Antônio Cesar Perri de Carvalho
Seria oportuno que as editoras brasileiras fizessem um esforço para se esclarecer as dúvidas sobre a fidedignidade das edições francesas após a desencarnação de Kardec e, se for o caso, acrescentar-se nota(s) explicativa(s) nas edições traduzidas para o português.
Anúncio da “Revue Spirite”, de janeiro de 1868 informava que “A Gênese” tinha sido lançada no dia 6 de janeiro de 1868, em Paris. [1] Sabe-se também que o depósito legal deste livro no Ministério do Interior da França foi feito por Allan Kardec no dia 4 de janeiro de 1868.
Com esta obra completa-se o quinto volume das chamadas Obras Básicas da Codificação.
Os temas são desenvolvidos em três partes – A gênese segundo o Espiritismo; Os milagres segundo o Espiritismo; As predições segundo o Espiritismo -, desdobrando-os em dezoito capítulos.
Destacamos a importância do capítulo “Fundamentos da Revelação Espírita”, onde Kardec faz significativa colocação:
“[…] o que caracteriza a revelação espírita é que a sua origem é divina, que a iniciativa pertence aos espíritos e que a elaboração é o fruto do trabalho do homem.” [2]
Essa afirmação mostra a responsabilidade dos encarnados, notadamente nas condições de liderança, gestão nas instituições e as ações do movimento espírita. O Mundo Espiritual orienta, mas as decisões dependem de nossas escolhas. O Codificador discorre sobre a relação entre Espiritismo e Ciência e faz importante ponderação:
“Caminhando com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem que está errado em um determinado ponto, ele se modificaria sobre esse ponto; se uma nova verdade se revela, ele a aceita”. [2]
Kardec, intelectual e inspirado, analisou o desenvolvimento do planeta e da civilização procedendo a uma analogia dos chamados dias bíblicos com os períodos geológicos e de maneira totalmente diferenciada das religiões tradicionais. E comenta a posição da Terra no amplo contexto do Cosmo.
O perispírito é abordado em vários capítulos do livro, ficando mais clara a explicação sobre a ocorrência dos fenômenos mediúnicos e dos chamados “milagres” e aparições de Jesus, descortinando-se o mundo espiritual:
“As aparições de Jesus após a sua morte são narradas por todos os evangelistas com detalhes circunstanciados que não permitem que se duvide da realidade do fato. […] perfeitamente explicadas pelas leis fluídicas e pelas propriedades do perispírito”. [2]
Em comentários sobre a nova geração deve ficar claro que esta não estaria circunscrita ao ambiente espírita e faz a relação entre transição e nova geração. Estes temas deveriam ser estudados pelos espíritas até para se evitar interpretações superficiais e até estranhas com relação ao período em que vivemos.
A “Revue Spirite”, ao longo do ano de 1868, transcreveu vários trechos da nova obra com o objetivo de divulgá-la, traz mensagem de São Luís sobre o novo livro e noticia a 2a edição em março e a 3a edição em abril. Até a desencarnação de Kardec ocorreram quatro edições desta Obra Básica. [1] e [3]
A partir daí, surgem dúvidas sobre a fidedignidade das primeiras edições de “A Gênese” em francês, lançadas logo após a desencarnação do Codificador.
Em 2017 a Confederação Espírita Argentina (CEA) editou em espanhol a versão inicial de A Gênese, de janeiro de 1868, e, em reunião da Comissão Executiva do Conselho Espírita Internacional, ocorrida em Bogotá (Colômbia), em outubro de 2017, deu conhecimento que apoiou a sra. Simoni Privato Goidanich, em pesquisa junto aos Arquivos Nacionais da França e na Biblioteca Nacional da França, localizadas em Paris, na própria CEA e na Associação Espírita Constancia, de Buenos Aires. A oportuna e detalhada pesquisa, o livro El legado de Allan Kardec, de Simoni Privato Goidanich (lançado na sede da Confederação Espírita Argentina, aos 3/10/2017) mostrou que um único exemplar, publicado em 1868, foi depositado legalmente durante a existência física de Allan Kardec na Biblioteca Nacional da França. Assim, para a autora, o Codificador não teria modificado o conteúdo de seu livro. [4], [5] e [6] O livro de Simoni é um rico repositório da história do movimento espírita francês imediatamente após a desencarnação de Kardec.
Henri Sausse, o principal biógrafo de Kardec e dinâmico líder espírita francês, em artigos – um deles intitulado “Uma infâmia” – publicados no jornal “Le Spiritisme”, em 1884 e 1885, já levantava questões sobre as adulterações na 5a edição de A Gênese e apontou 126 alterações no texto original. [5]
Episódios históricos também ficam claros em livro “Beaucoup de Lumière” (1884), de Berthe Fropo, disponibilizado em edição digital bilíngue: a tradução em português e o original em francês. A autora foi espírita atuante; fiel a Kardec; amiga, vizinha e apoiadora de Amélie Boudet. Fropo comenta ações polêmicas e desvirtuamentos doutrinários nas mãos de Leymarie “por influência de ideologias outras, como o roustanguismo e — ainda mais fortemente — a mística doutrina da Teosofia de Madame Blavatsky e do Coronel Olcott”. [3] Nessas dúvidas antigas suspeita-se que as alterações de trechos de “A Gênese” teriam sido promovidas provavelmente por Pierre-Gaëtan Leymarie (1827-1901), como redator-chefe e diretor da “Revue Spirite” (1870 a 1901), gerente da “Librairie Spirite” (1870 a 1897) e presidente da “Sociedade para a Continuação das Obras Espíritas de Allan Kardec” [3] e [7], cuidando das edições e autorizações de traduções de obras de Kardec [3], e, inclusive das traduções pioneiras das obras de Kardec, em nosso país, no caso para Joaquim Carlos Travassos (1839-1915), com informação publicada na Revista Espírita. Com exceção de “A Gênese”, utilizando o pseudônimo de “Fortúnio”, Travassos traduziu quatro obras da Codificação para o português, em 1875 e 1876.7 Há interessante observação de Zêus Wantuil em biografia sobre Travassos, sobre uma nota do tradutor: “[…] sem nos referirmos ao bom estilo do tradutor, é o judicioso esclarecimento, de fundo rustenista, que vem na obra “O Céu e o Inferno” […]”. [7]
As traduções para o português, em geral, foram feitas a partir da 5ª edição francesa do ano de 1872. A tradução de “A Gênese”, realizada por Evandro Noleto Bezerra para a FEB, utiliza a 5a edição francesa. O tradutor inclui uma nota de rodapé no item 67 do capítulo XV, anotando que há uma diferença com relação à edição de 1868, com Kardec ainda encarnado. Justifica que “ao revisar a obra com vistas à 4ª edição, Allan Kardec houve por bem suprimir o item 67 que constava nas edições anteriores”. [8] A editora do Centro Espírita Léon Denis, do Rio Janeiro, lançou um a tradução da edição francesa de 1868. [2]
Companheiros do “Le Mouvement Spirite Francophone” confirmaram-nos, recentemente, que a primeira impressão da 5a edição ocorreu em 1872, revisada, e verificou-se que muitos trechos foram eliminados da quarta para a quinta, inclusive no capítulo sobre o corpo de Jesus.
Seria oportuno que as editoras brasileiras fizessem um esforço para se esclarecer as dúvidas sobre a fidedignidade das edições francesas após a desencarnação de Kardec e, se for o caso, acrescentar-se nota(s) explicativa(s) nas edições traduzidas para o português.
Os temas de “A Gênese” são oportunos para a atualidade devendo se implementar seu estudo e divulgação no movimento espírita.
Notas do Autor:
[1] KARDEC, Allan. Trad. Bezerra, Evandro Noleto. “Revista Espírita”. Ano XI. No. 1. 1868. Rio de Janeiro: FEB.
[2] KARDEC, Allan. Trad. Sêco, Albertina Escudeiro. “A gênese”. 3.ed. Cap. I, itens 13, 16 e 55; Cap. XIV, item 22; Cap. XV, Itens 61, 67-68; Cap. XVIII, itens 6 e 26. Rio de Janeiro: Ed. CELD. 2010.
[3] FROPO, Berthe. Trad. LOPES, Ery; MIGUEZ, Rogério. Muita luz. Edição digital, disponível em: . Acesso em novembro de 2017.
[4] Carta do presidente da Confederación Espiritista Argentina, Sr. Gustavo N. Martínez, de 14/10/2017, distribuída em reunião do Conselho Espírita Internacional, em Bogotá (Colômbia).
[5] GOIDANICH, Simoni Privato. El legado de Allan Kardec. 1.ed. Buenos Aires: Confederación Espiritista Argentina, 2017. 440p.
[6] Lançamento na C.E.A. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=DiuFGdPct_8>. Acesso em novembro de 2017.
[7] WANTUIL, Zêus. Grandes espíritas do Brasil. Cap. Joaquim Carlos Travassos. Rio de Janeiro: FEB. 1969.
[8] KARDEC, Allan. Trad. Bezerra, Evandro Noleto. “A gênese”. Cap. XV. Item 67. Rio de Janeiro: FEB. 2010.
Notas do ECK:
[A] Artigo também publicado no Blog da Rede Amigo Espírita.
[B] O grupo “Espiritismo COM Kardec” considera mais correta a expressão “Obras Fundamentais”, do que “Obras Básicas”, como consta deste artigo.
Imagem de Pete Linforth por Pixabay