Nelson Santos
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“[…]
E na luz nua eu vi
Dez mil pessoas, talvez mais
Pessoas falando sem dizer
Pessoas ouvindo sem escutar
Pessoas escrevendo canções que vozes jamais compartilharam
E ninguém ousava
Perturbar o som do silêncio
[…]”
The Sound of Silence, Paul Simon & Art Garfunkel
Na atual efervescência política em um momento de transição de governo, gerada pelo eterno embate entre as ditas “direita” e “esquerda”, que, por sua vez se refletem, de sobremaneira, também, no meio espírita, há uma determinada inconformidade com artigos e textos gerados pelos coletivos, entre estes o nosso grupo “Espiritismo Com Kardec (ECK)”. Tal inconformidade cita, seguidas vezes, a excessiva politização dos debates e a tendência à esquerda e, ainda, que estamos agindo em desacordo com o legado de Allan Kardec, por ele exposto ao longo de suas trinta e duas obras.
Premissas rasas e incorretas, convenhamos. E disto aqui trataremos.
Primeiramente, iremos confrontar os argumentos usuais das críticas com o artigo primeiro do Estatuto da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), constante em “O livro dos Médiuns”, segunda parte, das manifestações espíritas, capítulo XXX, em que consta: “A Sociedade tem por fim o estudo de todos os fenômenos relativos às manifestações espíritas e sua aplicação às ciências morais, físicas, históricas e psicológicas. As questões de política, de controvérsia religiosa e de economia social lhe são interditas.”.
Esquecem-se, os amigos, do momento histórico em que foi criada a SPEE, em 1º de abril de 1858, sob a égide de uma forte intervenção parlamentar e do amordaçamento da imprensa, além das restrições à liberdade civil, pelo regime absolutista de Napoleão III. Portanto, nada mais plausível que o Prof. Rivail fosse prudente para não ter dissabores com o governo.
Ainda, nesse diapasão, nossos colegas espíritas gostam de citar a resposta de Kardec à mensagem de ano novo dos Espíritas lioneses, na “Revista Espírita”, de fevereiro de 1862: “[…] Devo ainda assinalar-vos outra tática dos nossos adversários, a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e que, a justo título, poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças.
Não vos deixeis cair também nesse laço. Em vossas reuniões, afastai cuidadosamente tudo quando se refere à política e a questões irritantes. A tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa. […]”
Nesse momento, em particular, Napoleão III já tinha suspendido as citadas restrições às liberdades civis, porém, o clero católico e os pastores protestantes tinham profundo receio de que o conhecimento e a aceitação do Espiritismo abalassem as bases estruturais dogmáticas que sustentavam toda a coerência filosófica pautada nos preceitos bíblicos. Neste texto, então, Kardec alerta sobre os adversários – inclusive no seio do Espiritismo –, que possuíam amarras dogmáticas e suas tentativas de descrédito concorrentes a tumultuar o bom andamento das reuniões mediúnicas, levando assuntos externos a este tipo de trabalho.
Rivail-Kardec, portanto, salientou tais alertas e realizou outras críticas, ao longo de suas obras, ao socialismo, claramente materialista, por considerá-lo falho, mas, por outro lado, sempre ressaltou, enfaticamente, a necessidade da beneficência e a justiça social – inclusive com a máxima “Fora da caridade não há salvação” –, assim como a liberdade, a fraternidade e a igualdade (hoje, melhor traduzida como equidade) e sua aplicação pelo ser no mundo material-social.
Visto que, para que a justiça social se torne operante e efetiva, além dos conceitos e conjecturas, é imprescindível uma política social, apartidária, necessária em face do nosso nível progressivo, para dirimir as mazelas sociais. Para tal, devemos nos manifestar e não continuarmos omissos, como bem asseverou a Espiritualidade na resposta à questão 932 de “O Livro dos Espíritos”: “[…] Os maus são intrigantes e audaciosos, os bons são tímidos”.
Deste modo, ao tomar-se uma posição contrária a ignomínia presente no seio do poder, procurando honrar, efetivamente, as premissas espíritas perante a sociedade, hoje, tão maltratadas, seja por desrespeito aos direitos humanos, às conquistas sociais, ao bioma, à ciência, e pelo sucessivos erros econômicos, todas estas ações perpetradas por um governo inoperante, isto não é ser de esquerda ou de direita, pois esses conceitos são superados e anacrônicos, mas ser genuinamente espírita.
Assim, o ECK, como seu nome apresenta, honra as premissas kardecianas e do Espiritismo, a expressão evolutiva do ser nos aspectos moral, intelectual e espiritual, e seu lugar em uma sociedade justa, não estando desse modo alinhado ou contaminado por preferências de ideologias ou correntes políticas que sejam contrárias à doutrina social espírita. Ao assumirmos, perante a sociedade, uma clara posição, ela se afigura como, apenas e tão somente, contrária aos lapsos e contaminações de um desgoverno fatídico.
Sendo assim é de se perguntar: continuaremos, como espíritas, a auscultar o som do silêncio? Aquele em que sentenças não ditas produzem a surdez que incomoda, sem ninguém ousar contrapor-se?
A doutrina social espírita está nas obras de Allan Karde, notadamente na terceira parte de O Livro dos Espiritos, escrito quando as relações sociais de produção não reconhecia qualquer direitos aos trabalhadores. O Espiritismo veio também para dizer que o ser humano, incluídos os trabalhadores, possui direitos inalienáveis. Chega de silêncio dos bons, pois os que compactuam com os erros continuam a se assanharem.
Prezados amigos,
São várias as iniciativas que estão buscando se contraporem ao silêncio citado. Somente de grupos de estudos, conheço 3 ou 4 bastante fortalecidos, além dos papéis dos pesquisadores atuais, dentro os quais não é possível deixar de destacar Paulo Henrique de Figueiredo, em seu extenuado trabalho de recuperação das informações desconhecidas, principalmente aquelas relativas à moral autônoma e ao espiritualismo racional, bem como no trabalho tão importante de retomar as obras originais de Kardec, não adulteradas.
Pois bem: esse trabalho, que prima pela questão da autonomia, toma por base inquestionável o poder de escolha autônoma que o Espírito deve ter. Não faltariam as citações, na obra de Kardec, dele e de Espíritos diversos, a esse respeito: o Espírito, para se modificar realmente, precisa agir por sua livre vontade e pela razão, sendo que esta dá base à outra. Não existe nenhuma iniciativa, política ou não, que tenha obtido sucesso em qualquer mudança social, duradoura e real, por menor que ela seja, com base na autoridade, apenas. É por isso que sempre vejo com muito cuidado o assunto da política atrelado a qualquer pensamento espírita, pois ele deveria, inexoravelmente, ser pautado pelo princípio da moral, aplicada às relações, desde os primeiros passos da criança sobre este planeta.
Não canso de destacar, e esta será sempre minha bandeira, após compreender o Espiritismo em sua essência: a transformação social somente se dará pela transformação do indivíduo, através da educação familiar e escolar. É para isso que precisamos voltar TODOS os nossos esforços, dentro e fora da política, sendo que o último seria um meio eficaz para fazer retornar à sociedade a moral pautada pelo Espiritualismo Racional, que compreende e distingue a diferença entre felicidade e infelicidade, que são características dos avanços da alma em direção ao bem, das emoções e dos prazeres, que são puramente materiais. É esse o entendimento que falta. O homem deixará de viver sob as pontes quando ele entender que depende de si mesmo, e de ninguém mais, seu progresso, e quando os demais compreenderem que a caridade é um dever moral e desinteressado, indo muito além da esmola que humilha as partes.
Voltemos nossas inteligências a esse propósito, prezados irmãos! As crianças continuam se tornando jovens e adultos repletos de imperfeições adquiridas puramente pelos maus hábitos da educação, simplesmente porque ninguém está atento à necessidade urgente de chamar à razão a família e todos os funcionários da educação, pública e particular. Kardec via com olhos radiantes o futuro, porque acreditava que o modelo educacional, pautado pelo Espiritualismo Racional, continuaria a florescer e a se espalhar… Mas o apagar das luzes do século dezenove também jogaram nas sombras as filosofias que elevavam a alma acima da puerilidade da matéria.
Precisamos voltar atrás e entender Rousseau, Pestalozzi, Rivail, Biran, Janet e tantos outros livres-pensadores que jamais desejaram provocar as mudanças pela força, pois cedo perceberam que ela, em realidade, apenas produz agastamento e irritação. Diria Rivail, em seu “Plano Proposto para a Melhoria da Educação Pública”:
“A criança irritada, e não persuadida, se submete somente à força; nada lhe prova que ela agiu mal; ela sabe apenas que não agiu conforme a vontade do mestre; e esta vontade ele a considera, não como justa e razoável, mas como um capricho e uma tirania; ela se acredita sempre submetida ao arbítrio. Como se faz com que ela sinta comumente mais a superioridade física do que a superioridade moral, ela espera com impaciência ter ela própria bastante força para se subtrair a isso; daí este espírito hostil que reina entre os mestres e os seus alunos.”
Assim será, porque assim é, em qualquer aspecto do Espírito. Rivail não pensava nisso, quando escreveu essa obra, mas nós hoje sabemos, como ele veio a saber depois: a criança está animada do mesmo Espírito do adulto, apenas pouco mais limitado em suas percepções e capacidades. É o seu Espírito, portanto, e não seu corpo, que não se submete à força. Lembremos disso.