Querem abortar o aborto, por Frei Betto

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Frei Betto

A missão dos legisladores (deputados e senadores) não é impor moral à sociedade, é buscar o bem comum. Somos uma sociedade plural e laica, não confessional. Se defendo a descriminalização da prostituição, como defendo a do aborto, não significa que aprovo a prostituição, pois a considero uma degeneração da mulher. As prostitutas, porém, têm o direito de serem protegidas por leis, como defendia Gabriela Leite, líder das meretrizes brasileiras.

Quantos antiabortistas já enviaram suas mulheres ou filhas, surpreendidas por uma gravidez indesejada, a clínicas clandestinas de aborto ou a países que admitem a interrupção da gravidez? Só terapeutas e ministros de confissões religiosas, confidentes de pessoas aflitas, podem avaliar.

O artigo 128 do Código Penal admite o aborto “se a gravidez resulta de estupro”. O estupro é crime previsto no artigo 213 do mesmo código. Crime hediondo, pois impõe à vítima severas sequelas físicas e emocionais.

Como exigir da mulher estuprada não repudiar o feto fruto de uma agressão física e moral? Gostaria de ver um parlamentar antiabortista exigir de sua filha, violentada por um assaltante, preservar a gravidez e acolher o filho. Quem sabe ele, munido de pruridos morais, vá à prisão solicitar ao estuprador reconhecer a criança como filho e imprimir o nome paterno nos documentos de identidade…

Os que vociferam contra o direito ao aborto, proclamando defender a vida, são os mesmos que defendem que “bandido bom é bandido morto”, aplaudem a letalidade das operações policiais, exaltam torturadores e advogam o comércio generalizado de armas. E silenciam frente aos pedófilos de suas igrejas. Haja hipocrisia!

É atitude farisaica a intransigente defesa da vida embrionária e a omissão frente a milhões de crianças nascidas na miséria, condenadas à fome e ao desamparo.

A defesa da vida não pode ser confundida com a defesa do processo embrionário desde o seu início. Do ponto de vista científico, é questão aberta quando de fato há vida humana.

Como escreve o teólogo Jesús Martínez Gordo, a questão deve se basear “no reconhecimento da existência de situações-limite e conflitos de direitos em que é impossível aplicar dedutivamente as normas morais: a única coisa que resta, talvez, é aceitar o mal menor, como pode ser visto nos casos de perigo para a vida da mãe, má-formação do feto e gravidez por estupro. Entendido dessa forma, o aborto não é mais um direito, mas sim um recurso desesperado diante do instinto de sobrevivência. Em suma, o mal menor que, em nome da solidariedade, do respeito e do acompanhamento a quem passa por situações tão dramáticas, está acima de qualquer imposição extrínseca”.

Segundo Bernhard Häring, um dos mais destacados moralistas católicos, “não cabe ao Magistério da Igreja resolver o problema do momento preciso a partir do qual nos encontramos diante de um ser humano no pleno sentido do termo”.

Na tradição cristã convivem diferentes teorias, a da “animação sucessiva”, defendida por meu confrade São Tomás de Aquino, e a da “animação simultânea”, por Santo Alberto Magno.

A biologia comprova que o embrião requer tempo e espaço para desenvolver seu sistema neuroendócrino. Genes não são miniaturas de pessoas. A biologia molecular demonstra que a informação extragenética é tão importante quanto a informação genética, e a constituição da substantividade humana ocorre quando há organogênese do embrião.

O machismo e a misoginia predominantes no Congresso se refletem inclusive na proposta de fazer o peso da sentença condenatória cair mais forte sobre a mulher violada que sobre o criminoso tarado.

Nosso Congresso deveria estar discutindo como introduzir a educação sexual em todos os níveis escolares, bem como o planejamento familiar.

Descriminalizar o aborto não significa incentivá-lo. Não devemos admitir que nossos parlamentares estuprem a Constituição e violentem um direito adquirido.

Publicado originalmente na Folha de São Paulo

Imagem de InspiredImages por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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