Marcelo Teixeira
Publiquei, certa vez, um artigo intitulado “Trabalho e exploração de mão de obra”. Nele, como o próprio título evidencia, falo sobre trabalho escravo, horas extras nunca pagas, horários de almoço limitados, entre outras diatribes costumeiras a um país que ainda carrega no DNA a cultura escravagista. Resolvi voltar ao assunto devido a casos que venho colecionando na mente há algum tempo e que eclodiram devido a um fato recente.
No início de setembro de 2024, Márcio Negócio, artista da cidade de Petrópolis (RJ), onde nasci e vivo, morreu devido a um infarto. Ele estava se apresentado em Salvador (BA) quando passou mal. Foi levado imediatamente ao hospital, mas não teve jeito. O fato enlutou a classe artística petropolitana e causou ainda mais tristeza quando Sylvio Costa Filho, ator e amigo de longa data, postou, nas redes sociais, um vídeo denunciando um episódio lamentável: Márcio, assim como vários artistas locais, trabalhou na Bauernfest, festa do colono alemão que, todos os anos, do meio de junho ao início de julho, acontece na cidade, atraindo inúmeros turistas, que lotam os hotéis, restaurantes, lojas e impulsionam a economia. Só que, passados dois meses do término do evento, Márcio ainda não havia sido pago pela prefeitura. Pior: ele estava precisando do dinheiro para manter as contas em dia e infelizmente morreu sem ter o trabalho remunerado e valorizado.
Sylvio aproveita e aprofunda a questão das dificuldades enfrentadas pelos nomes não vinculados ao grande mercado do cinema, teatro e TV. Entre elas, a falta de reconhecimento e o descaso dos gestores em relação aos artistas locais, muitas vezes tão ou mais talentosos que muitos incensados pela grande mídia. Por causa disso, nomes como os dois que estou citando ouvem frequentemente coisas do tipo “quando houver disponibilidade, pagaremos vocês”, como se o trabalho artístico, nas palavras do próprio Sylvio, fosse um brinquedo.
Só que não é. Artistas do teatro, do circo ou da música são profissionais trabalhando e, como tais, precisam ser pagos em dia, já que os boletos e as compras de supermercado não podem esperar. Além disso, como Sylvio observa muito bem, embora autoridades municipais venham com a desculpa de que o trabalho será pago “quando houver disponibilidade”, os artistas estavam disponíveis para trabalhar nas festas e eventos municipais e exercer, com talento e maestria, o papel social e artístico de cidadãos. Cumpriram os protocolos burocráticos, ensaiaram, tiveram gastos com transporte, compareceram pontualmente ao horário e ao local combinados etc. Na hora de receber pelo serviço prestado, no entanto, a verba não é liberada. Resultado: são obrigados a ficar pedindo que o combinado seja cumprido, o que além de desgastante, chega a ser humilhante. É como se o trabalho artístico fosse algo menor que pudesse esperar pela boa vontade dos prefeitos e secretários municipais para ser pago.
Esse fato ocorrido com o já saudoso Márcio e tão bem exposto pelo Sylvio me fez lembrar uma patacoada que, há alguns anos, ouvi de Eduvaldo, um sujeito desagradável que tinha o hábito de flanar pelas reuniões públicas doutrinárias dos centros espíritas da Cidade Imperial e sempre dar pitacos inconvenientes durante as palestras. Numa delas, eu era o expositor. Explanava, entre outros tópicos, sobre a mania que muita gente tem de fazer generalizações apressadas do tipo “Todo gay é promíscuo”, “Todo favelado é bandido” e “Todo político é corrupto”. Para complementar, saquei de uma generalização que muita gente do Sudeste diz e que considero profundamente infeliz: “Todo baiano é preguiçoso”. Para contrapor, listei vários nomes baianos do movimento espírita que muito trabalham. E para sair do nosso cercadinho, enumerei vários baianos talentosos cujos trabalhos nos enchem de orgulho: Maria Bethânia, Moraes Moreira, Jorge Amado, Caetano Veloso, Gal Gosta, Simone, Gilberto Gil, Daniela Mercury… Foi quando Eduvaldo, engenheiro eletricista que não vê arte como trabalho, me interrompeu com a seguinte pérola: “Ah, mas isso não é trabalho!”. Contive a ira, mas não a indignação. Sem perder a compostura, mandei uma resposta oportuna que o calou. Percebem como a declaração infeliz dele tem a ver com a desconsideração que o Sylvio descreveu?
Revirando o baú de casos que conheço a respeito, concluo tristemente que não são somente os atores, palhaços, músicos, malabaristas e afins que padecem dessa desvalorização.
Tenho o hábito de puxar conversa com motoristas de táxi e de aplicativos. Meses antes da desencarnação do Márcio, voltava eu de táxi para casa e perguntei ao taxista (a quem chamarei de Alberto) se ele estava no ofício há muito tempo. Alberto disse que não e que trabalhava antes como montador de móveis planejados. Devido, no entanto, ao calote de uma madame, foi demitido. Explico: a empresa para a qual ele trabalhava foi contratada para fazer todo o mobiliário de uma bela casa em Itaipava, região nobre de Petrópolis. Móveis de cozinha, salas, banheiros e quartos, incluindo um escorregador para o dormitório das crianças, foram cuidadosamente desenhados e instalados. Só que, na hora do pagamento, a dona da mansão alegou que não tinha dinheiro para pagar pelo serviço porque toda a verba estava comprometida com a reforma da parte externa do imóvel, que ainda não estava pronta. O patrão de Alberto disse, então, que ela deveria ter se dedicado à parte externa antes de montar o interior e que ela iria deixar desempregados sete pais de família, já que ele teria de demitir toda a equipe, pois não teria como mantê-la sem receber pelo extenso serviço que havia sido executado. A fulana lamentou e reiterou que só iria pagá-lo depois que a parte externa (jardim, pintura etc.) ficasse pronta. E lá estava Alberto, um experiente e talentoso montador de móveis planejados, tendo de dirigir um táxi para sobreviver.
Durval, serralheiro de mão cheia, foi contratado para gradear as janelas da casa de um conhecido figurão aqui da Região Serrana do RJ. Findo o serviço, o dono da casa pediu para que Durval voltasse na sexta-feira para receber o pagamento. No dia aprazado, lá estava nosso bravo serralheiro. Só que a empregada da casa disse que o patrão estava ocupado e pediu que Durval retornasse na segunda-feira. Nesse dia, a serviçal veio com a seguinte notícia: o patrão havia viajado e voltaria na quinta-feira quando, então, faria o pagamento. Nessa terceira tentativa, Durval foi informado de que o dito cujo ainda não havia retornado da viagem. E assim, de enrolação em enrolação, ficou a ver navios.
Trago ainda a estória de um famoso artista, que era dono de uma linda casa em Araras, outra área nobre de Petrópolis. Quando recebeu o orçamento de Aníbal, o pedreiro por ele contratado, teve o desplante de dizer: “Nossa! Tudo isso! Posso pagar em duas vezes?” O sujeito comandava um programa de TV que era líder de audiência, vivia lotando teatros e teve a coragem de regatear o valor cobrado por Aníbal. Francamente!
O ator Pedro Cardoso, em ótima entrevista concedida ao também ator Lázaro Ramos, no programa “Espelhos”, do Canal Brasil, declarou: “Nós devíamos nos envergonhar de pagar a uma pessoa o que não é suficiente para ela viver. (…) Um pedreiro é um homem que detém um saber de enorme valor. É preciso valorizar o saber que aquele homem detém. Um bom pintor de paredes saber fazer coisas que têm um enorme valor econômico. Temos de dar valor econômico ao trabalho. No Brasil e no mundo não se dá valor econômico ao trabalho, mas ao bem, às coisas. A gente é capaz de pagar R$ 1 milhão por um apartamento. Aí, você chama um homem para pintar o seu apartamento de R$ 1 milhão. Ele te cobra R$ 5mil e você acha um absurdo. A coisa, a gente paga. A pessoa, o trabalho a gente não paga. Isso vem da formação do nosso país, que foi fundado pelo genocídio dos índios e pela escravidão. Então, um país que viveu 300 e tantos anos com trabalho escravo tem enorme dificuldade em aceitar o valor do trabalho”. Mais assertivo impossível.
Na questão 676 de “O livro dos Espíritos” (capítulo referente à lei do trabalho) Kardec observa que o trabalho é uma consequência da natureza corpórea e uma forma de aperfeiçoarmos a inteligência. Por isso, nosso alimento, nossa segurança e nossa inteligência dependem dele. Se é assim, todo e qualquer trabalho deve e precisa ser bem-remunerado, a fim de que todos tenham uma vida digna e farta de possibilidades.
No capítulo referente à lei de igualdade, encontramos a questão 804, que corrobora esse pensamento ao dizer que Deus não outorgou a todos os homens as mesmas aptidões porque elas têm a ver com a “diversidade dos graus da experiência alcançada e da vontade com que obram, vontade que é o livre-arbítrio”. Por isso, além de uns se aperfeiçoarem mais rapidamente que outros, os vários caminhos que percorremos fazem com que tenhamos talentos diversos. Nunca, porém, tais aptidões devem ser tidas à conta de superiores ou inferiores. Afinal, todas têm um papel útil a desempenhar. Umas na ciência; outras, na arte; nos trabalhos manuais e braçais; na área administrativa e assim por diante. Todas, porém, contribuindo para a harmonia e o bom andamento do meio social. Por isso, todas devem ser valorizadas e bem-remuneradas. É isso que dignifica os homens.
BIBLIOGRAFIA:
- CARDOSO, Pedro; RAMOS, Lázaro – Espelho, parte 2. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=i6eo-GZCmW4
- KARDEC, Allan – O livro dos Espíritos, 60ª edição, 1984, Federação Espírita Brasileira (FEB), Brasília, DF.
- TEIXEIRA, Marcelo – Trabalho e exploração de mão de obra. Disponível em: https://blogabpe.org/2023/06/15/trabalho-e-exploracao-de-mao-de-obra/
Imagem de Janno Nivergall por Pixabay
Texto com vocabulário acessível e, por isso mesmo, claro, objetivo e suficiente. Gostei muito. Parabéns!
Impecável. 👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼