Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique
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O dileto professor Rivail-Kardec e, ao seu lado, na missão dignificante de todos os dias, Amélie Boudet, ambos extremamente preparados para a tarefa, construíram de forma impecável e deram à Humanidade o tão falado “Manual de Instruções” (da existência humano-espiritual e da sociabilidade fraterna) de que carecemos.
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Após a Idade Média, surgiu na Itália, no século XVI, um movimento científico racional, o Renascimento (ou o nascer de novo), propugnando e materializando um desligamento entre a religião e a ciência. Este movimento seria um marco, um avanço para a Humanidade. E a História foi seguindo seu rumo para, no século XVII, o Iluminismo, em especial, na França, em que Voltaire e Rousseau são expoentes.
Diderot e D’Alembert procuraram reunir, assim, todo o conhecimento humano produzido (à luz da Razão) em trinta e cinco volumes daquilo que nomearam “Enciclopédia”. A Razão – em detrimento da fé cega –, a valorização das artes, a exclusão dos privilégios decorrentes meramente do nascimento (berço) e a tão sonhada igualdade de direitos. De maneira bem sucinta, eis o Iluminismo como o processo de desvendar a realidade diante da cegueira moral em que vivia a sociedade.
Nos idos de 1789 a 1799, a França passou por uma Revolução. Era a Revolução Francesa, cujo lema era o de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, que se espraia até hoje na busca incessante pelo progresso. Nessa época, um educador, Johann Heinrich Pestalozzi (1746-1827), sem maiores chances de mostrar seu ímpar trabalho, ficou trinta anos isolado em sua propriedade (Neuhof), escrevendo sobre temas educacionais. Sugeriu, ele, o método intuitivo na educação, no qual o despertar do conhecimento na criança dar-se-ia pelo uso do afeto e da observação do local onde vivia. A chance de colocar seu método em prática – dirigiu uma escola em Burgdorf e de 1805 a 1825, um colégio interno em Yverdon, com alunos pagantes e o acolhimento aos que não podiam pagar – atraiu os pais de um jovem francês.
Denisard Hypollite Leon Rivail nascido em 1804, aos 11 anos vai para a Suíça estudar com Pestalozzi, uma oportunidade ímpar e grandiosa para aprofundar seus conhecimentos e práticas. Influenciado pelo destacado e peculiar sistema de educação, inspirado na Maiêutica de Sócrates, tornou-se um dos mais eminentes discípulos desse célebre professor e um dos zelosos propagandistas da pedagogia pestalozziana. Para o educador suíço e seu discípulo francês, o mestre deveria ensinar, nas distintas ocupações da existência, uma ideia inteligente e acurada sobre os objetos comuns ao ramo do conhecimento, assim como acerca das forças da natureza.
Aos 50 anos, Rivail deparou-se com fenômenos estranhos, que, à primeira vista, ele reputou à prestidigitação e ao ilusório, dentro do contexto da fantasia que lotava os salões parisienses, tomados por aqueles que buscavam divertimentos frívolos e fugidios. Todavia, decorrido o tempo e com a maturação derivada da análise racional, algumas dessas ocorrências passaram a lhe provocar atenção e interesse. É justamente aí que se processa uma destacada transformação: morre Rivail e (re)nasce Allan Kardec. O sacerdote druida tem, portanto, um novo cenário, um novo contexto, uma série de renovadas relações interpessoais para exemplificar seu robusto conhecimento adquirido na senda das reencarnações.
Não gerado do nada, nem plasmado em função de designações temporais, ocupando funções ou cargos que a honraria terrena consolida, Rivail-Kardec é um fruto legítimo e maduro de uma educação libertadora e amorosa. Estudando sua biografia real, vemos que ele usou de sua instrução em todos os aspectos de sua vida. Conhecedor do Espiritualismo Racional e do Magnetismo, com uma formação plural que as academias francesas lhe proporcionaram ainda sobre os efeitos do “Século das Luzes”, o Professor francês pôde projetar e edificar o seu destacado trabalho de construção da Filosofia Espírita.
Mas, como os outros grandes da História, preocupou-se com sua “missão”, a partir dos colóquios com as Inteligências Invisíveis, que lhe apontaram com detalhes os contornos de seu trabalho, para, humildemente, perguntar a seus interlocutores sobre o porvir, em que não se considera apto para assumir a condição de “missionário-chefe”, distante da de simples obreiro. E, então, o que sucederia se Kardec falhasse? A resposta, pontual como todas as outras, superando as hipóteses de ufanismo e otimismo exacerbado, peculiares à raça humana, lhe permitiu a serenidade permanente: “Não te esqueças de que tanto poderás ter sucesso, como fracassar. Neste último caso, outro te substituiria, porque os desígnios de Deus não podem depender da cabeça de um homem” (KARDEC, A. Obras Póstumas. Minha Missão. Mensagem de 12 de junho de 1856, pela médium Sra. Aline C. Trad. Sylvia Mele Pereira da Silva, com Introdução e Notas de J. Herculano Pires. 2. ed. São Paulo: Lake, 1979).
O Espiritualismo Racional nasce a partir desta Ideologia – a corrente de pensamento de cunho materialista, que estudava as ideias, a partir da perspectiva meramente humano-material, para a qual o ser humano é um produtor de ideias, que brotam fisicamente do cérebro material. Mas, mesmo entre os adeptos da racionalidade materialista, houve pensadores como Maine de Biran (1766-1824) que perceberam haver uma diferença entre os fenômenos meramente psicológicos, ou seja, os da alma, os quais seriam relativos à razão (ainda que cerebral ou física), assim como os decorrentes da vontade e da imaginação e os fenômenos fisiológicos, meras reações orgânicas, presentes apenas no corpo, como a dor e o prazer, ainda que produzindo efeitos no psicológico.
Com isso começa a ganhar corpo a concepção psicológica extracorporal, sobretudo porque há algo que influencia os organismos físicos, uma moral do condicionamento ou os chamados hábitos condicionados. Depois, com o advento da Filosofia Espírita, há toda uma explicação “além da matéria”, quando se examinam as escolhas humanas que sejam pertinentes às Leis Universais – que se aplicam, efetivamente, sobre o componente humano-material, planetário. Daí a resposta das Inteligências Invisíveis, quando questionadas por Rivail-Kardec, acerca da “sede” das Leis Divinas (“Onde está escrita a Lei de Deus?”. Resposta: “Na consciência”, conforme o item 621, de “O livro dos Espíritos” (KARDEC, A. “O livro dos Espíritos”. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE, 2004). Aí tem-se a geratriz espiritual-humana da responsabilidade individual acerca dos atos do Espírito, principalmente em função dos hábitos adquiridos.
Eis, aí, a base da Doutrina Espírita, que se consagra mundialmente como uma das fases do Espiritualismo. Não mais a Espiritualidade decorrente do sobrenatural, do mítico e do místico, ensinada pelas Igrejas e derivada de dogmas religiosos, mas o Espiritualismo Racional. Ele opera sobre os contextos e as situações vividas pela alma encarnada e, não somente isso, penetra na perspectiva extracorpórea, pré e pós-existente, isto é, o passado de realizações e o futuro como o que virá, a partir do presente. O Espiritismo vem, pois, elucidar esse “mistério” – o antes, o durante e o depois como elos interpenetrados e consequentes. Kardec, assim, com o Espiritismo, permite à metafísica o seu caráter experimental (como demonstrado à exaustão em “A Gênese”), pois, ao conversar com os Espíritos, Kardec enquadra os fatos que até então eram pouco entendidos ou compreendidos, esclarecendo que para tudo há uma explicação natural: os Espíritos e os mundos ambos regidos por Leis Naturais…
O Espiritualismo Racional é, pois, estudado nas Universidades, desde a época rivailiana, oportunizando àquela geração (e às seguintes) a aptidão ao entendimento lógico-racional dos fenômenos que se distanciam da ideia do sobrenatural (prerrogativa das crenças). Remontando às primeiras ocorrências da Mediunidade diante de Kardec, passamos a perceber que a resposta dada ao Professor francês, no âmbito das mesas girantes (“Somos vocês desencarnados”) subsiste e persiste em cada contato mediúnico, entre “vivos” e “mortos”. Não mais se tornam necessários objetos inanimados para a eclosão da comunicabilidade entre os Espíritos.
Mas isto só se tornou possível e se agiganta a partir da noção atual embasada na teoria e prática originárias, que foi ele, o Professor Rivail, com todo o seu conhecimento e preparo, que se permitiu desenrolar os mistérios da Humanidade, deixando atônitos religiosos e cientistas (materialistas), uma vez que a lucidez (científica) oriunda de sua primorosa educação – não só da existência no Século XIX, mas, igualmente, considerando as anteriores – possibilitou um conjunto de caracteres (habilidades, potencialidades, qualidades morais e técnicas) para a primorosa construção da Filosofia Espírita, que subsiste.
Ainda em “A Gênese” (“Caráter da Revelação Espírita”, Capítulo I), o mestre lionês nos afirma que a Revelação Espírita é, ao mesmo tempo, Divina e Científica. Divina porque não é fruto da vontade dos humanos, e suas construções mentais, mas do próprio Universo (ainda que ele a centralize no Deus, como princípio fundamental espiritista). Não é Deus, pessoalmente, ou seja, um ser com atributos humanos (como consta, aliás, tanto do Antigo quanto do Novo Testamento) quem “realiza” o processo revelador, mas, sim, os Espíritos (tidos como Superiores) que guiam o trabalho, num processo ambivalente de cooperação e solidariedade entre os Espíritos (os encarnados e os desencarnados, em sintonia e comunicabilidade). Este pressuposto configura as relações que se formam entre as inteligências dos “dois mundos”, calcada, pois, no crescimento intelecto-moral das criaturas. Por fim, por isso, ela é Científica, porquanto embasada em situações naturais que podem ser estudadas e entendidas à luz da consciência humana, sem recorrer a artefatos de fé, posto que a humanidade já se encontrava suficiente madura para conseguir “ver” o véu e através de esforços pessoais, retirá-lo.
Uma observação, ainda, precisa ser feita em relação ao entendimento acerca de Espíritos Superiores. Nem sempre os comunicantes, seja à época de Kardec, seja no nosso tempo, são, de fato, aqueles que estão descritos em “O livro dos Espíritos”, item 111, como situados na Segunda Classe da Segunda Ordem, abaixo, apenas, dos “Espíritos Puros”.
Estes, segundo a definição contida na obra pioneira, “Reúnem a ciência, a sabedoria e a bondade. Sua linguagem, que só transpira benevolência, é sempre digna, elevada e, frequentemente, sublime. Sua superioridade os torna, mais que os outros, aptos a nos proporcionarem as mais justas noções sobre as coisas do mundo incorpóreo, dentro dos limites que nos é dado conhecer. Comunicam-se voluntariamente com os que procuram de boa-fé a verdade, e cujas almas estejam bastante libertas dos liames terrenos, para a compreender; mas afastam-se dos que são movidos penas pela curiosidade, ou que, pela influência da matéria, desviam-se da prática do bem”.
Quando, em muitos conteúdos dispersos pelas 32 obras de Allan Kardec, são mencionados “Espíritos Superiores” ou a superioridade espiritual, nem sempre estarão sendo mencionadas as individualidades que, logrando o curso do Progresso, já alcançaram a condição expressa no item acima. São, portanto, superiores a nós, que aqui nos encontramos, invariavelmente, na Terra, ainda sujeitos a mazelas e vicissitudes e que ainda padecemos em função dos defeitos comuns peculiares à Humanidade em geral, sobretudo por influência do egoísmo e do orgulho. Superiores estão, por extensão, à nossa condição, como se estivéssemos mencionando aqueles indivíduos que têm Mestrado e Doutorado em relação aos que apenas se graduaram em nível universitário, ou entre estes e os que só possuem o ensino médio, e destes em relação aos que concluíram o ensino fundamental e, por fim, entre esses últimos e os analfabetos.
Assim como na época rivailiana como agora, existem criaturas que já desenvolveram a condição de entender através da racionalidade alargada, ampliando seus conhecimentos acerca do mundo em que vivem e, de certo modo, em relação à realidade extracorpórea. Estando no meio espírita, percebem claramente que a proposta espiritista é a da plena sociabilidade, em que as relações eternas, no cenário social, nos endereçam ao trabalho permanente em função da melhoria das condições sócio-econômicas-espirituais, com o destacado comprometimento dos “despertos” com o semelhante. Nada além disso já não estava previsto e proposto à exaustão no trabalho Kardeciano. Esse dileto professor Rivail-Kardec e, ao seu lado, na missão dignificante de todos os dias, Amélie Boudet, ambos extremamente preparados para a tarefa, construíram de forma impecável e deram à Humanidade o tão falado “Manual de Instruções” (da existência humano-espiritual e da sociabilidade fraterna) de que carecemos.
Por isso, é no voltar-se para si e despertar que a criatura encontra o olhar do outro e para o outro, pois se desenvolve, sem solavancos ou saltos, na procura de outras mãos que igualmente trabalham (no bem), os corações que mutuamente se afagam. Ajudando-se, pois, mutuamente, no desenvolvimento pleno do ambiente em que os indivíduos se encontram, não se permite deixar ninguém para trás, bem a talante da expressão atribuída à Yeshua: “das ovelhas que o Pai me confiou nenhuma se perderá” (Lc; 15:1-7).
Dois mundos distintos e acoplados, interdependentes, são a nossa realidade – apesar do mundo material ser transitório. Ambos projetam em si as Leis Naturais, que se aplicam às ínfimas e diversificadas situações do nosso cotidiano, enquanto Espíritos (na existência física e fora dela). Então, que cada um de nós possa viver a conquista desse conhecimento humano-espiritual, pleno e amplificado, tendo em mente que a felicidade não é algo pessoal, mas, sim, algo conjunto. É o ser que procura o outro e, com ele, faz a caminhada plena e sempre próxima da fonte universal, a que os homens chamam Deus.
Imagem de Rosy / Bad Homburg / Germany por Pixabay