Os sistemas ideológicos e o sistema espírita, por Gerson Yamin e Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 4 minutos

Gerson Yamin e Marcelo Henrique

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Ideologia representa a relação imaginária de indivíduos para suas condições reais de existência (Louis Althusser).
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Todo poder requer aparelhos de sustentação. O Estado, exemplificativamente, como “lugar de poder” é criado para manter a dominação de uma chamada classe (dominante, como a burguesia no período pós-Revolução Francesa). Este Estado precisa de aparatos ou aparelhos, que possam fortalecer e solidificar o sistema (ideológico e de poder) para a população (cidadãos).

Um filósofo da segunda metade do século XX, Louis Althusser discorre bem sobre isto, destacando os aparelhos repressivos dos Estados daquele período: os que criam as leis, os que punem, os que impõem a ordem social, para que os indivíduos não a subvertam e não discordem em termos de pensamento nem se amotinem. São exemplos, o exército, os poderes judicial e legislativo. Daquele período e, também, do nosso, diga-se de passagem.

Em paralelo, há um conjunto de aparelhos ideológicos que, igualmente, visam manter a sustentação do sistema, principalmente pelo subterfúgio do mascaramento da realidade: a família, as religiões, a escola, as mídias e, mais presentemente, as redes sociais. Estes são, muitas vezes, aparatos ideológicos destinados a evitar que o indivíduo possa discernir ou, mesmo, pensar livremente. É proibido, então, pensar “fora da caixinha”.

Percebe-se, claramente, que esta teoria possui aplicabilidade no chamado meio (ou movimento) espírita, permeado por um declarado conservadorismo (de ideias e práticas), preocupado na manutenção do “status quo”, impedindo a progressividade da própria Filosofia Espírita.

Em paralelo, na esteira do tempo, instituiu-se neste cenário, pouco a pouco, o culto divinista e de idolatria a médiuns, expositores ou dirigentes, assim como a determinados “guias espirituais”, que alcançaram e continuam, tempos após tempos, alcançando notoriedade e estrelato. Então, apenas estes – e não mais ninguém outro – podem reproduzir dadas “verdades espíritas”, ditando comportamentos e temas, inclusive aqueles que são tidos como “realidades” no chamado “Mundo Espiritual”.

Este cenário, altamente perigoso – e, por vezes, doentio, dada a dependência que resulta disto para inúmeros espíritas, que esperam as “ordens” para seguir, cegamente –, possibilita o surgimento de repetidas “Fake News Espirituais ou Espíritas”, com “revelações” que são tidas como verdadeiras, mas que não passam de opiniões pessoais, sejam dos Espíritos comunicantes, sejam dos próprios médiuns (em depoimentos claramente anímicos), tanto quanto na perspectiva da (maior ou menor) influência da ideologia pessoal do médium no texto, quanto, em alguns casos, da mera manifestação deste, com a assinatura hipotética de um vulto espiritual, mais ou menos conhecido.

As mensagens psicografadas, com este teor, acabam sendo, destacadamente, fraudes, assumindo papel preponderante no contexto ideológico espírita brasileiro (e até exorbitante, porque algumas mensagens são “exportadas” para comunidades e grupos espíritas de outros países). Vale dizer as estruturas institucionais locais, nacionais e internacionais validam e dão sustentação aos personagens (encarnados e desencarnados).

Tem-se, então, um movimento com características igrejeiras, sem qualquer espaço para a autonomia e a liberdade de pensamento – dentro do contexto espírita, logicamente – dificultando ou impedindo a perspectiva de questionamento e a crítica (construtiva), tanto em relação aos elementos que supostamente vem da “Espiritualidade Superior” quanto dos expoentes (encarnados) do pensamento espírita majoritário e dominante. Neste contexto, há, notoriamente, o personalismo de médiuns, expositores e dirigentes, cultuados como porta-vozes do Espiritismo contemporâneo e tidos como infalíveis ou sábios.

A mencionada ideologia definida por Althusser, então, é presente e flagrante no segmento espírita, tendo se sustentado praticamente desde os primeiros dias do Espiritismo no Brasil, inclusive com a ênfase que se dá ao Cristianismo, não aquele destacado em partes das obras kardecianas, como o legítimo pensamento do Homem de Nazaré, mas um outro cristianismo (com letra minúscula, propositadamente) porque permeado de dogmas e conceitos das chamadas religiões cristãs, onde se destaca, logicamente, pela proeminência em solo brasileiro por todo o século XX, da religião católica. Para manter esta hegemonia sobre os espíritas, há uma difusão de pensamentos como crenças, consciente ou inconscientemente, dada a repetição de chavões e bordões, presentes nos grupos de estudo e nas reuniões doutrinárias.

Os neófitos, assim como os costumeiros frequentadores, então, são apresentados a um “outro” Espiritismo, calcado em elementos alienígenas, derivados da opinião pessoal dos personagens já destacados, que não podem ser desconstruídos, mesmo se colocados lado a lado com os preceitos originários, genuínos e fundamentais da Doutrina dos Espíritos (leia-se o conjunto das 32 obras de Allan Kardec). É impossível, assim, retomar a construção (seria reconstrução?) do ambiente espírita baseado na fidelidade a Kardec e seus princípios.

Como não há a desconstrução, a tendência “unificadora” é a da manutenção de tudo o que é dito/escrito pelos “líderes” do movimento e seus “escolhidos” expoentes, que é defendido como “cláusula pétrea” e indiscutível. Em outras palavras, a manifestação (mediúnica ou não) de “guias”, médiuns, dirigentes e palestrantes vale mais do que o conjunto de textos selecionados por Kardec, nos quase doze anos de sua atividade pioneira. São, eles, os “novos” donos do saber espírita e espiritual!

Com Kardec à margem do processo espírita contemporâneo, outros (muitos) tomam o seu lugar, defendendo, de forma ideológica, a manutenção de um conservadorismo (doutrinário e prático) no Espiritismo enquanto movimento. E isto é profundamente lamentável!

Este “link” precisa ser feito e frequentemente carece de discussão e rediscussão em espaços livres pensadores espíritas, motivando aqueles que nunca pensaram nisso ou que se encontra(va)m anestesiados, seguindo o “fluxo da maré”, se deem conta de que são, repetidas vezes, “massa de manobra” e que legitimam, pela passividade explícita, a dominação ideológica de uma religião espírita totalmente descolada e distante da Doutrina dos Espíritos. É uma espécie de “universo paralelo” onde se denominam espíritas aqueles que “mexem” com questões espirituais, com a mediunidade e com explicações que parecem ser correlacionadas ao Mundo Invisível e/ou às relações entre os planos material e espiritual (principal objeto da Doutrina, repise-se), mas que nada têm a ver nem com a metodologia nem com a chamada sintaxe espírita (fundamentos e princípios espíritas).

Vale dizer que o “movimento espírita” é uma construção dos homens, isto é, dos encarnados e, por isso, não consegue estar afastado do padrão da sociedade humano-material e, por estar, nesta inserido, reproduz a manutenção da(s) ideologia(s) dominantes: a doutrinária (se é que podemos assim chamar), a institucional, a mediúnica e a comportamental (relacionada à frequência a grupos ou instituições espíritas). Tudo isto em defesa de um dado “sistema espírita”, tradicional, conservador e direcionado para a tal ideologia dominante.

E, “pra não dizer que não falamos das flores” (Vandré), este sistema ideológico também se afiniza com outros, político-sociais, econômicos e de outros matizes, presentes na Sociedade, retroalimentando-se. Por afinidade, portanto. E por comodismo, muitas vezes. A ideologia do sistema interfere no meio espírita e, não raro, cria monstros praticamente imbatíveis e indestrutíveis, ainda que situados no âmbito do pensamento.

Por isso, é essencial outros olhares com perspectivas transformadoras, dispostos a praticamente “reinventar” as práticas espíritas, já que outras ideologias se encastelaram no segmento dos espíritas, distanciando-os paradoxalmente da base kardeciana (teórica e prática).

Eis ao que nos propomos. E você?

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

3 thoughts on “Os sistemas ideológicos e o sistema espírita, por Gerson Yamin e Marcelo Henrique

  1. Gostaria de ler a continuidade desse texto objetivando tais práticas que são comentadas para explicitar melhor e podermos aproveitar e fazer uma análise sobre as nossas próprias práticas ( auto análise ).

  2. Que análise tão perfeita da realidade que temos na prática e vivência da grande maioria dos que se dizem espíritas. Texto admirávelmente realista. Numa palavra Excelente. Parabéns ao autor e a este grupo vanguardista do qual fazem parte estes livres pensadores que é o ECK.

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