Wilson Garcia
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Com o livro nas mãos, sequer deixei que o vendedor o embrulhasse. Subi os degraus do ônibus, sentei-me e por cerca de uma hora li com pontual deslumbramento as primeiras 100 páginas e, como muitos outros leitores do mesmo livro, tive a sensação de que conhecia aquilo que ali estava, algo que parecia vir de uma memória esquecida em algum compartimento da alma.
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Eu escrevia, não me pergunte como nem por quê. Desde o aprendizado das primeiras letras aos seis anos de idade, o impulso à escrita veio junto e o prazer também. O sucesso junto aos professores, os colegas e as pessoas outras despertou em mim o orgulho, que me fez olhar com carinho para o poder que a escrita confere a quem a sabe manusear.
Eu não competia com ninguém neste campo beletrista; era uma espécie de rei de um olho entre cegos. E não percebia quão ruim isso era, naquele presente e para o futuro. Já que fazia sucesso sem esforço, seria, então escritor, advogado e jornalista, decidi.
Minha garbosa cidade mineira de repente ficou pequena. Voei para São Paulo e na megalópole imensa dei de cara, numa livraria de ocasião, com “O livro dos Espíritos”, numa edição encadernada, capa dura, comemorativa do centenário de seu lançamento. Aquela lombada azul de letras brancas olhando-me, desafiadora, a mão deslizando para o bolso a medir a possibilidade de compra do produto.
Com o livro nas mãos, sequer deixei que o vendedor o embrulhasse. Subi os degraus do ônibus, sentei-me e por cerca de uma hora li com pontual deslumbramento as primeiras 100 páginas e, como muitos outros leitores do mesmo livro, tive a sensação de que conhecia aquilo que ali estava, algo que parecia vir de uma memória esquecida em algum compartimento da alma.
Impulsionado por aquela obra da qual jamais antes ouvira falar, despi-me ali mesmo da capa da crença que o catolicismo me impusera, ao mesmo tempo em que ouvi uma voz dizendo-me que para despojar-me por completo das ilusões do misticismo dogmático levaria séculos de conflitos.
Não importa. Ali mesmo, naquele instante inicial da nova conquista, quedei-me ante a figura maiúscula de Allan Kardec.
E o escritor, como ficaria? Recordei-me que havia lido em algum lugar que Paulo de Tarso, em situação semelhante, decidira retirar-se ao deserto por três anos, a fim de meditar sobre os novos conhecimentos colocados diante de si, para só então tornar-se ativista da nova causa. Verdade ou não, inspirado nele, tomei a decisão de cessar os meus rabiscos literários até que da nova doutrina espiritualista houvesse adquirido um mínimo seguro de conhecimento.
Tinha eu diante de mim uma escada da qual vi os pés fincados na terra firme e os degraus acima envoltos em uma névoa desafiadora e sem fim. Penso que estou ainda e apenas no segundo degrau.
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