Marcelo Henrique
Do ato à potência, a perfeição possível
“Sede vós logo perfeitos, como também vosso Pai celestial é perfeito”
Jesus (Mateus: 5;48). [1]
INTRODUÇÃO
A inteligência e a lógica aplicada do Professor Rivail-Kardec, visível no conjunto de sua produção literária espírita – 32 obras – recebeu, no Livro Terceiro (terceira parte) de “O livro dos Espíritos” (OLE), uma organização que configura, ainda mais, o sistema filosófico do Espiritismo. De início, generalizadamente, é apresentada a Lei Divina (ou Natural), como um código de ética espiritual, dividido em dez partes – com espelho e correspondência, ainda que não literalmente, à Tábua da Lei (Dez Mandamentos) concebida por Moisés, na Antiguidade. E, ao final do referido capítulo, Kardec apresenta, no décimo segundo capítulo [2], o ápice da pirâmide evolutivo-espiritual, tratando da “Perfeição Moral”.
De início, tem-se um gigantesco desafio: o de definir que perfeição seria possível e viável ao Espírito, considerando que, caso seja verdadeira a afirmação atribuída a Jesus (e registrada no Evangelho de Mateus – texto introdutório deste artigo), seria impossível à criatura igualar-se, em perfeição, ao Criador.
O IMPERATIVO
Obviamente, no texto sublinhado, há um imperativo (Sede, do verbo ser, indicando uma orientação ou admoestação): Deveis ser perfeitos. É, portanto, uma obrigação moral-espiritual, calcada no superar-se, galgando os degraus da escala ascendente de progresso, com vistas a alcançar uma condição de perfectibilidade.
É exatamente neste ponto que pode ser elencada uma contradição no texto evangélico – que é reproduzido e endossado pelo Espiritismo, pois no Capítulo XVII, de “O evangelho segundo o Espiritismo”, consta a referida fala. Por que contradição? Porque Deus, na definição espiritista, “é infinito nas suas perfeições”, conforme comenta Kardec após o item 3, de OLE. Somente Ele, assim, tem a perfeição SUPREMA ou ABSOLUTA, cabendo aos Espíritos que Ele criou, a perspectiva de atingirem a perfeição RELATIVA – ou, em última instância, inferior à de Deus.
A contradição, assim, está no como (em “como também vosso Pai celestial é perfeito”), já que ele não pode ser tomado em sentido estrito, isto é, literalmente, na mesma proporção, no mesmo nível, em idêntica medida. A perfectibilidade humana (espiritual), decorrente da Lei do Progresso, condicionada às idas e vindas do Espírito (reencarnação), compreenderá, na prática, a aquisição das virtudes (talentos) e a eliminação dos vícios. Inexoravelmente. E não será, logicamente, a mesma perfeição atribuída a Deus.
A PERFEIÇÃO MORAL
Quando Kardec escolhe o título “Perfeição Moral” para o referido (último) capítulo, ele a conceitua como sendo a regra de boa conduta pela qual se faz a distinção do bem e do mal, mediante a observação da Lei de Deus. Perfeito (do grego “teleios”) é aquele que cumpre, na exata medida, o plano, a finalidade para o qual algo foi criado. É por isso que as religiões em geral se fundam, teleologicamente, no objetivo da vida (existência espiritual), que é o progresso, alcançando a já citada perfeição relativa. A teologia, por sua vez, reforça a ideia (para o homem) de sua plena realização, do ponto de vista moral, ou seja, a própria consumação no bem. Eis o “ponto final” do Espírito à luz da Filosofia Espírita, ainda que não seja estanque, estático nem definitivo, como no sentido do Céu bíblico.
Vale lembrar, repisando inclusive o contido no item 115, de OLE, que há um ponto de partida (marco zero) para a existência espiritual: “Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, ou seja, sem conhecimento”. A partir daí, portanto, o mapa evolutivo individual é traçado e será percorrido a partir das escolhas (livre-arbítrio), sem qualquer delimitação prévia de como será a caminhada, mas, sujeitando-se, a trajetória, à regra de causalidade (causa e efeito), composta e recomposta a cada passo e, por extensão, a cada encarnação.
PERGUNTAS
Cabe, assim, neste ponto da análise do tema em tela, perguntar: Devemos estar sempre nos aperfeiçoando? Como se dá este processo que levará à perfeição? Por que se fala em dois espectros de evolutividade, o moral e o intelectual?
Obviamente – e esta revista já tratou disto, em uma de suas edições neste ano de 2022 – a Lei do Progresso é imperativa no sentido de que todos (os Espíritos) progridem. E, também, que o progresso é finito, pois haveria – a teor do contido nos itens 113 e 169, de OLE – um termo final, que seria o alcance do grau de Espírito Puro, por parte de cada individualidade. Há, pois, um limite, caso contrário poder-se-ia chegar ao “nível” do Criador. Kardec, inclusive, deixa isto bem claro no Capítulo II, de “A Gênese”, que estatui: “Deus é a suprema e soberana inteligência. A inteligência do homem é limitada, já que não pode fazer nem compreender tudo o que existe; a de Deus, abrangendo o infinito, deve ser infinita” [3].
Portanto, o aperfeiçoamento (espiritual) é constante, paulatino, consequente e progressivo, mas não é infinito ou eterno. Haverá um ponto final, para a caminhada (progresso) do Espírito e este será o alcance da pureza espiritual (itens 112 e 113, de OLE), pois que “percorreram todos os graus da escala e se despojaram de todas as impurezas da matéria”, atingindo “a soma de perfeições de que é suscetível a criatura”.
Em complemento, quanto ao segundo questionamento, o processo que levará à perfeição é totalmente individual, tanto que as Inteligências Superiores, quando consultadas, responderam que a vontade do Espírito é a mola propulsora da progressão, mas que é possível, pelo livre arbítrio, que dadas consciências decidam por não progredir, por algum tempo, mas, jamais, indefinidamente. Isto porque a progressividade é um imperativo (da Lei) em relação à própria existência (espiritual).
Por fim, na terceira indagação, há dois espectros de evolutividade, o moral e o intelectual, conforme a lúcida explanação de Kardec diante da sequência de respostas dadas pelos Espíritos Superiores às questões que ele entabulou, e que estão dispostas no Capítulo VIII, do Livro Terceiro de OLE. Em explicação a uma delas (785), o Professor francês sentencia, elucidativamente: “Há duas espécies de progresso que mutuamente se apoiam e, entretanto, não marcham juntos: o progresso intelectual e o progresso moral”.
Aos dois, ainda, considerada a existência física, corporal, poderíamos agregar o progresso material, consubstanciado nas facilidades que são inventadas, produzidas e compartilhadas entre os homens (encarnados), fruto, obviamente do intento intelectual dos Espíritos e, desejavelmente, da moralidade que permite distribuir àqueles que não têm condições de aquisição, o seu usufruto (“o forte deve trabalhar para o fraco”, item 685-a, de OLE).
O LABIRINTO DO PERFECCIONISMO
Feitas estas considerações, é preciso enfrentar o título deste ensaio, para enquadrar aquilo que conceituamos como “O labirinto do perfeccionismo”, considerando a condição de encarnado diante das informações que a Filosofia Espírita apresenta para a perfeição moral.
De pronto devemos dizer que a obliteração dos sentidos, em face da existência corpórea, não permite divisar com exatidão e completude o que significa a encarnação e quais os propósitos específicos que cada um de nós tem, na presente experiência. Mas, ao recebermos a informação espiritista de que “estamos na Terra para progredir” e que a progressão se efetua pela conquista de virtudes e eliminação dos vícios (os “esforços que faz para domar as más inclinações”), devemos considerar as dificuldades existenciais como um componente importantíssimo para a busca da perfeição (possível).
Por isso, é recomendável a referida busca, mas sem enveredar pela crença e pela atitude de perfeccionismo, que se constitui em um vício de exigir excessivamente a perfeição para consigo mesmo ou de outrem, em todas as circunstâncias. Tal exigência pode levar a comportamentos neuróticos e obsessivos, além de estar associado ao conhecido desânimo que decorre do (natural) fracasso do indivíduo em não poder ser (ainda) pleno, correto, infalível ou, em última palavra, perfeito.
Recordemos que, no curso da História, a cultura da perfeição foi surgindo e sendo acalentada no seio dos povos – sobretudo os intelectualmente mais adiantados. Tal cultura exerceu sobre homens e coletividades a sedução, para modelar, dominar e controlar agrupamentos humanos e até sociedades inteiras. Deste modo, desde a infância, os indivíduos foram e ainda são ensinados e orientados para buscar a perfeição, dentro da ideologia de que o ser humano poderia (e deveria) ser perfeito.
Este perfeccionismo foi responsável, em parte, pela cultura de dominação e subjugação de indivíduos, uns sobre os outros, e os ideais de conquista e colonização, entre povos, por parte de governos e ideologias político-sociais. Mas, um segmento em especial, adotando a interpretação literal dos conteúdos filosófico-religiosos se ocupou da crença do perfeccionismo: as igrejas e grupos religiosos.
O “ideal de perfeição”, assim, foi responsável pelo aparecimento, manutenção e pelas prescrições contidas em mandamentos e sacramentos, instituindo a rigidez de regras, os moralismos, a culpabilidade, a salvação, entre outros. Este ilusionismo já havia sido objeto de alerta por parte do Homem de Nazaré, quando definiu o farisaísmo.
Assim, a naturalidade e a espontaneidade, calcados na autonomia do ser (Espírito) foi sendo substituído pela heteronomia decorrente do respeito e da exigência de condutas pré-estabelecidas, numa prática minuciosa de preceitos e normas religiosos (alguns, até, no curso da História, convertidos em regras sociais gerais, as leis). A santidade, então, passou a ser reverenciada como o nível (de perfeição) a ser alcançado pelos humanos.
Ocorre que, como decorrência da interpretação humana e de conceitos de moralidade definidos por certas autoridades (eclesiásticas), tanto se romantizou em excesso a vida (comum, natural) de pessoas, quanto foram criadas histórias para validar a santificação, mediante processos instituídos e realizados por homens comuns. Quando falamos em “vida comum e natural” enquadramos, também, as ocorrências mediúnicas, que, segundo a Doutrina dos Espíritos, deixaram de habitar o “mundo sobrenatural” (das religiões) e passaram a ser interpretadas como fenômenos naturais, à luz do Espiritismo, como, aliás, nos teria dito o Sublime Galileu: “vós sois deuses, brilhe a vossa luz”.
Deste modo, aquilo que deveria ser o caminho possível de espiritualização de TODOS, passou a ser encarado como uma benesse, um dom, ou uma concessão divina a determinadas pessoas. Daí entendermos a extensão do labirinto de perfeccionismo, porque, em realidade, a partir destas prescrições (humanas), somos todos falíveis, exceto algumas almas “bem-aventuradas” escolhidas por Deus para seus ministérios celestes. O que é um ledo engano, uma falácia.
Transitar, então, por este labirinto da perfeição é desumano, cruel e desanimador. Porque nas contingências existenciais não há ser algum que não passe por sofrimentos e dificuldades. Nestes momentos, é muito compreensível que as nossas imperfeições pessoais estejam expostas aos outros e isto, também, é causa de dor e vergonha para muitos.
Portanto, ao invés da alegria e do prazer na busca pelo autoconhecimento e pelo progresso possível, grande parte das criaturas humanas, por terem a vida “centrada na busca da perfeição”, como exposto acima, veem-se diante da dificuldade e da humilhação de aceitar os próprios erros – inclusive como parte do processo e da caminhada progressiva. Quando poderia nos bastar o “ser bom”, ficamos presos ao “sermos perfeitos” e, então, a principal dualidade espiritual irá sobressair: essência versus aparência. O indivíduo, deste modo, concentra esforços em aparentar ser perfeito…
Não há dúvida que muitas das enfermidades íntimas que desabrocham no soma (corpo) decorrem da insatisfação do ser para consigo mesmo e da sua incapacidade em lidar com as próprias deficiências. O humanismo (real) poderia nos ajudar a passar do estágio de auto exaltação (aparência) para o de autocompaixão (essência).
Que tal pensarmos nisso?
FINALIZANDO
Filosoficamente, o Espírito é o que é (ato) e o que pode vir a ser (potência), representando, assim, o próprio progresso que, na poesia espiritual compreende “do átomo ao arcanjo”, isto é, do elemento inaugural ao ápice possível. Mas este ápice, como visto anteriormente, não poderá ser, jamais, a condição plena de perfectibilidade, conceituada por Aristóteles como o ato puro (Deus). Os Espíritos são, portanto, potencialmente perfeitos ou perfectíveis.
Vale lembrar Jesus de Nazaré e a sua exortação acerca do imperativo (natural) da perfeição (relativa, humana), algo possível e factível para todos nós: “Amai os vossos inimigos; fazei o bem àqueles que vos odeiam e orai por aqueles que vos perseguem e que vos caluniam; porque se não amais senão aqueles que vos amam, que recompensa com isso tereis? Os publicanos não o fazem também? E se vós não saudardes senão vossos irmãos, que fazeis nisso mais que os outros? Os Pagãos não o fazem também? Sede, pois, vós outros, perfeitos, como vosso pai celestial é perfeito” (Mateus: 5; 44, 46 a 48).
Veja-se que esta orientação se destina não à intimidade do ser e suas ilações pessoais, como que fosse dirigido à individualidade (egoística). Do contrário, a prescrição encampa o “ser no mundo”, isto é, a ação individual voltada a outrem, no sentido da fraternidade e da promoção da justiça social. Esta se configura como a fórmula real para o progresso, por meio da inserção do indivíduo na sociedade, atribuindo-lhe a responsabilidade espiritual de fazer o bem (caridade) e de ser solidário. Deste modo, podemos identificar que a essência do progresso é a verdadeira caridade, pois ela implica a prática de todas as demais virtudes e o grau de perfeição espiritual estará sempre na razão direta do amor ao próximo.
As perguntas finais, “para pensar na cama” (lembrando o inesquecível Jô Soares) são: estamos preparados para a construção de nossa perfeição moral, a partir da compreensão da (nossa) própria condição de falibilidade no curso das encarnações? Seria possível não deixar-se levar pelo labirinto do perfeccionismo? O que você responderia (a si mesmo)?
Notas:
[1] Kardec, Allan. “O evangelho segundo o Espiritismo”. Capítulo XVII. Caracteres da Perfeição. Trad. J. Herculano Pires. 59. Ed. São Paulo: LAKE, 2003.
[2] _____. “O livro dos Espíritos”. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE, 2004.
[3] _____. “A Gênese”. Edição conforme o texto original de Allan Kardec da 1ª Edição de 1868. Trad. Carlos de Brito Imbassahy. São Paulo: FEAL, 2008.