A sábia ignorância do Espiritismo, por Márcio Sales Saraiva

Tempo de leitura: 3 minutos

Por Márcio Sales Saraiva

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No Espiritismo, essa “sábia ignorância” é um convite para buscar, com respeito e curiosidade, os mistérios da vida, sem a arrogância de pretender já possuí-los. Aceitar que não possuímos “a verdade” – como defende Gianni Vattimo, filósofo italiano – é um gesto de humildade e caridade. O contrário disso é soberba.

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Muitas vezes ouvimos em palestras que “o Espiritismo explica todas as coisas”. Essa afirmação, embora bem-intencionada, está mais próxima do fundamentalismo religioso do que da verdade-caridade preconizada por Allan Kardec. Vivemos em um universo onde o mistério é uma constante, e nossa capacidade de compreensão permanece limitada.

Em sua obra magna, “O livro dos Espíritos”, Kardec confronta, diversas vezes, os limites do conhecimento, mesmo entre os Espíritos comunicantes. O fato de estarem desencarnados não os transforma em seres oniscientes. Eles continuam humanos, ainda que livres das restrições do corpo físico.

A questão 17 é emblemática: Kardec pergunta se é possível conhecer “o princípio das coisas” – a origem do universo, do mal, de nós mesmos. A resposta é categórica: “Não”. Os Espíritos explicam que nem tudo nos será revelado neste estágio de progresso. Lacan, o psicanalista francês, denominaria essa impossibilidade de Real (com “r” maiúsculo), o campo do impossível de ser simbolizado, aquilo que escapa à linguagem e à racionalidade.

Mesmo a ciência, que Kardec defende como aliada do Espiritismo, encontra limites. Na questão 19, os Espíritos mencionam os “limites fixados por Deus” – ou pela própria estrutura cósmica. Boaventura de Sousa Santos, sociólogo português, amplia essa reflexão ao criticar o monopólio da ciência moderna sobre o conhecimento, defendendo que saberes alternativos, como os espirituais, nos ajudam a expandir os horizontes epistemológicos.

Porém, limites não significam paralisia. Pelo contrário, eles nos impulsionam. A ciência e a filosofia progridem justamente ao questionar o desconhecido. Elisabeth Roudinesco, ao analisar a psicanálise, enfatiza que o enfrentamento do sujeito com aquilo que escapa à sua compreensão é o motor do desenvolvimento humano. Somos, afinal, seres de falta e desejo. Nesse sentido, o Espiritismo, ao abraçar a dúvida e o mistério, converge para uma postura de abertura semelhante.

A mediunidade é um exemplo claro desse enfrentamento. Fenômenos como a reencarnação, estudados por pesquisadores como Ian Stevenson, ainda não têm consenso científico, mas acumulam evidências que desafiam o reducionismo materialista e apontam para a possibilidade de uma consciência que transcende o cérebro. Leonardo Boff, teólogo brasileiro, embora não creia na reencarnação, rejeita qualquer visão reducionista da mente. Para ele, a dimensão espiritual transcende a biologia e o cérebro, abre-se ao mistério e à transcendência, algo que as neurociências ainda não conseguem abarcar plenamente.

Reconhecer nossa ignorância é, portanto, um gesto de humildade. Sócrates já dizia: “Só sei que nada sei.” Richard Rorty, filósofo pragmatista, reforça essa postura antidogmática ao sugerir que abandonemos a busca por verdades absolutas em favor de narrativas que promovam o bem-estar humano. No Espiritismo, essa “sábia ignorância” é um convite para buscar, com respeito e curiosidade, os mistérios da vida, sem a arrogância de pretender já possuí-los.

Sartre, filósofo existencialista, ao afirmar que “o nada precede o ser”, lembra-nos que é na abertura ao desconhecido que reside nossa liberdade. Da mesma forma, o Espiritismo kardequiano, ao reconhecer suas limitações, encontra sua força: menos é mais.

Por fim, o Espiritismo não é uma cosmovisão de certezas absolutas, mas uma jornada contínua. Somente espíritas dogmáticos e conservadores negam essa característica, contradizendo Kardec ao abraçarem crenças irracionais, negacionistas ou absurdas. Aceitar que não possuímos “a verdade” – como defende Gianni Vattimo, filósofo italiano – é um gesto de humildade e caridade. O contrário disso é soberba. Lacan nos lembra que “o saber não está todo no Outro.” É justamente nessa falta que se abre o espaço para crescer, dialogar e nos conectar com o mistério do Universo e de nós mesmos, numa jornada infinita em direção ao Inefável.

Referências:

ALLOUCHE, F. Ser livre com Sartre. Petrópolis (RJ): Vozes, 2019.

BOFF, L. Teologia do cativeiro e da libertação. Petrópolis: Vozes, 1987.

KARDEC, A. O livro dos Espíritos. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE, 2004.

LACAN, J. O seminário – Livro 1: os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.

RORTY, R. A filosofia e o espelho da natureza. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.

ROUDINESCO, E. Por que a psicanálise? Rio de Janeiro: Zahar, 1999.

SANTOS, B. S.; MENESES, M. P. Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.

VATTIMO, G. Adeus à verdade. Petrópolis: Vozes, 2018.

Imagem de Simp1e123 por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “A sábia ignorância do Espiritismo, por Márcio Sales Saraiva

  1. Certa vez, durante uma reunião mediúnica, um amigo espiritual utilizou a matemática para abordar uma questão semelhante. Em resposta à pretensa superioridade de alguns espíritas, afirmou: “O Espiritismo não contém todas as verdades, mas não duvide que está contido nelas.

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