20Jaci Regis (in memoriam)
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É sinuosa a trajetória de Kardec. Mas devemos reconhecer que, mesmo com essa assessoria mística, católica, provinda do plano extrafísico, ele ainda assim saiu-se muito bem. Na verdade, resistiu a esse assédio como equilibrista da razão e da fé.
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“A princípio, eu só tinha em vista instruir-me. Mais tarde, quando vi que aquelas comunicações formavam um conjunto e tomavam as proporções de uma doutrina, tive a ideia de publicá-las para que todos se instruíssem”
(Kardec, “Obras Póstumas”, Minha Primeira Iniciação no Espiritismo).
Assim Allan Kardec relata como decidiu iniciar a estruturação do Espiritismo.
A sequência de mensagens mediúnicas que foram dirigidas a Kardec é também de grande interesse:
– em 25 de março de 1856, manifestou-se um Espírito que se identificou como Verdade;
– em 30 de abril de 1856, um Espírito não identificado faria uma declaração bombástica: “Não haverá mais religião, mas uma será necessária, porém verdadeira, grande, bela e digna do Criador […]. Os primeiros fundamentos já foram lançados. Rivail , é esta a tua missão”;
– em 7 de maio de 1856, o Espírito Hahnemann confirmou que ele tinha uma grande missão;
– em 12 de junho, o Espírito a Verdade, além de confirmar sua missão disse: “A missão dos reformadores é cheia de escolhos e perigos. A tua é rude, previno-te pois terás de revirar e transformar o mundo inteiro;
– em 5 de abril de 1860, uma mensagem recebido em Marselha assinada por “um Espírito”, dizia “O Espiritismo foi chamado a desempenhar um papel imenso na Terra. Reformará a legislação, tantas vezes contrária às leis divinas, retificará os erros da História, restaurará a religião do Cristo”;
– em 9 de agosto de 1863, após o lançamento de “O evangelho segundo o Espiritismo”, uma comunicação afirmou: “Aproxima-se a hora em que terás que declarar abertamente o que é o Espiritismo e mostrar a todos onde está a verdadeira doutrina ensinado pelo Cristo. A hora em que à face do Céu e da Terra, deverás proclamar o Espiritismo como a única tradição verdadeiramente cristã, a única instituição verdadeiramente divina e humana”;
– em 5 de abril de 1860, uma mensagem recebida em Marselha assinada por “um Espírito”, dizia: “O Espiritismo foi chamado a desempenhar um papel imenso na Terra. Reformará a legislação, tantas vezes contrária às leis divinas, retificará os erros da História, restaurará a religião do Cristo”;
– em 30 de janeiro de 1866, assinado por “um Espírito”, uma mensagem anunciava os novos tempos “Regozijai-vos, portanto, vós todos os que aspiram à felicidade e que quereis que vossos irmãos a compartilhem convosco. O dia é chegado! A Terra palpita de alegria porque vai ver o início do reino da paz prometido pelo Cristo, o Divino Messias, reino cujos fundamentos ele veio lançar”.
Voltando à mensagem de 9 de agosto de 1863, para Herculano Pires, ela mostra sem réus, numa hora histórica do Espiritismo, que a natureza da doutrina é essencialmente religiosa.
As mensagens mostram como o prof. Rivail foi cercado por Espíritos ligados efetivamente à religião. Eles criaram um ambiente de exaltação ao trabalho dele e afirmaram que os tempos eram chegados e dentro da mesma forma deslumbrante das profecias, profetizaram o sucesso ímpar do Espiritismo. E como se dá em geral em relação às profecias, estas também falharam.
Eles não tinham noção das revoluções sociais, humanas e cientificas que, em menos de cem anos, abalariam definitivamente o mundo. Estavam a alguns anos do século vinte e nele vislumbraram a implantação mística do reino de Deus, dentro do modelo cristão, católico.
A trajetória de Kardec é, então, sinuosa.
Queria que o Espiritismo fosse uma ciência. Mas criou uma religião, sem querer que fosse religião.
Chamou o papel dos Espíritos de divino, mas ao mesmo tempo alertou: “Um dos primeiros resultados de minhas observações foi descobrir o fato de que os Espíritos nada mais sendo que as almas dos homens não possuíam nem a suprema sabedoria nem a suprema ciência. Agi com os Espíritos como teria feito com os homens. Foram para mim, desde o menorzinho até o maior deles, veículos de informações e não reveladores predestinados”.
Devemos reconhecer que, mesmo com essa assessoria mística, católica, provinda do plano extrafísico, ele ainda assim saiu-se muito bem. Na verdade, resistiu a esse assédio como equilibrista da razão e da fé.
O século vinte um desponta, então, como uma incógnita sob a liderança inconteste da ciência dura e coadjuvada pelas ciências humanas.
Nota: Este texto, aqui ligeiramente adaptado, foi recuperado do Disco Rígido do computador pessoal de Jaci Régis (1932-2010) e foi publicado originariamente no jornal “Abertura”, em maio de 2013.
Imagem de Ingo Jakubke por Pixabay
Muito boa estas colocações do Jaci,…foi muito difícil para Kardec se abster de inserir na doutrina espírita esta imagem salvacionista somente pelo fato de pertencer a esta ou aquela agremiação religiosa… Esta publicação realmente mostra o quanto é complicado ser coerente sem ser lógico quanto aos fatos do imaginário ligando o sublime a uma pseudo salvação. Esta análise quanto aos espíritos que assessoraram Kardec, realmente ele agiu como um verdadeiro cientista buscando a verdadeira compreensão de tudo que lhe era informado. Parabéns ao ECK por buscar no fundo do baú esta publicação do Jaci Regis.