Por Márcio Sales Saraiva
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No Espiritismo, essa “sábia ignorância” é um convite para buscar, com respeito e curiosidade, os mistérios da vida, sem a arrogância de pretender já possuí-los. Aceitar que não possuímos “a verdade” – como defende Gianni Vattimo, filósofo italiano – é um gesto de humildade e caridade. O contrário disso é soberba.
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Muitas vezes ouvimos em palestras que “o Espiritismo explica todas as coisas”. Essa afirmação, embora bem-intencionada, está mais próxima do fundamentalismo religioso do que da verdade-caridade preconizada por Allan Kardec. Vivemos em um universo onde o mistério é uma constante, e nossa capacidade de compreensão permanece limitada.
Em sua obra magna, “O livro dos Espíritos”, Kardec confronta, diversas vezes, os limites do conhecimento, mesmo entre os Espíritos comunicantes. O fato de estarem desencarnados não os transforma em seres oniscientes. Eles continuam humanos, ainda que livres das restrições do corpo físico.
A questão 17 é emblemática: Kardec pergunta se é possível conhecer “o princípio das coisas” – a origem do universo, do mal, de nós mesmos. A resposta é categórica: “Não”. Os Espíritos explicam que nem tudo nos será revelado neste estágio de progresso. Lacan, o psicanalista francês, denominaria essa impossibilidade de Real (com “r” maiúsculo), o campo do impossível de ser simbolizado, aquilo que escapa à linguagem e à racionalidade.
Mesmo a ciência, que Kardec defende como aliada do Espiritismo, encontra limites. Na questão 19, os Espíritos mencionam os “limites fixados por Deus” – ou pela própria estrutura cósmica. Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, amplia essa reflexão ao criticar o monopólio da ciência moderna sobre o conhecimento, defendendo que saberes alternativos, como os espirituais, nos ajudam a expandir os horizontes epistemológicos.
Porém, limites não significam paralisia. Pelo contrário, eles nos impulsionam. A ciência e a filosofia progridem justamente ao questionar o desconhecido. Elisabeth Roudinesco, ao analisar a psicanálise, enfatiza que o enfrentamento do sujeito com aquilo que escapa à sua compreensão é o motor do desenvolvimento humano. Somos, afinal, seres de falta e desejo. Nesse sentido, o Espiritismo, ao abraçar a dúvida e o mistério, converge para uma postura de abertura semelhante.
A mediunidade é um exemplo claro desse enfrentamento. Fenômenos como a reencarnação, estudados por pesquisadores como Ian Stevenson, ainda não têm consenso científico, mas acumulam evidências que desafiam o reducionismo materialista e apontam para a possibilidade de uma consciência que transcende o cérebro. Leonardo Boff, teólogo brasileiro, embora não creia na reencarnação, rejeita qualquer visão reducionista da mente. Para ele, a dimensão espiritual transcende a biologia e o cérebro, abre-se ao mistério e à transcendência, algo que as neurociências ainda não conseguem abarcar plenamente.
Reconhecer nossa ignorância é, portanto, um gesto de humildade. Sócrates já dizia: “Só sei que nada sei.” Richard Rorty, filósofo pragmatista, reforça essa postura antidogmática ao sugerir que abandonemos a busca por verdades absolutas em favor de narrativas que promovam o bem-estar humano. No Espiritismo, essa “sábia ignorância” é um convite para buscar, com respeito e curiosidade, os mistérios da vida, sem a arrogância de pretender já possuí-los.
Sartre, filósofo existencialista, ao afirmar que “o nada precede o ser”, lembra-nos que é na abertura ao desconhecido que reside nossa liberdade. Da mesma forma, o Espiritismo kardequiano, ao reconhecer suas limitações, encontra sua força: menos é mais.
Por fim, o Espiritismo não é uma cosmovisão de certezas absolutas, mas uma jornada contínua. Somente espíritas dogmáticos e conservadores negam essa característica, contradizendo Kardec ao abraçarem crenças irracionais, negacionistas ou absurdas. Aceitar que não possuímos “a verdade” – como defende Gianni Vattimo, filósofo italiano – é um gesto de humildade e caridade. O contrário disso é soberba. Lacan nos lembra que “o saber não está todo no Outro.” É justamente nessa falta que se abre o espaço para crescer, dialogar e nos conectar com o mistério do Universo e de nós mesmos, numa jornada infinita em direção ao Inefável.
Referências:
ALLOUCHE, F. Ser livre com Sartre. Petrópolis (RJ): Vozes, 2019.
BOFF, L. Teologia do cativeiro e da libertação. Petrópolis: Vozes, 1987.
KARDEC, A. O livro dos Espíritos. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE, 2004.
LACAN, J. O seminário – Livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
RORTY, R. A filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.
VATTIMO, G. Adeus à verdade. Petrópolis: Vozes, 2018.
Certa vez, durante uma reunião mediúnica, um amigo espiritual utilizou a matemática para abordar uma questão semelhante. Em resposta à pretensa superioridade de alguns espíritas, afirmou: “O Espiritismo não contém todas as verdades, mas não duvide que está contido nelas.