Por Eliana Haddad
Imagem acima, Fundação Maria Virginia e José Herculano Pires, no bairro da Vila Mariana. Foto: Marcelo Henrique.
Sócio e administrador da Editora Paideia, responsável pela Fundação Maria Virginia e José Herculano Pires, no bairro da Vila Mariana, em São Paulo, Herculano Ferraz Pires lembra especialmente para o Correio Fraterno passagens importantes de seu pai, J. Herculano Pires. Na família, no jornalismo, no movimento espírita, um homem de futuro, de intelecto brilhante e coração caridoso, que marcou a reencarnação numa vida repleta de atitudes éticas e certeiras, que deixaram exemplos e saudades. Neste ano, em 25 de setembro, será comemorado o primeiro centenário de J. Herculano Pires, o escritor, jornalista, poeta, professor e filósofo que encontrou na doutrina dos espíritos as respostas para todos os seus anseios, delas fazendo o grande objetivo de sua vida: instigar a descoberta da fé raciocinada nos corações repletos de dogmas e desiludidos pela desinformação. Foi por isso que Herculano lutou, enfrentou desafios e defendeu destemido a necessidade da divulgação da visão libertadora do espiritismo para uma vida serena, marca dos novos tempos, a Era do Espírito.
Como você analisa o trabalho de J. Herculano Pires para o movimento espírita, neste ano em que se comemora o seu centenário?
Se considerarmos apenas os livros que ele escreveu, sempre tendo como bússola as obras de Kardec, podemos afirmar sem medo de errar que ele é um dos mais importantes intelectuais espíritas que estiveram entre nós nos últimos séculos. Herculano sempre foi a voz que se levantou em defesa da doutrina, nunca para denegrir pessoas, mas evitando que ocorresse com o espiritismo o que ocorreu com o cristianismo, que teve as verdades de Cristo adulteradas pelas vaidades ou interesses pessoais dos homens.
Creio que a viagem de Herculano Pires de volta ao mundo espiritual deixou um grande vazio no movimento espírita, pois hoje vemos que defender a doutrina contra os novidadeiros muitas vezes é tido como falta de fraternidade.
Aproveito para lembrar uma das frases de Herculano Pires, no livro Na hora do testemunho, escrito em parceria com Chico Xavier:
“Se não mantivermos a ética espírita acima da ética mundana, (…) a pretexto de que no espiritismo o princípio de fraternidade cobre todos os aleijões, estaremos reduzindo a doutrina à condição amoral de uma cobertura para a irresponsabilidade.”
Reconhece-se que a obra de Herculano exige interesse, curiosidade pelo aprendizado espírita. Como a Editora Paideia tem percebido o público leitor hoje?
É muito agradável sermos procurados por jovens que não conheceram Herculano em vida nos incentivando para continuarmos no trabalho de divulgação e solicitando mais informações sobre sua vida e sua obra. Acreditamos que as novas gerações continuam tendo acesso a Herculano Pires e entendendo a importância de sua tarefa para a divulgação de Kardec.
Pela seriedade com que defendeu o espiritismo, dá-se a impressão de que Herculano falava realmente o que pensava. Ele era muito bravo?
Todos que tiveram a oportunidade de conviver com Herculano Pires sabem que ele possuía um humor muito especial e não costumava perder a paciência com facilidade. Há um fato que ilustra bem o seu senso de humor:
Minha mãe era filha de fazendeiro que trabalhava com plantação de café. Com a crise do café, meu avô perdeu praticamente tudo. Quando nos mudamos para a casa que hoje é a sede da Fundação [na Vila Mariana], a rua era sem asfalto, na ‘periferia’ de São Paulo. Meu pai estava na janela observando a paisagem, como fazia para descansar enquanto escrevia, e viu uma vaca descendo a rua passando na frente de casa, sem ninguém a conduzindo. Imediatamente gritou para minha mãe:
– Bi, corre aqui. É urgente!
– Minha mãe subiu correndo as escadas, preocupada.
Chegando no quarto, meu pai a chamou até a janela e mostrou:
– Está vendo aquela vaquinha? Está como eu, procurando a fazenda do seu pai até hoje.
Minha mãe deu risada e respondeu, se divertindo:
– Você não tem trabalho!?
Como era o pai Herculano?
Sinto muitas saudades dele! Ele realmente, antes de tudo, era um grande amigo. Quando éramos crianças, ao voltar do serviço, quase sempre nos trazia pequenos brinquedos que os camelôs dos anos cinquenta produziam para vender no centro de São Paulo. Quando crescemos, tínhamos liberdade e confiança para pedir seus conselhos nos mais variados problemas. “O importante é não esquecer de resolver o problema com muita calma e coragem” – ele sempre ressaltava. Tenho em minha lembrança uma passagem que me faz rir sempre que a recordo: Minha mãe, como é natural, tinha uma grande preocupação com nossa formação escolar. Eu não fui um dos mais estudiosos da família, e nos meus oito anos (aproximados) estava no meu quarto quando meu pai chegou. Minha mãe o chamou, pedindo que ele sondasse o movimento lá dentro, que parecia um tiroteio infernal. Ela disse, então:
– Zequita, veja se este menino está estudando! Como vai se sair bem na escola?
Meu pai parou para prestar atenção e percebendo ao longe minha brincadeira respondeu:
– Bi, mas o que você quer que ele faça? O quarto dele está sendo invadido, pela janela, pelos índios peles-vermelhas. Ele tem que se defender!
Rindo e aproveitando o momento de descontração, disse:
– Tem razão, eu não tinha percebido.
Como Herculano conseguiu escrever tanto sobre o espiritismo? Tinha muito tempo ou sua produção seria o desdobramento de seu próprio trabalho como jornalista?
Uma das qualidades de meu pai que gostaria de ter adquirido era a de gerenciar bem o seu tempo. O que não era possível realizar conforme planejado, ele incluía na programação seguinte. No seu diário, pude verificar o cuidado que ele tinha em programar horas de estudos para cada matéria que achava necessário se aperfeiçoar. Creio que dessa forma conseguiu realizar muitas atividades, que não eram remuneradas, apesar de não ter nenhuma renda que lhe garantisse a sobrevivência da família, que não era pequena.
Para termos uma noção de sua capacidade de dividir seu tempo, basta lembrar que ele era jornalista dos Diários Associados, repórter da Assembleia Legislativa, traduzia as obras de Kardec, escrevia suas obras literárias (além das obras filosóficas e doutrinárias, romances, poesias e artigos para jornais e revistas), presidiu o Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo e o Clube dos Jornalistas Espíritas de São Paulo, dentre outras atividades.
Herculano chegava a se sentir desesperançado? O que movia a sua fé? Qual era a sua principal característica?
Minha mãe respondeu, em entrevista para a USE de Rio Claro – que se encontra no site da Fundação Maria Virgínia e J. Herculano Pires – que Herculano tinha uma fé imensa, certeza absoluta da ajuda de Deus nos momentos mais difíceis. Quando mudamos para São Paulo ele ficou durante dez meses desempregado. Ela conta que não demonstrava, mas estava ficando desesperada. Depois de empregado, minha mãe comentara com ele que não sabia se era “uma felicidade ou uma infelicidade casar com alguém com tanta fé em Deus”. Sempre que nos lembrávamos desta passagem de nossas vidas dávamos muitas risadas. Ele realmente vivia de acordo com suas crenças e não com a preocupação de atender a normas ou regras da sociedade criada pelos homens.
Em monografias filosóficas, Herculano tem a evidente proposta de esclarecer sobre a contribuição do espiritismo para o desenvolvimento da filosofia, em especial no tocante ao sentido da existência humana. Você saberia dizer por que ele escolheu a serenidade para defender sua tese na USP?
Em seu diário, conforme nos informa Jorge Rizzini no livro J. Herculano o apóstolo de Kardec, Herculano conta: “(…) que em 26 de abril de 1935 vira a serenidade fluir sobre a cumeeira das casas, na cidadezinha de Cerqueira César [SP]… Neste dia perguntei por que motivo não somos serenos, mas inquietos, e muitas vezes até mesmo tumultuosos. Nesse mesmo dia resolvi descobrir o segredo da serenidade.” Teve a ideia de escrever um romance O serenista, porém não realizou esta tarefa. Dez anos depois escreveu um ensaio com o nome A busca da serenidade. E a realização de seu objetivo da busca da serenidade se completou em 1966, com a criação da obra O ser e a serenidade, que serviu como base para sua tese na USP.
O acervo de J. Herculano Pires está na Fundação Maria Virgínia e J. Herculano Pires. Há ainda material inédito?
Acreditamos que perdemos alguns materiais, porém graças à iniciativa do meu irmão espiritual Antonio Carlos Molina, diretor executivo da Fundação, e minha mãe, a organização desta documentação foi iniciada em 1995. Foram localizados vários originais para serem editados. Minha mãe publicou alguns, através da Editora Paideia e outros foram autorizados para publicação em outras editoras. Não tenho conhecimento de nenhum livro doutrinário ou filosófico ainda inédito. Sei de alguns romances e estamos estudando a sua publicação.
Como era a biblioteca pessoal de Herculano. O que ele lia?
A Fundação preserva a biblioteca de Herculano em seu antigo quarto. Ele tinha preferência por livros filosóficos, doutrinários, por pesquisas parapsicológicas e fazia questão de estar sempre atualizado. Sua profissão de crítico literário dos Diários Associados o obrigava a ler quase todo tipo de literatura.
Além da biblioteca, livros, documentos, o que mais compõe o acervo do casal na Fundação?
Parte dos móveis utilizados por eles está lá. Temos também gravações de áudios, de palestras do tempo em que o Grupo de Estudos funcionava na garagem, gravações originais dos programas No limiar do amanhã, que Herculano produziu, dirigiu e apresentou durante mais de três anos, todos sábados, e outras gravações.
Herculano se comunicou com a família no dia de seu falecimento. Como foi isso?
Realmente, no dia de seu falecimento ocorria uma reunião na garagem de casa, seguindo o planejamento anual de reuniões de estudo, acompanhada de uma reunião mediúnica. Quando meu pai estava no hospital, um médium recebeu duas mensagens: uma anunciando a chegada de Herculano no mundo espiritual e outra, do próprio Herculano. A princípio os familiares não quiseram ler as mensagens, pois achávamos muito cedo para qualquer comunicação. No almoço de domingo, quando todos estávamos reunidos, minha tia insistiu para que as lêssemos. Após a leitura não tivemos dúvidas de que ele era o autor.
É mesmo verdade a história de que Herculano teria sido em outras vidas irmão de Léon Denis, contemporâneo de Kardec em Portugal, como o poeta Alexandre Herculano?
Não tenho nenhuma informação que venha confirmar o sonho de meu pai de que fora em outra encarnação irmão de Léon Denis.
Quanto ao caso de ele haver sido o poeta Alexandre Herculano, essa teoria surgiu depois da publicação de uma entrevista feita por Jorge Rizzini, em nossa casa, durante uma noite em que os dois estavam conversando. Rizzini propôs ao meu pai responder a algumas perguntas, cujas respostas somente seriam publicadas após 40 anos de seu falecimento [publicada na edição de agosto de 2012 do Correio Fraterno].
Em uma delas, meu pai disse que acreditava ter nascido em Portugal, em uma encarnação passada, ter sido um jornalista que teve problemas com a igreja católica e que tivera que se exilar na França. Analisando as respostas do meu pai, o Rizzini concluiu que ele fora Alexandre Herculano, porém meu pai não o confirmou.
O ponto positivo desta afirmação de meu pai, sobre sua vida em Portugal na mesma época de Kardec, na França, é que descarta a possibilidade de criarem o mesmo problema com Chico Xavier, afirmando ser ele a reencarnação de Kardec.
(Publicado no Jornal Correio Fraterno -455 • Janeiro-Fevereiro 2014)