A lógica de Kardec perante as controvérsias das edições
Nelson Santos
“A fé cega nada examina, aceitando sem controle o falso e o verdadeiro”, Allan Kardec (“O evangelho segundo o Espiritismo, Cap. XIX, item 6).
Rivail, acadêmico, professor e tradutor, figura ligada à educação, à ciência e à filosofia, era membro de diversas sociedades científicas e variadas academias, portanto, adepto da racionalidade e, como tal, cético, analítico e crítico. Sua erudição tornou possível tão aprofundado estudo dos fenômenos mediúnicos, físicos e espirituais que ele realizou. Teve conhecimento do fenômeno das mesas girantes que não lhe despertaram interesse, pois causas físicas, como magnetismo e a eletricidade, poderiam explicá-los. Algum tempo após foi informado de uma nova descoberta: as mesas girantes respondiam a perguntas, no que Rivail considerou como inexplicável, pois tal era contrário às leis naturais; sobre isto, afirmou, ceticamente, que a ideia de uma mesa falante não entrava em seu cérebro. Mais adiante, embora ainda cético, resolveu realizar uma investigação aprofundada dos fenômenos.
Assim, Rivail, em um trabalho hercúleo, pesquisou e testou diversas hipóteses para explicar a fenomenologia, onde desenvolveu um método experimental embasado na ciência de observação para obter informações úteis e confiáveis sobre a dimensão espiritual do universo. Procedeu, deste modo, à investigação racional e empírica das relações entre os Espíritos desencarnados e a humanidade encarnada, metodologia fundamentada na observação, comparação, análise sistemática e conclusão.
Rival, já como Kardec, em 1857, publicava a obra primeira que compõe o corpo doutrinário espiritista: “O livro dos Espíritos” que, em seu frontispício, já define seu caráter – filosofia espiritualista. Adiante, seguiram-se pela ordem: em 1861, “O livro dos Médiuns” de cunho científico e experimental; em 1864, “O evangelho segundo o Espiritismo” abordando os aspectos morais; em 1865, “O Céu e o Inferno”, que versa sobre a situação da alma durante e após a morte e sobre as penalidades e recompensas futuras; e, em 1868, “A Gênese – os milagres e as predições segundo o Espiritismo”, um estudo profundo sobre a criação do Universo, segundo as Leis Naturais.
Ainda, em 1858, fundou a “Revue Spirite”, seu imenso laboratório, onde reproduzia suas atividades na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE) trazendo detalhes que não constam nos outros livros, sendo assim, uma segura continuidade doutrinária apresentando subsídios doutrinários sempre após a análise criteriosa das mensagens mediúnicas. Todo o arcabouço espiritista, por isto, se acha embasado na racionalidade e na análise crítica e, como tal, deveria ter incutido nos espíritas o senso analítico e o conhecimento doutrinário, os quais seriam o bastante para analisar suas obras e identificar possíveis desvios em edições posteriores.
Contudo, justamente sua última e mais madura obra, “A Gênese” se viu envolta em controvérsias geradas pelas diferenças entre as quatro primeiras edições, de cunho idêntico, publicadas por Kardec e a quinta edição publicada postumamente. Seriam ou não adulterações? Entendamos o caso…
A polêmica foi iniciada, ainda, no final do século XX, em uma das salas filosóficas de estudos da plataforma “PalTalk”, especificamente naquela em que ocorria o estudo dos conteúdos de “A Gênese”, onde Carlos de Brito Imbassahy se apercebeu e apontou divergências entre a rara obra em seu poder – o original da 3ª edição em francês – com as traduções disponíveis no Brasil – todas baseadas na 5ª edição francesa, dita como revista, corrigida e ampliada. Em um primeiro momento se pensava em uma adulteração que teria ocorrido na tradução brasileira, mas, posteriormente, constatou-se, na comparação com as quatro primeiras edições originais francesas publicadas, idênticas entre si, que o problema estava justamente na quinta edição em francês. Neste sentido, uma das divergências apontadas foi justamente a retirada do item que versava sobre o desaparecimento do corpo físico de Jesus de Nazaré.
A pesquisa de Simoni Privato Goidanich reacendeu a polêmica, na década passada, consistindo em um minucioso e primoroso trabalho de investigação, “in loco”, com o acesso a documentos oficiais e históricos assim como registros de repartições francesas, pertinentes às obras fundamentais do Espiritismo. O resultado de seu trabalho foi transformado em obra com a publicação de “O legado de Kardec”, listando as principais dúvidas reais (e não especulativas) sobre a quinta edição.
Mais recentemente, com a possibilidade de pesquisa acerca de arquivos da “Bibliothèque Nationale de France” somados aos acervos de “Canuto de Abreu”, “Allan Kardec On Line – AKOL” e “Forestier”, agora sob responsabilidade do “Projeto Kardec”, vinculado à Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), o ímpeto da “busca da verdade” ficou cada vez mais evidente.
A notícia de “mais uma quinta edição” de “A Gênese”, existente na “Bibliothèque Publique et Universitaire de Neuchâtel”, esta datada de 1869, mas de conteúdo idêntico à publicação de 1872 – exceto no que se refere à diagramação da folha de rosto da obra – colocou mais ingredientes para as suspeitas de alteração póstuma da obra, já que inexistem, até o momento, quaisquer documentos comprobatórios (como a declaração do impressor e o depósito legal) circunstância, aliás, já devidamente apontada na obra de Goidanich, o que nos endereça às dúvidas em relação à veracidade daqueles exemplares.
Pelos acervos e acessos disponibilizados somos sabedores que Kardec pretendia, como aliás era de seu feitio, ampliar os entendimentos doutrinários na obra. Mas, até onde o realizou e quais seriam, efetivamente, as alterações que ele desejava fazer em relação à edição que ele publicou, ainda em vida, não o sabemos. Soma-se a isso a apresentação de uma carta de Kardec em que ele afirma peremptoriamente que estava abandonando a revisão de “A Gênese” devido a precariedade de sua saúde.
Enquanto inexistem quaisquer e eventuais provas acerca de uma hipotética edição derradeira (quinta), de “A Gênese”, acompanhamos a linha de raciocínio da Fédération Spirite Française e do Le Mouvement Spirite Franchophone que, por prudência, adotam a primeira edição. Neste sentido, figura como essencial a máxima de Erasto:
“O que a razão e o bom senso reprovam, rejeitai corajosamente. Mais vale rejeitar dez verdades do que admitir uma única mentira, uma única teoria falsa”(“O livro dos Médiuns, Cap. XX, Item 230).
Imagem de Dariusz Sankowski por Pixabay bay