Despertar, por José Nunes

Tempo de leitura: 4 minutos

José Nunes

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O Brasil dos anos 80 precisava dessas canções, ainda que não soubesse. Precisava de uma trilha sonora que fizesse sentido para uma nação que se olhava no espelho e não se reconhecia.

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A noite pairava sobre a cidade, como um véu de incerteza, enquanto as ruas exalavam um cheiro metálico de modernidade e esquecimento. O Brasil, 1985. Uma nação que despertava de um pesadelo de duas décadas, tentando entender onde terminava a repressão e começava a liberdade. Mas a liberdade, ah, essa palavra escorregadia, vinha cheia de dívidas, promessas e um rastro de desalento. As esquinas ainda tinham resquícios do medo, enquanto os rostos cansados tentavam se ajustar à luz crua da redemocratização.

Foi nesse instante, entre o peso do passado e a vertigem do futuro, que Despertar emergiu. Guilherme Arantes, com sua voz de veludo e acordes de esperança, lançou um álbum que, à primeira audição, parecia apenas uma coleção de belas melodias. Mas era mais do que isso. Era um convite para levantar a cabeça, uma trilha sonora para um país que ainda tateava na escuridão, mas que ousava sonhar.

Quando os primeiros acordes de Cheia de Charme invadiram o rádio, a cidade se ergueu. Era uma mulher dançando sozinha na sala de estar, era a menina do subúrbio descobrindo seu próprio reflexo no espelho. Em uma época em que a mulher ainda lutava para ser mais que um adorno de campanhas publicitárias, essa música chegava como um afago, um hino não declarado à autonomia. Ela não precisava de ninguém para dizer o que vestir, o que pensar. Era a personificação de um Brasil que queria, finalmente, andar com as próprias pernas.

Mas nem toda libertação vem sem dor. Olhos Vermelhos falava desse peso invisível, da melancolia de um país exausto, de uma juventude que aprendeu a sonhar entre as cinzas. Freud teria algo a dizer sobre isso. A psicanálise nos ensina que o trauma se esconde nos cantos escuros da memória, e essa música parecia cutucar esses espaços. As noites em claro, as lágrimas sem nome, a sensação de carregar um peso sem saber de onde veio. O ouvinte se via ali, no meio de um Brasil que queria chorar, mas que ainda engolia seco.

A cada faixa, Despertar ia desenhando um país em transição. Brincar de Viver, coescrita com Jon Lucien, era um suspiro de leveza em meio à ressaca do tempo. Sartre diria que a liberdade é um fardo, Camus nos lembraria do absurdo da existência. Mas Arantes escolheu o caminho do lirismo. Por que não dançar, mesmo que o chão esteja rachado? Por que não brincar, mesmo sabendo que o jogo é cruel? A música era quase uma resposta à seriedade opressiva da década anterior, uma permissão para sorrir sem culpa.

Então vieram as Gaivotas, desenhando no céu a necessidade de fuga, o desejo de algo além do concreto e dos noticiários. Havia uma ânsia por movimento, um querer atravessar fronteiras invisíveis. Mas, como nos alertaria Zygmunt Bauman, a modernidade líquida faz promessas de liberdade que, muitas vezes, escorrem pelos dedos. E se essa liberdade fosse apenas mais uma miragem? E se, ao voar, descobríssemos que o céu também tem suas prisões?

Entre sintetizadores e melodias cuidadosamente lapidadas, o álbum pulsava com a energia de um Brasil que não sabia se ria ou chorava. A música instrumental Pérolas de Neon era um interlúdio de respiro, um momento para processar tudo que havia sido sentido até então. Cada acorde era um eco do passado, uma nota suspensa entre a nostalgia e a esperança.

E então, o desfecho: Despertar do Amor. Depois da confusão, da dor, do desejo de fuga, restava o amor. Não o amor ingênuo, mas aquele que sobrevive aos escombros. Em um país que tentava reaprender a confiar, essa música era um lembrete de que, no fim das contas, ainda havia algo pelo qual valia a pena lutar.

O impacto do álbum não foi imediato como um grito de protesto, mas sim como uma onda que, com o tempo, foi moldando a areia. O Brasil dos anos 80 precisava dessas canções, ainda que não soubesse. Precisava de uma trilha sonora que fizesse sentido para uma nação que se olhava no espelho e não se reconhecia.

A relação do ouvinte com Despertar ia além do entretenimento. Era um refúgio para quem queria esquecer, uma catarse para quem precisava lembrar. O trabalhador exausto voltava para casa e encontrava em Cheia de Charme um sorriso involuntário. O jovem universitário que lia Marx e Foucault sentia em Olhos Vermelhos a própria insônia refletida. A menina que sonhava em sair da cidade pequena escutava Gaivotas e entendia que o desejo de ir embora era mais do que um capricho: era um instinto de sobrevivência.

No fundo, Despertar era um espelho. Um espelho lírico, onde cada um via aquilo que mais precisava enxergar. Guilherme Arantes não fez um manifesto político, mas entregou algo talvez ainda mais potente: um mapa emocional de um tempo conturbado. E, como toda grande obra, esse mapa continua válido até hoje.

Os anos passaram, mas as questões ficaram. Ainda buscamos a leveza em meio ao peso do mundo. Ainda nos sentimos presos, mesmo quando temos asas. Ainda precisamos de canções que nos segurem pela mão e digam: “Vai. O amanhã pode ser incerto, mas ele te espera.”

No fim das contas, Despertar não foi apenas um álbum. Foi um abraço invisível, um sussurro ao pé do ouvido dizendo que, por mais difícil que seja, sempre haverá música para nos guiar.

Nota do ECK: O autor é idealizador da FanPage “Fora do Refrão”. Para conhecer mais acerca do trabalho, acesse: < https://www.facebook.com/foradorefraomag >.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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