Análise comparativa doutrinária das edições de A Gênese, por Marco Milani

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Marco Milani

Imagem de Mirko Stödter por Pixabay

Os resultados comparativos do Grupo Virtual de Estudos indicam a existência de passagens com ambiguidade ou divergências interpretativas sobre os impactos doutrinários gerados pelas alterações ocorridas na 5ª edição de “A Gênese”.

No artigo intitulado “Uma Infâmia”, publicado em 1884 no jornal “Le Spiritisme”, órgão de divulgação da União Espírita Francesa, Henri Sausse, o biógrafo de Kardec, afirmou que as alterações sofridas pela 5ª edição da obra “A Gênese” eram significativas e lançou suspeitas não somente sobre a autoria – pois foi publicada após a desencarnação de Kardec –, mas também sobre a qualidade doutrinária das mesmas. Após um período de acusações e desmentidos envolvendo dirigentes e adeptos franceses, o caso adormeceu.

No final de 2017, com a valorosa pesquisa da diplomata brasileira Simoni Privato Goidanich, apresentada no livro “O Legado de Allan Kardec”, foram apontadas inconsistências documentais que reacenderam essa polêmica e, novamente, a autoria da 5ª edição passou a ser questionada, bem como suscitou a natural indagação sobre a qualidade doutrinária das alterações.

Pesquisadores de diferentes países iniciaram, assim, a busca por fatos históricos que pudessem auxiliar no esclarecimento da questão autoral e, simultaneamente, procederam a análises comparativas sobre as alterações.

Em “Nota” publicada em maio/2018, a União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE-SP), movida pela prudência e voltada ao aprofundamento das pesquisas doutrinárias, destacou a pertinência de se considerar a 4ª edição, até então, como aquela em que não havia dúvidas sobre a autoria da obra e recomendou, aos estudiosos espíritas e não espíritas interessados no assunto, que realizassem análises comparativas entre a edição original e a modificada. A revista “Dirigente Espírita”, veículo de comunicação da USE-SP vem, desde então, publicando comentários sobre os capítulos analisados.

Mantendo a proposta comparativa, recentemente o Departamento de Doutrina da USE-SP organizou o Grupo Virtual de Estudos (GVE), o qual contou com 16 estudiosos espíritas, residentes em diferentes regiões do país que fomentaram uma ampla análise doutrinária sobre as alterações das respectivas edições. Findas as atividades o grupo publicou um relatório final, contendo as conclusões derivadas dos estudos [2].

A seguir, são antecipados alguns resultados do GVE.

Resumidamente, sete capítulos (ns. 8, 9, 10, 14, 15, 16 e 18) da 5ª edição apresentaram itens com ambiguidade ou divergências sobre a existência de impactos doutrinários (aqui entendidos como mudanças na compreensão sobre princípios e conceitos já firmados no corpo teórico do Espiritismo, apresentados em obras anteriores ou na mesma obra) e os demais onze capítulos não apresentaram prejuízos ou benefícios doutrinários.

Para representar algumas dessas ambiguidades, neste artigo, foram selecionados itens específicos dos capítulos 8, 14, 15 e 18 como claros exemplos de divergências interpretativas.

O acréscimo do item 7 no capítulo 8, intitulado Alma da Terra, gerou, para alguns integrantes do GVE, a impressão de que houve um ganho doutrinário sobre este assunto, pois fora abordada a questão sob um novo ponto de vista, tal como apresentado na Revista Espírita de set/1868. Para outros, entretanto, tal item nada agregou doutrinariamente, uma vez que o assunto já teria sido devidamente abordado em obras anteriores, como na questão n. 144, de “O Livro dos Espíritos”.

Com relação ao capítulo 14, dois itens atraíram a atenção dos pesquisadores. O item 1, da edição original, contém o seguinte trecho:
“[…] os fenômenos em que prepondera o elemento espiritual, não podendo ser explicados unicamente por meio das leis da matéria, escapam às investigações da Ciência.”

Na edição modificada, a palavra “matéria” foi substituída por “natureza”. Assim, a frase se transformou em:
“[…] os fenômenos em que prepondera o elemento espiritual, não podendo ser explicados unicamente por meio das leis da natureza, escapam às investigações da Ciência.”

Alguns consideraram que a substituição não gerou impacto doutrinário pois, ainda que “natureza” pudesse levar a uma interpretação equivocada, em uma leitura isolada, a palavra poderia assumir diferentes significados, estabelecendo-se relações com outras passagens, nesta e em outras obras de Kardec. Logo, não haveria incoerência, se fosse considerada uma perspectiva mais abrangente. O item 1, do capítulo 12, foi citado como exemplo e para analogia, de como os cientistas materialistas definiam milagres: um ato do poder divino contrário às leis conhecidas da natureza. Outros, contudo, apontaram que houve, sim, prejuízo doutrinário por considerarem evidente a distorção semântica entre as palavras e discordaram de que “natureza” e “matéria” poderiam ser consideradas sinônimos. Se assim fosse, se exigiria uma postura relativista, tomando a parte pelo todo, uma vez que os elementos materiais e espirituais são, na obra kardeciana, distintos e a natureza engloba ambos. Os itens 1, 8, 9, 10, 13, 16 e 17, do capítulo 13 – Caracteres dos milagres, da própria obra “A Gênese”, tanto na edição original quanto na edição modificada, expressam o mesmo sentido lógico quando se usa leis da natureza ou fatos naturais, englobando o elemento espiritual. Portanto, não é compatível com a substituição ocorrida na 5ª edição, caracterizando, assim, evidente prejuízo doutrinário.

No item 14, do capítulo 14, da edição modificada, foi acrescentada a afirmação de que o Espírito é um ser “fluídico”. Para alguns, essa afirmação pode estar relacionada com a observação do livro “O que é o Espiritismo”, Cap. 2, item 14, em que se aponta que alma é um ser simples; o Espírito um ser duplo; e o homem um ser triplo. Assim, o homem teria um componente material inseparável e, então, a alteração não geraria qualquer impacto doutrinário, em face desta relação. Para outros, o trecho em análise, na edição original de “A Gênese” é bem mais claro e coerente doutrinariamente, favorecendo a leitura, pois o elemento espiritual se serve do elemento material e eles não se confundem, mantendo a distinção contida na edição originária. Logo, o Espírito não pode ser fluídico, como o seu perispírito o é. No próprio capítulo 2 de “O Livro dos Espíritos”, está clara e inequívoca a diferenciação entre matéria e espírito; portanto, o texto da edição original mantém a coerência e não produz qualquer ambiguidade.

No item 59 do capítulo 15, da edição original, conta-se:
“Os outros discípulos vieram com a barca, e, como não estavam distantes da terra mais de duzentos côvados, eles daí puxaram a rede cheia de peixes. (João, 21:1 a 8)”.

Na 5ª edição, foi substituída a palavra “terra” por “mar”, apresentando a seguinte frase “[…] e, como não estavam distantes do mar”. Todos os integrantes do GVE concordaram se tratar de erro na edição modificada, cuja frase está divergente da versão bíblica. Logo, na 4ª edição o trecho está mais coerente.

No mesmo capítulo 15, da 5ª edição, o item 67, presente na edição original, foi eliminado integralmente na 5ª edição. O item suprimido propõe as hipóteses plausíveis para explicar o desaparecimento do corpo físico de Jesus após a sua morte. Para alguns, inexiste impacto doutrinário porque hipóteses não fariam parte da Doutrina Espírita, bem como não ficaria comprometida a discussão do tema (o fato de que Jesus teve um corpo carnal), como já destacado em outros trechos neste capítulo. Para outros, a supressão do item 67 acarretou grave prejuízo doutrinário, não somente para o desenvolvimento do conteúdo, mas porque o item suprimido fora considerado relevante por Kardec, tanto que este o citou expressamente nas referências do livro “Catálogo Racional para se formar uma biblioteca espírita”, exatamente para alertar os leitores e se contrapor ao conteúdo do livro “Os Quatro Evangelhos”. Como a questão do desaparecimento do corpo de Jesus é o cerne do trecho compreendido entre os itens 64 a 68, na edição original, a alteração procedida na quinta edição ocasiona incompletude e gera grave prejuízo para a discussão doutrinária.

O capítulo 18 foi um daqueles que mais sofreu alterações, com a inserção de longos textos e mensagens que, mesmo presentes na “Revista Espírita”, não implicam a concordância universal. Dentre outros, destacam-se os itens 8, 9, 10, comentados a seguir.

Sobre os itens 8 e 9, as longas inserções realizadas envolvendo a relação entre acontecimentos físicos e a transformação moral dos indivíduos geraram interpretações variadas. Para alguns, não houve impacto doutrinário, porque esta relação teria sido abordada em capítulos anteriores, mencionando-se, por exemplo, os flagelos destruidores e os cataclismos como ocasiões de chegadas e partidas coletivas, bem como as influências destes para a evolução moral dos Espíritos. Para outros, entretanto, as alterações quebraram a sequência lógica do conteúdo original, com a inclusão dos textos de Arago e Dr. Barry, pois Kardec estava discorrendo sobre as transformações morais, valorizando, assim, o livre-arbítrio do indivíduo. E, com as inserções, retomou-se a questão dos acontecimentos físicos atrelados à evolução moral, sinalizando, indevidamente, que a evolução do indivíduo teria uma relação dependente de acontecimentos físicos, caracterizando-se como uma incoerência doutrinária.

Sobre a inserção do item 10, decorre uma situação de vínculo direto entre fenômenos astronômicos e revoluções físicas do globo com o processo de renovação moral da humanidade. Destaca-se o seguinte trecho:
“Anunciando a época de renovação que se havia de abrir para a Humanidade e determinar o fim do velho mundo, a Jesus, pois, foi lícito dizer que ela se assinalaria por fenômenos extraordinários, tremores de terra, flagelos diversos, sinais no céu, que mais não são do que meteoros, sem ab-rogação das leis naturais. O vulgo, porém, ignorante, viu nessas palavras a predição de fatos miraculosos.”

Alguns, no GVE, entenderam que a inserção desse item não causaria impacto doutrinário, pois os acréscimos deveriam ser contextualizados com outras passagens e não deveriam ser lidos isoladamente para a compreensão do conteúdo.

Os demais integrantes do GVE, entretanto, considerando que tremores de terra e meteoros ocorrem incessantemente no planeta, em diferentes gradações e frequências, entenderam que os “sinais no céu” não seriam presságios de mudanças morais da humanidade nem derrogações das leis naturais. Então, é incoerente a afirmação de que seria “lícita” a associação do período de renovação moral a fenômenos extraordinários, como se houvesse um calendário astronômico e geológico. A Astrologia, por sinal, adota a perspectiva da influência dos astros no comportamento e destino do ser humano e tal suposição é plenamente rechaçada pelo ensino dos Espíritos, como observado, por exemplo, nas questões 859 e 867 de “O Livro dos Espíritos”. Assim, o item oferece elementos ambíguos e com prejuízo doutrinário.

Na 5ª edição, também, foi inserida uma “Nota” referente ao item 10, apresentada a seguir.
A terrível epidemia que, de 1866 a 1868, dizimou a população da Ilha Maurícia, teve a precedê-la tão extraordinária e tão abundante chuva de estrelas cadentes, em novembro de 1866, que aterrorizou os habitantes daquela ilha. A partir desse momento, a doença, que reinava desde alguns meses de forma muito benigna, se transformou em verdadeiro flagelo devastador. Sem dúvida houve um sinal no céu e talvez nesse sentido é que se deva entender a frase — estrelas caindo do céu, de que fala o Evangelho, como sendo um dos sinais dos tempos. (Pormenores sobre a epidemia da ilha Maurícia: Revue Spirite, de julho de 1867, pág. 208, e novembro de 1868, pág. 321.)

Para alguns, não houve impacto doutrinário por não entenderem que a “Nota” faça uma associação direta entre cataclismos como anunciadores da renovação moral, mas que há alterações físicas e morais e elas poderão coincidir. Para outros, entretanto, há evidente prejuízo doutrinário, pois associam-se fenômenos físicos aos morais, de maneira interdependente. Para mais detalhes sobre a incoerência dessa Nota, ver a revista “Dirigente Espírita”, n. 168, p. 5.

Diferentemente do que os indivíduos mais afeitos à idolatria e ao comodismo intelectual poderiam supor, a proposta analítica realizada pelo Grupo não se baseou na discussão sobre a autoria das modificações ocorridas na 5ª edição, para atestar, a priori, se tais modificações gerariam impactos doutrinários favoráveis ou desfavoráveis. Sob essa perspectiva, buscou-se afastar o relativismo inconsequente que a tudo justifica, culminando com a identificação de trechos questionáveis, ainda que sem qualquer pretensão de unanimidade.

Os resultados comparativos do GVE, acima antecipados, indicam a existência de passagens com ambiguidade ou divergências interpretativas sobre os impactos doutrinários gerados pelas alterações ocorridas na 5ª edição de “A Gênese”.

Tal fato colide com a clareza, simplicidade e objetividade da linguagem desejadas pelo educador Allan Kardec, como exemplificado no trecho a seguir, ao tratar do Espiritismo:
“Fala uma linguagem clara, sem ambiguidades. Nada há nele de místico, nada de alegorias suscetíveis de falsas interpretações. Quer ser por todos compreendido, porque chegados são os tempos de fazer-se que os homens conheçam a verdade”. (“O livro dos Espíritos”, Conclusão, VI)

Kardec e os Espíritos escreveram para o público em geral, aliando profundidade teórica e excelência metodológica, sem a exigência de um formalismo hermenêutico para se compreender os princípios e valores espíritas.

Assim, diante da valorosa oportunidade de estudos e considerando a 4ª edição de “A Gênese” como mais adequada para parte significativa dos pesquisadores deste Grupo, quando observados determinados itens (sem desconsiderar eventuais aperfeiçoamentos e correções gramaticais realizados no texto da 5ª edição), recomenda-se a qualquer adepto a análise comparativa entre as edições, sob a perspectiva doutrinária, para verificarem, por si mesmos, os eventuais impactos ocorridos.

Notas do ECK:
[1] Artigo originalmente publicado na revista digital “Dirigente Espírita”, número 180, de novembro/dezembro de 2020, com pequenas adaptações.
[2] Referido Relatório será esmiuçado na forma de artigos e publicado futuramente nesta Revista.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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