O Codificador e Deus, por Dárcio de Araujo Cintra

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Por Dárcio de Araujo Cintra

Temos visto, no Espiritismo, muitas assertivas sobre Deus, que aproximam a divindidade consubstancialmente do Deus cristão (enquanto um Pai amoroso e providente — e mesmo a despeito de não se considerar a existência de uma trindade santa, a obra kardecista vai aos poucos direcionando os espíritas para essa crença), dando-se tal fato desde o início, em especial quando a Ele são atribuídas perfeições, tais como: “Eterno, Imutável, Imaterial, Único, Onipotente, Soberanamente Justo e Bom”, características, aliás, estudadas por Tomás de Aquino em sua “Súmula Teológica[1]”.

Bem sabemos que a obra de Kardec buscou referências no conhecimento produzido pelos homens até então, o chamado “estado da arte”. Ainda que não as cite, é inegável que várias foram as fontes pesquisadas, e no que tange ao tema ‘deus’, não só em Tomás de Aquino, mas também em Paley (a analogia teleológica de que “todo desenho implica um desenhista”, para ‘comprovar’ a existência de Deus, presente em Cícero e desenvolvida pelo teólogo inglês, em seu “o relógio e o relojoeiro”)[2].

Dessa forma, o tema “Deus” é objeto das 16 primeiras questões de “O Livro dos Espíritos” e cumpre notar, se Kardec não houvera acrescentado comentários a nenhuma delas, e tampouco tivesse se estendido e desenvolvido quaisquer dos assuntos referentes à divindidade (dali por diante); e se simplesmente tivesse considerado as respostas dadas pelos Espíritos; e, principalmente, se tivesse seguido as recomendações feitas por eles, enfim, o tema teria morrido ali. Sim, era para o nosso estimado prof. Rivail ter encerrado o assunto no Capítulo I, de “O Livro dos Espíritos”, sem sequer ter feito qualquer comentário, mas não!

Ao analisarmos as respostas às perguntas de números 1 a 16, de “O Livros do Espíritos”, omitindo-se propositalmente os comentários realizados por Allan Kardec, ficando-se apenas com as explicações dos Espíritos, notamos, pelas respostas dadas, que eles tão somente se aprofundaram nesse terreno insondável (a compreensão do que é Deus), única e exclusivamente por insistência do professor, cujas perguntas queriam, por assim dizer, cercar e ‘dissecar’ o assunto. Todavia, vemos que os Espíritos são enfáticos em afirmar que nos “faltam faculdades para a perfeita compressão de Deus” e ainda:

“Deus existe; disso não podeis duvidar e é o essencial. Crede-me, não vades além. Não vos percais num labirinto donde não lograríeis sair. (…), pois que acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai (…) de lado todos esses sistemas; tendes bastantes coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do que pretenderdes penetrar no que é impenetrável”.[3]

O recado foi dado e Kardec não o ouviu. Tivesse parado nesse ponto (e jamais voltado ao assunto, pois o que é impenetrável, impenetrável está), para ‘piorar’, na Conclusão de “O Livro dos Espíritos”, o Codificador acaba por fazer uma perigosa afirmação, qual seja: “O Espiritismo não é obra de um homem, encontra-se por toda parte, em todas as religiões e mais ainda, na religião católica”. Pronto! Estava realizado o ‘chamamento’, que resultou no que vemos hoje (e que inclusive foi o que atraiu tantos Espíritos de católicos para “O Evangelho Segundo o Espiritismo” — mas lembremos, quem selecionou as mensagens publicadas foi o próprio Kardec, eis a questão).

Decorre disso, a inevitável pergunta: a quem devemos o ônus do ‘espiritolicismo’ reinante no MEB[4]? A Bezerra de Menezes ou ao próprio Allan Kardec? Não seria por demais relembrar que em “O Livro dos Médiuns” Kardec também afirmou que:

“Os que não se contentam com admirar a moral espírita, que a praticam e lhe aceitam todas as conseqüências. (…), esforçando-se por fazer o bem e coibir seus maus pendores. (…) As relações com eles sempre oferecem segurança, porque a convicção que nutrem os preserva de pensarem praticar o mal. A caridade é, em tudo, a regra de proceder a que obedecem. São os verdadeiros espíritas, ou melhor, os espíritas cristãos”.[5]

E a nós, o que cabe por nossa vez, no século XXI, nessa retomada doutrinária, pois que a doutrina requer sucessivas revisitações (e conforme o próprio e insigne Codificador, a cada 50 anos)? De minha parte, sugiro que retornemos ao início e fiquemos apenas com a definição dada: “Deus é a inteligência suprema, causa primária de todas as coisas”. E também sigamos a recomendação: “Crede-me, não vades além”, para então corrigir, a partir daí, o rumo da história do Espiritismo, onde não haverá mais espaço para o Cristianismo (para Jesus, sim, mas isso é outra história, para outro momento).

 

[1] Aquino, Tomás de. Summa Theologica. QQ. 1-119, “A existência de Deus”. 1265-1274.

[2] Paley, William. Natural Theology: or, Evidences of the Existence and Attributes of the Deity. O relógio e o relojoeiro, 1802.

[3] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos. Capítulo I, “Deus”, nº 16. 76 ed., Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 1995.

[4] MEB: Movimento Espírita Brasileiro.

[5] Kardec, Allan. O Livro dos Médiuns. Capítulo III, “Do Método”, nº 28. 71 ed., Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira, 2003.

Foto de Laura Ockel na Unsplash

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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