A morte da inércia, por Célia Aldegalega

Tempo de leitura: 6 minutos

Célia Aldegalega

Somos Espíritos que encarnam personagens centos de vezes. O nosso impulso é para a perfeição, a nossa vocação é sermos atores, no sentido de agentes, aqueles que agem.

Este escrito foi estimulado por três excertos do Capítulo XII de ”O livro dos Espíritos” (OLE) – Da perfeição moral: “(…) a douradura que não resiste à pedra de toque”, na resposta à questão 895; nos conteúdos das respostas às questões 904-a e 905, sobre a ação de escritores; e nas respostas às questões 909 e 911, respetivamente, “O que lhe falta é a vontade.” e “Há muitas pessoas que dizem quero, mas a vontade só lhes está nos lábios. Querem, porém, muito satisfeitas ficam que não seja como “querem”.

Cabe revelar que a edição que tenho de OLE é de 1982, traduzida por Guillon Ribeiro, e pertenceu a um/uma espírita cuja assinatura, a vermelho, é ilegível, natural do Brasil, ou que lá viveu, como prova o folheto que trazia dentro, com uma oração de Emmanuel, Ato de Louvor, um poema de Maria Dolores, Ausência e Fé, e quadras de vários, psicografados por Francisco Cândido Xavier em reunião pública da Fundação Marietta Gaio, sediada à rua 19 de outubro, 54, Bairro do Bonsucesso, Rio de Janeiro, na noite de 04-Agosto-1982, à qual fui conduzida num alfarrabista de Lisboa, com enredo meio rocambolesco, em outubro de 2016. Como veio o livro parar a um alfarrabista de Lisboa? Desconheço. Assim se entretecem histórias de vidas ao longo do tempo…

Oração e poema ressoaram em mim, fui atingida nas suas correspondências certeiras comigo. Apenas transcrevo as linhas finais de Ato de Louvor: “Por todas as forças que nos arrancam à morte da inércia, a fim de que sejamos servidores ativos na construção de um Mundo Melhor. Obrigado, Senhor!…”.

Estava em vésperas de frequentar estudos de OLE no Centro Espírita Perdão e Caridade, fundado em Lisboa em 1929 por cinco pessoas, das quais não resisto a destacar a notável Maria O’Neill, poeta e escritora, feminista, prima de Eça de Queirós, avó do poeta surrealista Alexandre O’Neill, com extensíssimo curriculum como espírita, e como interveniente ativa na sociedade. Apesar de pertencer a uma família de renome e abastada, chegou a declarar-se socialista.

O OLE que “herdei” veio praticamente imaculado, sem anotações, exceto um traço vertical a vermelho na margem da resposta à questão 807: “Que se deve pensar dos que abusam da superioridade de suas posições sociais, para, em proveito próprio, oprimir os fracos?”. E um sublinhado, também a vermelho, em parte da resposta: “[…] renascerão numa existência em que terão de sofrer tudo o que tiverem feito sofrer aos outros”.

Não sou adepta das noções de castigo, expiações e dívidas, essas e outras palavras afeitas ao entendimento de pessoas europeias e cristãs do século XIX, para as quais o Espiritismo foi sabiamente formatado no seu advento. Duvido de provas e provações impostas, mas creio na ordem natural que gera oportunidades de estabelecer equilíbrios e impele o espírito na direção da perfeição. Portanto, interpreto a sentença lapidar como o enunciado de uma consequência natural em face da tomada de consciência do espírito, e atrevo-me a opinar que, dependendo da extensão e da gravidade do sofrimento infligido, ou que não se mitigou, várias existências podem ser comprometidas.

Dou por mim, amiúde, a pensar com alguma comiseração no futuro de espíritos como os agora Elon Musk e Jeff Bezos, cujas fortunas faraónicas cresceram durante a pandemia, representativos de uma minoria detentora da maioria do dinheiro do mundo, verdadeiras efígies de egoísmo magno, que declararam publicamente a intenção de doarem parte substancial da sua fortuna, mas a vontade só lhes está nos lábios. Querem, porém, muito satisfeitas ficam que não seja como “querem”.

Penso nas administrações de grandes hipermercados cujos lucros subiram, aumentando os produtos de primeira necessidade por conta da crise instalada na Europa pela guerra de Putin à Ucrânia.

Não me consola o que reservem para os seus próprios futuros os que são agora responsáveis pelo sofrimento, pela invisibilidade, pela escassez de muitos…

Eis a passagem mais inquietante do capítulo de OLE em análise: “Quanto maior é o mal, mais hediondo se torna. Era preciso que o egoísmo produzisse muito mal, para que compreensível se fizesse a necessidade de extirpá-lo […]”, resposta à questão 916, ela própria com uma desconcertante declaração sobre o exponenciar do egoísmo na proporção do aumento da civilização: “Como pode a causa destruir o efeito?”.

Como interpretar esta pergunta? A causa é a civilização e o efeito o aumento do egoísmo? O egoísmo é a causa, e a civilização o efeito? Menos me inquieta, contudo, encontrar respostas do que questionar: Será verdadeiramente civilizado aquele ou aquela que se move por egoísmo, não sente empatia, nem se solidariza?

Em “Memorial do Convento”, o romance de José Saramago editado em 1982, o padre Bartolomeu de Gusmão incumbe à vidente Blimunda Sete-Luas a missão de recolher em frascos as vontades dos moribundos, para com elas fazer voar a Passarola. A máquina de voar do padre representa a libertação do jugo dos poderosos e ricos, no reinado de ouro (do Brasil) de D. João V. Do esplendor do rei João V ficou a monumentalidade das obras, da magnífica Biblioteca Joanina na Universidade de Coimbra, ao Convento de Mafra, que o escritor, quando o visitou, prometeu meter num livro, não para contar a história dos vencedores, mas para fazer justiça aos vencidos, àqueles a quem a história não dedica uma linha, mas, sem os quais, nenhuma construção seria erguida.

Comemora-se o centenário do autor lusófono, autoexilado na sequência de ter sido discriminado em Portugal pelo romance “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”. Ateu convicto, enérgico crítico do cristianismo da Igreja Católica em particular, paradoxalmente, revelou extensa sabedoria sobre escrituras, criou personagens com faculdades medianímicas e um Jesus comovedoramente humano. Sondou as chagas da sociedade e expô-las em público, mas escandalizou as estruturas religiosas …e políticas.

Segundo o pendor ufanista da atual idiossincrasia, Jesus de Nazaré foi um vencido. No mês da data convencionada para celebração do seu nascimento, entre ruas engalanadas e montras refulgentes, “a douradura” cai que nem uma pedra no charco da caridade aprazada, quando se manifesta em ações de expurgação de (más) consciências do egoísmo de todo o ano. A caridade natalícia não resiste à pedra de toque, pois se até o comércio se serve da disponibilidade das maiorias para pensarem no “próximo”, enquanto convoca ao consumo desmesurado. Uma celebração que se transmuta num hábito festivo transversal a crentes, descrentes, e amorfos, onde a reflexão consciente quase não tem lugar, e, basicamente, tudo converge para os presentes comprados e recebidos.

A sensação de que o progresso civilizacional, ou, mais assertivamente, tecnológico e científico, intensifica o egoísmo também nos assalta na atualidade, e justamente. Mas poderá acontecer que muitas pessoas já sejam de tal forma sensíveis à hediondez da injustiça e das desigualdades, que as consequências do egoísmo as escandalizem por demais?

Também me intriga o que poderia ter levado o primeiro proprietário do meu OLE a sublinhar a questão 807, entre todas. E se, porventura, terá algo a ver comigo. O que pensar sobre a recorrência do ano de 1982? (era singela estudante de Línguas e Literaturas Modernas…). Não conto saber essas respostas, e confesso, encontro algum fascínio no mistério sobre a personagem, e na nossa relação subliminar. Contudo, é pelo questionamento que se alcança autoconhecimento e a consciência da ignorância própria, bases da filosofia socrática – conhece-te a ti mesmo, aforismo frequentemente atribuído a Sócrates na versão alongada: Conhece-te a ti mesmo e conhecerás o universo e os deuses. Pena que Santo Agostinho não se tenha animado a esclarecer a qual dos sábios, afinal, deve atribuir-se a máxima. Mais segura parece ser a informação de ter sido dístico no pórtico do templo de Apolo, em Delfos, no século IV AEC. Apolo, deus da beleza, da perfeição e da razão, assim articuladas com tamanha sabedoria.

Afinal, somos Espíritos que encarnam personagens centos de vezes. O nosso impulso é para a perfeição, a nossa vocação é sermos atores, no sentido de agentes, aqueles que agem. Shakespeare terá tido a perceção disso: “Todo o mundo é um palco. E todos os homens e mulheres meros atores que nele entram e saem” [1]. Vários autores e sábios, antes dele, a tiveram, desde a antiguidade grega, e glosaram a noção de mundo como um palco. E talvez o capítulo “Da perfeição moral”, além da identificação do egoísmo como a origem de todo o mal, encerre também o meio de atingir a perfeição: agir.

Por isso encontrei correspondência no repto de não me condenar à morte da inércia. Assim me impele a vontade de ser servidora ativa na construção de um mundo melhor. E não estranhem leitores e leitoras que insista na interceção dos assuntos do Espiritismo com as realidades do mundo, passado e presente, onde teremos escolhido encarnar por razões insondáveis nesta dimensão. É que de nada servirá o saber que não seja revertido, ainda que com alcance infinitesimal, na transformação do mundo.

Arremedando Vinícius de Morais, sou da bênção da felicidade, e não do temor ao sofrimento. O ser humano deseja ser feliz, “e natural é o sentimento que dá origem a esse desejo”, de acordo com as reflexões de Allan Kardec após a comunicação de Fénelon, no item “O egoísmo”. Desejo, portanto, terminar de modo feliz, destacando a mais bela palavra contida neste capítulo: SOLIDARIEDADE. Assim possamos festejá-la em todo o ano!

Nota:
[1] Monólogo de Jaques, no Ato II, Cena VII, de As You Like It.

Imagem de Eli Digital Creative por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “A morte da inércia, por Célia Aldegalega

  1. Parabéns e felicidade tanto pelo texto como por uma passagem de ano repleta de realizações e liberdade para refletirmos, questionarmos e buscarmos esta transformação social que tanto sonhamos. O momento é difícil mas a vontade de mudar e de replicar esta vontade é tão imensa que mesmo sabendo ser um otimista inveterado não vou perder a vontade de continuar sonhando alto. Abraços de um brasileiro que luta sempre contra a mesquinharia reinante no mundo atual

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