Jacira Jacinto da Silva
A proposta da Filosofia que professamos é humanista, existe para e pela humanidade, reconhecendo nos seres humanos os grandes protagonistas da história. Podemos e devemos desejar o melhor, colocando nossa energia na construção de um mundo mais solidário e digno, em que não haja fome, miséria, violência e tanto sofrimento. A grande esperança reside na certeza da reencarnação, instituto mal compreendido pelas seitas maniqueístas e punitivas, mas extremamente libertador para os humanistas.
No Capítulo XII da parte terceira de “O livro dos Espíritos”, Kardec tratou da Perfeição Moral. No referido capítulo encontra-se um estudo com vasto conteúdo, cujos subtítulos mereceriam, cada um, um artigo à parte, dada a importância de cada um deles. Mesmo reconhecendo a necessidade de explorar sempre e cada vez mais temas relacionados às virtudes e aos vícios, às paixões, ao egoísmo etc., o presente trabalho não comporta esse aprofundamento, tratando de ressaltar especialmente os pontos essenciais que implicam no mais emblemático de todos, ao menos no meu entendimento, que se traduz no título “Caracteres do homem de bem”.
Todo o estudo de “O livro dos Espíritos” pode constituir um acréscimo consistente ao conhecimento, de modo que será sempre válido dedicar atenção a cada tema. Indubitavelmente, saber que nesse livro a caridade desinteressada foi considerada a mais meritória de todas as virtudes, impõe-nos o dever de entender melhor a que se referiam os espíritos quando utilizavam a expressão. De outro lado, vale recordar que o interesse pessoal foi considerado sinal mais característico da imperfeição.
Também se aprende no estudo do mencionado capítulo, que “O apego às coisas materiais constitui sinal notório de inferioridade, demonstrando o ser humano, pelo desinteresse, que encara o futuro de um ponto mais elevado.” Do mesmo modo, ali se vê que o acúmulo permanente de riqueza sem compromisso com o sofrimento alheio constitui “um compromisso com a consciência má”.
Interessa-nos muito a pergunta n. 902, feia por Kardec aos Espíritos (“902. Será reprovável que cobicemos a riqueza, quando nos anime o desejo de fazer o bem?”), e a respectiva resposta: “Tal sentimento é, não há dúvida, louvável, quando puro. Mas, será sempre bastante desinteressado esse desejo? Não ocultará nenhum intuito de ordem pessoal? Não será de fazer o bem a si mesmo, em primeiro lugar, que cogita aquele, em quem tal desejo se manifesta?”
Mais do que conter sublimes lições para o nosso Espírito, egoísta e orgulhoso, este capítulo expõe assertivamente a pior das nossas dificuldades, a de nos enxergarmos em essência e reconhecermos que a Perfeição Moral, neste estágio de nossas existências, vale quase como uma utopia. Mas, para que servem as utopias?
Lembrando Eduardo Galeano, “A utopia está lá no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para que eu não deixe de caminhar”.
A utopia espírita nos chama a caminhar. Dando um passo, novos se apresentam. Mas a expressão pode ser utilizada também como figura de linguagem, considerando a importância da fé e da esperança: no futuro, em nós, nos outros e no mundo. Serve para crermos nessa potencialidade existente na natureza, com a qual fomos agraciados no início de tudo. A perfeição moral é tida pelo espírita, portanto, como um estágio muito superior ao que experimentamos hoje; um horizonte para onde somos chamados, à medida que o compreendemos e vislumbramos melhor.
É muito salutar enxergar esse horizonte positiva e propositivamente, que nos alimenta e nos impulsiona, pois nessa crença reside a força para prosseguir mais confiantes, valentes e destemidos. Não obstante, não se pode descartar uma dose boa de senso de realidade. Reconhecer que nos falta muito, retira de nós a arrogância e o sentimento de superioridade, dos quais nos enamoramos facilmente apesar de verdadeiramente não os possuirmos, mas pela nuvem que embaralha a nossa vista, somos levados a descuidar dos deveres diários na falsa impressão de que já estaríamos num patamar mais elevado.
Essa condição precária decorrente da nuvem de fumaça que altera a nossa percepção da realidade tem justificativa clara na Teoria Espírita.
A Filosofia que nos orienta é permeada pela indicação do egoísmo como o principal e mais radical dentre os vícios humanos, dele derivando todo mal. Sugere que o estudo de todas as imperfeições levará a identificar que no fundo de todas há egoísmo, “Por mais que lhes deis combate, não chegareis a extirpá-los, enquanto não atacardes o mal pela raiz, enquanto não lhe houverdes destruído a causa”.
O estudo do capítulo dedicado à Perfeição Moral permite compreender melhor o significado da expressão “homem de bem”, mesmo quando nossa conduta não observa os parâmetros elementares indicados no texto, de acordo com o qual, verdadeiramente, homem de bem é o que pratica a lei de justiça, amor e caridade, na sua maior pureza.
Essa única frase já colocaria por terra a nossa pretensão a ostentar tal título. Mas Kardec priorizou o detalhamento da questão e prestigiou o complemento da mensagem que diz: Se interrogar a própria consciência sobre os atos que praticou, perguntará se não transgrediu essa lei, se não fez o mal, se fez todo o bem que podia, se ninguém tem motivos para dele se queixar, enfim se fez aos outros o que desejara que lhe fizessem.
Muito embora reivindiquemos o qualificativo de “cidadãos de bem”, considerada a nossa posição social, quanto cumprimos minimamente as obrigações legais, o esforço que fazemos para não nos locupletarmos indevidamente, uma análise profunda dos sentimentos que povoam os nossos dias nos recorda de que estamos bem longe de possuir o sentimento de caridade e de amor ao próximo sem intentar retribuição, que não somos idealmente bondosos, humanitários e benevolentes para com todos, vendo todos como irmãos, sem distinção de qualquer natureza, nem mesmo de etnia ou de crença.
Essas lições espíritas nos obrigam a refletir sobre o que determina o nosso caráter e possivelmente nosso grau evolutivo, pois apesar de adotarmos determinadas posturas que parecem indicar uma vida pautada na ética, é no dia a dia que revelamos quem somos efetivamente. O que nossos filhos, amigos, vizinhos, colegas de trabalho e de vida social, veem diariamente no nosso comportamento é a efetiva demonstração do que somos.
Pergunto-me como trato alguém que:
a) me presta um serviço (pago o que eu mesma gostaria de receber se o fizesse?);
b) me solicita uma ajuda (ouço-o atentamente como gostaria de ser ouvida em situação semelhante?);
c) me conta que enfrenta uma enfermidade grave (dedico-lhe o tempo e a atenção que gostaria de receber se fosse eu a doente?);
d) comete um erro no agir, causando-me consequências ruins (tenho a capacidade de me colocar no lugar da pessoa e dialogar com respeito?);
e) me mostra a miséria e a escassez absoluta de recursos (tenho a capacidade de abdicar do mínimo que possuo?);
f) expõe uma fragilidade, seja nos costumes, seja de algo que não deveria ter feito (apresento um juízo de valor negativo, ou ajo com a indulgência que esperaria para mim?); ou,
g) precisa da minha presença, companhia, carona, trabalho (tenho disponibilidade, ou sempre há milhões de tarefas prioritárias?)…
Por certo, mais que isso não seria necessário. Outras tantas questões entrariam nesse rol e revelariam quão distante se encontra a Perfeição Moral preconizada no capítulo inspirador deste estudo, cabendo-nos lembrar de que “A moral sem as ações é o mesmo que a semente sem o trabalho. De que vos serve a semente, se não a fazeis dar frutos que vos alimentem?”. Mas há grandes esperanças que por vezes são denominadas de “consolações”, apresentadas pelo Espiritismo.
A proposta da Filosofia que professamos é humanista, existe para e pela humanidade, reconhecendo nos seres humanos os grandes protagonistas da história. Podemos e devemos desejar o melhor, colocando nossa energia na construção de um mundo mais solidário e digno, em que não haja fome, miséria, violência e tanto sofrimento. A grande esperança reside na certeza da reencarnação, instituto mal compreendido pelas seitas maniqueístas e punitivas, mas extremamente libertador para os humanistas.
Cremos que a presente existência constitui apenas uma experiência e que desenvolver mecanismos capazes de promover educação, saúde, cultura, ciência, justiça social e paz, aproximando-nos da proposta espírita de Perfeição Moral, objetivo possível de se atingir, pois depende de nós e nós podemos.
Para finalizar, deixo, a propósito, um trecho do mencionado capítulo que sustenta a afirmação supra: “[…] O homem deseja ser feliz e natural é o sentimento que dá origem a esse desejo. Por isso é que trabalha incessantemente para melhorar a sua posição na Terra, que pesquisa as causas de seus males, para remediá-los. Quando compreender bem que no egoísmo reside uma dessas causas, a que gera o orgulho, a ambição, a cupidez, a inveja, o ódio, o ciúme, que a cada momento o magoam, a que perturba todas as relações sociais, provoca as dissensões, aniquila a confiança, a que o obriga a se manter constantemente na defensiva contra o seu vizinho, enfim a que do amigo faz inimigo, ele compreenderá também que esse vício é incompatível com a sua felicidade e, podemos mesmo acrescentar, com a sua própria segurança”.
Imagem de Reimund Bertrams por Pixabay