceitos institucionais, várias vezes reafirmado em seus congressos, o de que o Espiritismo não é uma religião.
Na verdade, o espiritismo é uma proposta cultural ampla demais para aprisionar-se em conceitos formais. Seu objeto, do qual, aliás, como o reconhece Herculano, as religiões se apartaram, é o espírito, o “princípio inteligente do universo”, como o define “O livro dos Espíritos”. Sendo o espírito o princípio inteligente, é também o ser mais dinâmico do universo. E dinamismo produz pluralismo. Não condiz com a idéia da verdade única, débil e falacioso patrimônio das religiões em agonia.
Nota do ECK:
Artigo originalmente publicado com o título “Herculano e a religião”.
<strong>Acesse os textos da edição:</strong>
O dogmatismo (nem sempre ameno) dos espíritas, por Marcelo Henrique
Dogmatismo, Imobilismo e Ausência de Fraternidade (*), por Nícia Cunha
Espiritismo, Igrejismo e Questões Sociais, por Lindemberg Castro
A síntese kardequiana, por Maurice Herbert Jones (in memoriam)