Nathalia Koch de Matos
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No Brasil contemporâneo, marcado por misturas étnicas e culturais únicas, a fragmentação das identidades continua sendo um obstáculo para a construção de um projeto coletivo. Como sugere Kardec, o progresso espiritual só será possível quando as desigualdades forem usadas como ferramentas para elevar, e não para oprimir.
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Introdução
No livro “O Som dos Negros no Brasil”, José Ramos Tinhorão nos apresenta um dado crucial: cerca de quatro milhões de africanos foram transportados ao Brasil durante o tráfico transatlântico. Este sistema, alimentado pela exploração colonial europeia, foi viabilizado não apenas pela força dos colonizadores, mas também pela cooperação de elites africanas, que participaram das trocas de prisioneiros de guerra e indivíduos escravizados. Contudo, como bem destacam as questões 831 e 832 de “O livro dos Espíritos”, a escravidão transcende o aspecto material. Kardec esclarece que a desigualdade de aptidões e condições humanas não deve justificar a exploração ou o embrutecimento, mas sim servir como oportunidade de elevação espiritual, um princípio frequentemente ignorado pelos sistemas de dominação.
A escravidão no tráfico transatlântico não apenas desumanizou os corpos, mas também reduziu os Espíritos a mercadorias, revelando a visão equivocada de superioridade baseada no sangue ou na raça. Kardec critica duramente essa percepção ao dizer que os homens “só veem a matéria” e tratam os outros como “animais trabalhadores”. Essa perspectiva ressoa na história, pois, para que o sistema escravista alcançasse a escala desumanizante que conhecemos, foi necessário um alinhamento de interesses entre elites coloniais europeias e lideranças locais, muitas vezes corrompidas pela ganância e pela lógica do poder.
Essa reflexão nos leva a uma questão central: como as elites, em diferentes contextos históricos, influenciam a condução de seus povos? Kardec, ao afirmar que privar alguém da liberdade é reduzir o Espírito a uma mercadoria, evidencia como o papel das elites – tanto coloniais quanto locais – pode ser decisivo para a perpetuação da opressão ou para a elevação coletiva. A colaboração de elites indígenas no Brasil e das elites incas com os espanhóis são exemplos históricos de como essas escolhas impactaram profundamente a liberdade e o destino de seus povos.
1- A estratégia colonial de fragmentação
O sistema de “dividir para conquistar”, utilizado por colonizadores para controlar populações, foi eficaz porque se baseava na exploração de rivalidades internas. No caso das Américas, os europeus manipularam disputas entre tribos indígenas, enquanto na África incentivaram conflitos entre reinos para garantir um fluxo constante de pessoas escravizadas. Essa lógica fragmentadora não era apenas militar ou econômica, mas profundamente desumanizante, reduzindo o outro a uma condição de dependência, conforme Kardec sugere na questão 831, do livro citado: a dependência deveria servir à elevação, mas na prática serviu à degradação espiritual.
No entanto, a fragmentação colonial não desapareceu com o fim da escravidão. Hoje, essa mesma lógica é perpetuada em formas mais sutis, tanto no Brasil quanto globalmente. Identidades culturais e raciais fragmentadas continuam sendo usadas como ferramentas de divisão. Kardec, ao tratar da desigualdade de aptidões, nos lembra de que as diferenças humanas devem servir à cooperação e ao progresso coletivo, mas frequentemente são manipuladas para justificar sistemas de dominação e exclusão.
2- Fragmentação contemporânea e a lógica de mercado
Kardec também ilumina uma verdade ainda presente no contexto contemporâneo: a mercantilização da vida e das relações humanas. Na questão 832, do livro primeiro, ele aponta que, mesmo quando os escravos eram tratados com humanidade, isso não os livrava da condição de mercadoria. Esse raciocínio pode ser ampliado para compreender como, no Brasil de hoje, tanto as elites quanto as camadas populares vivem fragmentadas por lógicas que continuam priorizando o lucro e a exploração em vez da elevação coletiva.
Entre as elites, sejam brancas ou não-brancas, vemos a perpetuação de divisões que enfraquecem a capacidade de resistência coletiva. A busca por interesses individuais ou de pequenos grupos frequentemente prevalece sobre o compromisso com o bem comum. Nas camadas populares, a polarização política, cultural e econômica impede a formação de alianças mais amplas contra as desigualdades estruturais. Tudo isso reflete a lógica colonial e mercantil que, como Kardec sugere, trata as pessoas como “bois e cavalos”, valorizando-as apenas pelo que podem produzir, e não pelo que são enquanto Espíritos.
3- A desigualdade e o papel do Espírito
O que podemos aprender, então, ao olhar para a história e confrontá-la com as ideias espíritas? Primeiro, é necessário reconhecer que as divisões internas – tanto no passado quanto no presente – sempre beneficiaram aqueles que detêm o poder. Quando Kardec nos alerta sobre o erro de considerar uma raça ou grupo como superior, ele também nos aponta um caminho de reconciliação: a compreensão de que o progresso verdadeiro não pode ser construído às custas da servidão ou da mercantilização do outro.
No Brasil contemporâneo, marcado por misturas étnicas e culturais únicas, a fragmentação das identidades continua sendo um obstáculo para a construção de um projeto coletivo. Como sugere Kardec, o progresso espiritual só será possível quando as desigualdades forem usadas como ferramentas para elevar, e não para oprimir.
Conclusão: Uma visão unificada
A história nos ensina que a fragmentação foi uma estratégia eficaz para perpetuar a dominação. Seja entre as elites africanas que colaboraram com o tráfico transatlântico, seja entre os povos indígenas que participaram da colonização, a divisão interna sempre serviu aos interesses de quem desejava controlar. No entanto, como nos lembram as reflexões de Kardec, a verdadeira elevação humana não está na matéria ou no poder, mas no Espírito.
O desafio atual, portanto, é superar essas divisões, tanto históricas quanto contemporâneas, e construir uma unidade baseada no reconhecimento da dignidade humana e na cooperação coletiva. Assim como no passado, a fragmentação só beneficia aqueles que buscam controlar – e a união, mesmo que difícil, é o único caminho para resistir e progredir.
Referência:
KARDEC, A. O livro dos Espíritos. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE, 2004.
Imagem de Pam Patterson por Pixabay