Milton Medran Moreira
Quem tem noções mínimas de Direito já deve ter ouvido falar em “causas excludentes de criminalidade”. Uma delas todo mundo conhece. É a legítima defesa. Uma segunda é chamada de “estado de necessidade”. Existem outras, mas fiquemos com estas.
Qual a função das causas excludentes de criminalidade? A de excluir da condição de crime à prática de um fato típico (isto é: definido legalmente como crime), cometido por alguém, nas circunstâncias por elas abrangidas.
Certas situações são tão patentes que a lei penal se permite no mesmo momento em que tipifica, em tese, uma conduta como criminosa, apontar condições em que o fato deixa de ser criminoso, por estar sob o pálio de uma excludente.
É o caso da mulher que aborta nas hipóteses da necessidade de salvar sua própria vida ou se a gravidez resultou de violência sexual.
Nem precisaria que a lei penal dissesse expressamente sobre essas exceções. Elas claramente indicam o chamado “estado de necessidade” que, como no caso da legítima defesa, torna lícito sacrificar direito alheio para proteger direito próprio inviolável, como o são a vida, a honra, a dignidade.
Religião x humanismo
Países civilizados que ainda têm o aborto como um crime contra a vida, como é o caso do Brasil, por um consenso ético e jurídico, deixam expressas aquelas exceções na própria parte especial do Código Penal, onde o aborto é tipificado.
Os princípios que justificam aquelas exceções já estão, antes, expostos na parte geral do Código, o que dispensaria repeti-los. Mas eles são tão contundentes e frequentes, especialmente aqueles resultantes de estupro, e tendo como vítimas crianças ou mulheres em situação de vulnerabilidade, que estão ali ressaltados. Deixa-se clara a impunibilidade do aborto, nessas duas circunstâncias: perigo de vida à gestante e gravidez advinda de violência sexual. Mais recentemente o aborto tornou-se também legal em caso de feto com anencefalia.
Querer acabar com essas exceções e propor, como está acontecendo em nosso país, penas ainda mais pesadas a mulheres que vivam essas situações, é de uma crueldade inominável. E se considerarmos que essa iniciativa parte de parlamentares pertencentes a bancadas ditas “cristãs”, estamos diante de um gravíssimo conflito entre religião e humanismo. Um conflito, aliás, que, no Brasil, tem se tornado cada vez mais agudo, por conta da influência do fundamentalismo religioso na política.
Dogma x razão
Penso que enquanto houver pessoas que sobreponham o dogma à razão, subsistirão os conflitos que, em todos os tempos de nossa História, dividem os brasileiros a respeito dessa tormentosa questão do aborto.
A crueldade manifesta no Projeto produz igualmente o discurso perverso que busca contaminar a opinião pública. Tacham-se os que defendem a manutenção dessas excludentes, assim como aqueles que postulam seja o aborto tratado como questão de educação e saúde pública e não mais como crime, como favoráveis ao aborto.
Retirá-lo do Código Penal não significa ser a favor do aborto. Permitir que uma menina de 10, de 11 ou 14 anos, que engravidou como resultado de um estupro, muitas vezes praticado por seu próprio pai ou padrasto, interrompa a gravidez, é um ato profilático. Mil vezes não houvesse ocorrido o atentado sexual. Mas, vivemos num mundo cruel onde a vida, a honra, a dignidade das pessoas, são sistematicamente violadas. Preservar a vida, a saúde física e emocional de uma pessoa, vítima dessa brutalidade, mediante o sacrifício de um embrião ou de um feto, é optar por um mal moral e juridicamente menor. Muito menor!
A posição espírita
O espiritismo na sua origem, sem tratar diretamente dessas questões hoje presentes na nossa agenda social – crimes sexuais e o simples trato de assuntos relativos a sexo eram tabus no século 19 –, deixou claros os princípios humanitários sobre o tema.
Partiu da premissa de que o aborto viola a lei divina (ou natural), como expresso na questão 358 de O Livro dos Espíritos. Mas, expressamente, entendeu lícito “sacrificar a criança para salvar a mãe”, sob a justificativa de que “é preferível sacrificar o ser que ainda não existe a sacrificar o que já existe” (questão 359).
Com essa posição, expressamente contrariou a da Igreja. Reconheceu, no caso, a mulher como “sujeito de direito” que se sobrepunha ao presumível direito do nascituro, em qualquer fase da gestação.
O espírito imortal, eventualmente já comprometido ou aderido à matéria biológica em formação, com aquela interrupção, não tem sua existência suprimida, mas terá oportunidade de “recomeçar”, mediante novo processo reencarnatório (questão 357).
Convenhamos, essa é uma posição moralmente superior, juridicamente mais lógica, socialmente mais justa e espiritualmente mais consoladora, do que aquela ditada pelo fundamentalismo religioso dos defensores do malsinado Projeto de Lei 1904/24, que tantos debates têm provocado no Brasil.
Originalmente publicado na coluna “Opinião em Tópicos”, do jornal OPINIÃO, órgão do Centro de Cultura Espírita de Porto Alegre – CCPA, edição 330, julho/2024.
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Excelente texto.