Por Manoel Fernandes Neto
Nota do autor – Teve um período nas nossas vidas que ficamos perdidos em uma ilha por longas seis temporadas (2004-2010). Anos que nos fizeram melhores, no sentido de viver uma realidade paralela em um mundo — pasmem — ainda inocente e repleto de descobertas. No último episódio, surpresa, polêmica, discordâncias, “ranger de dentes!”. Era 23 de maio de 2010, quando tudo foi revelado, ou não. Em 2010, em ocasião do fim da série Lost, escrevi o texto para os aficionados por séries no portal Nova Era. Olhando em retrospectiva, quantos sites espíritas hoje aceitariam um texto com essa pegada pop? Mas existe o ECK que, em sete anos de existência, demonstrou estar atento a esses movimentos do Zeitgeist – o espírito do tempo (olha ai, MH, ideia de artigo!). O Grupo Espiritismo com Kardec honra estar no mundo e compreender os movimentos, não o espírita, mas o de pessoas que ocupam seus espaços, olhando para frente e para o alto, mas também para o lado, para quem caminha com a gente. Esse é o ECK, contrariando e unindo diferentes e seus iguais, sabendo que estar “perdido” pode ser uma forma de encontros e reencontros. Longa vida ao ECK. Espero que gostem do texto!
Quem esperava? Lost, um dos maiores fenômenos da televisão, que encerrou a última temporada esta semana nos Estados Unidos, teve um final “espírita”. Revelou, em duas horas do último episódio, todos os “mistérios”; “ocorrências” que nossa razão, baseada somente na materialidade, ainda não consegue explicar. Entretanto, nem os fãs da série – legiões de aficionados – estão de acordo com essa conclusão, o que já é objeto de calorosas discussões e debates em centenas de fóruns sobre a atração. Com isso, os roteiristas alcançaram seu intento. Lost vai continuar existindo mesmo após o seu “The End”, entrando na categoria das “obras imortais”.
Para quem não conhece o enredo do seriado, mesmo após seis anos de existência, morte, vida e o sentido da existência são o pano de fundo da história, um misto de aventura, drama, romance e mistério.
Para entender
Em poucas palavras: um avião vindo de Sidney, Austrália, com destino a Los Angeles, Estados Unidos, cai em uma ilha no meio do oceano. O local, que à primeira vista pode parecer somente aprazível, esconde mistérios e histórias que vão da mitologia à ciência, com seres e conceitos abstratos e reais, para todos os gostos e fantasias. Um lugar onde tudo pode acontecer. Foi assim que a série sobreviveu com altos índices de audiência, temporada após temporada — mesmo com algumas escorregadas, aqui ou ali. Atraiu admiradores de todas as idades, profissões e credos. Incluindo eu, que acompanhei a atração desde as primeiras turbulências do voo 815, da empresa Oceanic.
Lost também trouxe inovação ao radicalizar o formato da narrativa. Nas primeiras temporadas, a história de cada passageiro, anterior ao acidente, era explicada por meio de longos flashbacks, oferecendo aos sobreviventes da ilha um sentido maior em relação às decisões a serem tomadas em um ambiente inóspito. Em outras temporadas era adotado o flash forward, com cenas de um futuro que ainda não havia ocorrido em relação à ilha; ou que poderia ter acontecido, ou algo parecido. O caleidoscópio estava armado, para delírio dos fãs.
Aliás, passado, presente e futuro, na ilha de Lost formaram uma tríade de difícil solução. Uma enorme montanha russa, a ponto de, em uma das temporadas, literalmente, a época era mudada juntamente com as cenas, pulando anos, épocas, momentos temporais específicos, após clarões nos céus, mantendo os mesmos personagens surpreendidos e boquiabertos, ao tentarem se adaptar a uma nova realidade.
Realidades para o progresso
Com certeza, o poder de adaptação dos personagens foi uma constante nas seis temporadas. Com memórias latentes ou lembranças específicas, cada pessoa que vivia na ilha, passageiros do voo da Oceanic e, também, de naufrágios anteriores – porque a ilha nunca fora desabitada – conquistaram renovadas oportunidades para fazer novas escolhas. Com isso, se modificaram intimamente, em uma reforma de caráter digna de qualquer ser que busca sua melhoria constante (olha a Lei do Progresso aí!).
“Mas que realidade é essa?”, perguntavam os fãs em todos os cantos do Planeta. Seriam universos paralelos? Colapso da função de onda, como nos diz a tal da física quântica? Ou os roteiristas enlouqueceram e não descobriram como terminar uma obra que já estava sendo apontada por alguns críticos como decadente?
Chegada a última temporada, a 6ª, surge uma nova realidade paralela, que convive com as aventuras da ilha. Nessa nova realidade, que é fruto de uma explosão magnética ocorrida na 5ª temporada, o avião da Oceanic não cai. Pousa com suavidade em Los Angeles, com cada passageiro retomando sua rotina, seu trabalho, seus afazeres, sua profissão, após uma viagem qualquer. Com um detalhe: essa realidade se diferencia daquela que os telespectadores conheciam. Reencontramos o médico dedicado e vencedor, com convicções que não conhecia; um dos vilões, como professor de matemática, dedicado à educação dos jovens; o sarcástico fora da lei, como policial. E outros personagens com mudanças significativas daquelas até então apresentadas. Uma realidade perfeita em relação à apresentada. Era evidente: a vida tinha seguido um caminho diferente para cada um.
Cena antológica
A resposta começa a surgir lentamente, nos últimos episódios, conforme os personagens, na realidade paralela, começam a se lembrar do passado que viveram na ilha. A memória chega a cada reencontro marcante com individualidades que foram relevantes na vivência de cada um, após a queda do avião. O amor reencontrado, as vivências de solidariedade, a amizade, o agradecimento. Toques que revelam o que cada personagem de fato é: um sobrevivente.
Respiração ofegante diante das cenas finais do último episódio. Uma reunião de vários personagens em uma igreja – ou um espaço ecumênico, já que em um dos vitrais surgem símbolos de diversas crenças; o encontro do protagonista com o próprio pai que havia morrido na primeira temporada, em uma cena antológica e reveladora, digna da obra de André Luiz, um autor espiritual com diversas obras psicografadas pelo médium Chico Xavier.
Vamos acompanhar este ápice de seis anos de história, com certeza uma cena mais reveladora para quem estuda o Espiritismo, mas não estranha para quem percebe que existe algo mais do que nós experimentamos na matéria.
Jack, o protagonista, entra lentamente na sala em que está o caixão com o corpo de seu pai. Está pensativo, triste, reflexivo. Coloca a mão sobre o caixão e as lembranças da ilha surgem em um turbilhão de imagens em cada momento tocante que viveu após a queda do avião. Após essa corrente de emoção, em que também descobre quem de fato é, Jack abre o caixão e não encontra o corpo de seu pai. Uma voz o chama:
– Ei, garoto!
Jack vira-se e se espanta ao ver seu pai vivo.
– Pai?
– Olá, Jack!
– Não estou entendendo. Você morreu…
– Pois é. Eu morri, sim.
– Então, como está aqui, agora?
– Como você está aqui, Jack?
Jack fica atordoado; reflete um pouco; ao perceber sua real condição, começa a chorar.
– Eu também morri.
– Tudo bem, filho. Tudo bem, filho.
O pai abraça Jack com afeição e ternura. Jack soluça.
– Está tudo bem, meu filho.
Ficam abraçados por alguns momentos, pai consolando filho.
– Eu te amo, pai.
– Eu também te amo, filho.
– Você é real, pai.
– Espero que sim – diz com um sorriso – Sim, sou real. Você é real. Tudo o que já aconteceu com você é real. Todas aquelas pessoas que estão reunidas aqui na igreja. São todas reais também.
– Então todas… Estão mortas?
– Todos morrem um dia, garoto. Alguns deles antes de você, alguns… Muito depois de você.
– Mas por que estão todos aqui, agora?
– Bem, não existe “agora” aqui.
– Onde estamos, pai?
– Este é um lugar a que todos vocês chegaram juntos, para que pudessem encontrar uns aos outros. A parte mais importante da sua vida foi o tempo que você passou com essas pessoas. É por isso que vocês todos estão aqui. Ninguém consegue fazê-lo sozinho, Jack. Você precisa de todos eles. E eles de você.
– Para que, pai?
– Para se lembrarem. E para… esquecerem.
– Kate disse… que estamos indo embora.
– Indo embora, não, Jack. Seguindo adiante.
– Aonde estamos indo, pai.
– Vamos descobrir.
Pai e filho se abraçam e entram na igreja onde estão todos os que tiveram as mais fortes relações após a queda do avião, na ilha. Estão felizes. Confraternizam-se. Após as mais profundas experiências emocionais: perdão, reconciliação, tolerância, amizade, desafios.
A cena final da série é a fusão do momento da morte de Jack, na ilha, e a porta da igreja sendo aberta pelo pai dele. Uma luz de um brilho intenso traz momentos de júbilo a todos, com a mensagem da certeza de um novo começo.
Debates e vidas futuras
Nem bem subiam os créditos finais, já pipocavam em todos os fóruns discussões acaloradas pela forma como a série terminou. Alguns concordando e vibrando. Outros indignados com o que parecia fantasia demais para um seriado tão “real”. As questões pipocavam. Quando cada um morreu? O que é a realidade? Por que determinados personagens estavam neste ou naquele lugar? Enfim, um debate saudável para uma solução tão completa.
Como não sou de fugir de debates, coloco ainda mais lenha na fogueira, baseado no que foi apresentado no decorrer da série, e no final escolhido pelos roteiristas, totalmente espiritualista, para falar o mínimo.
Quero apresentar uma tese que algumas poucas pessoas se arriscaram a investigar: todos morreram na queda do avião, na primeira temporada. A ilha e todas as ocorrências correlatas durante os seis anos, incluindo as saídas dos personagens e reencontros com pessoas que não estavam no avião, foram vivências espirituais necessárias, o que merece outras discussões. No mundo espiritual, tal qual encarnados, para o progresso de cada um, grupos se preparam coletivamente para prosseguir. Em outras palavras, para uma nova reencarnação. Ou, como diz o pai de Jack: “Indo embora, não. Seguindo adiante”.
O que é o real?
Mas é claro que minha tese não precisa ser a de cada telespectador. Como na série – e como explica a Doutrina Espírita –, cada um cria sua própria realidade, escolhe seus próprios caminhos, colhendo, dia a dia, as consequências dos seus atos. Uns morrem primeiro e outros depois, como diz o pai de Jack, mas todos renascem em uma realidade mais promissora.
Mas como espírita, não posso deixar de oferecer, a esses “descrentes”, pilares racionais para a compreensão do meu entendimento – a ilha não era mais do que uma escala do que o Espiritismo chama de passagem, entrada, um lugar transitório — ou permanente — para outros níveis de consciência (cósmica?).
A seguir a hipótese: que outro lugar, além de um mundo extrafísico, seria capaz de feitos como o passado, o presente e o futuro interligarem-se? Ou começar a chover com a força do pensamento? Ou mesmo com pessoas falecidas surgirem a todo o momento? Em que outro lugar, além do pós-morte, acertos de contas do passado são possíveis com novas realidades? Ou o “mal” ser retratado como um monstro de fumaça que toma a forma humana? Ou o “bem” ser apresentado por um ser que é o guardião da luz com o nome bíblico Jacob, que tem como missão divina escolher seu sucessor? Ou que eles sejam irmãos, frutos da mesma mãe? Sem falar nas mortes que não são o fim; nas pessoas que não envelhecem; nas parafernálias tecnológicas ainda desconhecidas do mundo físico; ou dos grupos reunidos conforme suas tendências, ou mesmo a ilha sendo movida por meio de uma manivela. E muito, muito mais em seis anos da série, só possível em uma realidade além da material.
(Um parêntese: são inúmeras as ocorrências, na ilha, que possuem uma explicação – em tese, sempre em tese. O seriado é pródigo em exemplos de como pode ser processada a realidade de quem chega ao mundo espiritual, de acordo com a sua vivência íntima, ao que convencionou-se chamar de “casa mental”.)
O espantoso, ou não, é que as pessoas mais descrentes afirmam que são dois estágios. A ilha que é o mundo real, e a realidade paralela da última temporada, que é algum tipo de purgatório inventado pelos roteiristas. Ou seja, creem mais no “sobrenatural” da ilha, como algo corriqueiro, do que na normalidade do pós-morte, do mundo paralelo da última temporada. Para esses, ofereço mais uma pista, racional como o Espiritismo.
Desmond David Hume, um personagem que foi o responsável pelo reencontro de cada um com sua memória da experiência na ilha, foi o elo que esteve nas duas realidades: o mundo paralelo e o da ilha. Agiu como um elemento preparado psiquicamente para mostrar que morremos quantas vezes for necessário, para despertamos em novas realidades cada vez melhores e com mais bagagem, Espíritos imortais, como a própria série, que vai continuar existindo no íntimo de seus fãs em todo o mundo. Desmond foi o elo que expôs a certeza de que todos nós vamos nos reencontrar em algum momento da trajetória: libertos, serenos, sobreviventes. Por coincidência ou não, este mesmo personagem repetiu inúmeras vezes, durante as temporadas, uma frase que se tornou clássica entre os fãs de Lost: “A gente se encontra na próxima vida”.
Com certeza, Desmond.
Foto divulgação lost
Quanta beleza nesse texto! Palavra de ordem: vamos seguir adiante.
Não conheço a série, nem talvez o livro, mas reconheço um pouco do paralelismo existente entre o que nos descreve no texto e o ECK. Só posso dizer…fantástico e excepcional o seu texto e a explicação bem conseguida do trabalho realizado por quem escreveu a obra. Parabéns
Não assisti a série, também não o livro, mas me despertou a curiosidade. É incrível como os membros do ECK em suas vivências reúnem e nos brindam com tanta informação e formação relevante em seus artigos e textos. Amei.