Romances Espiritas para “explicar a história”: qual a utilidade disso?, por Henri Netto

Tempo de leitura: 5 minutos

Henri Netto

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Obras mediúnicas deixam muitos neófitos espíritas maravilhados com as “revelações”, com novidades que contrariam as descobertas de historiadores e estudiosos em relação ao contexto do século I de nossa era. Tudo isto na contramão de Kardec, que afirmou que, se a ciência trouxesse algum elemento diferente do que proclamasse o Espiritismo, com ela deveríamos permanecer.

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A grande maioria dos neófitos ao chegarem no meio espírita procuram o estudo para conhecer o Espiritismo. Então, os já experientes, indicam romances e o carro chefe é a obra “Nosso Lar”. Assim começa um caminho sem volta para a maioria dos que passam a conviver em ambiências espíritas. Porque vão recebendo conceitos distorcidos acerca do mundo espiritual. 

Aí está, então, o grande erro: ao invés de serem apresentados à obra de Kardec, são colocados diante de fantasias baseadas em ideias materialistas de médiuns e Espíritos pseudossábios e inferiores, cujas visões não são corretas, e contradizem a obra de Kardec. Assim, suas percepções míopes do mundo espiritual não passam de opiniões pessoais, totalmente cristalizadas em suas crenças religiosas. 

Se fosse somente isso, mas há coisa pior. Tem-se os chamados “romances históricos”, assinados pelo Espírito Emmanuel (que afirma serem relatos de sua existência pessoal à época de Jesus). Elas trazem informações que deixam muitos neófitos espíritas maravilhados com as “revelações” e as NOVIDADES, mas que contrariam as descobertas de historiadores e estudiosos em relação àquela época, o século I de nossa era. Tudo isto na contramão de Kardec, que afirmou que, se a ciência trouxesse algum elemento diferente do que proclamasse o Espiritismo, com ela deveríamos permanecer [1]. Mas, do contrário, muitos espíritas seguem as falas decorrentes da fascinação de um Espírito. 

Vejamos o que apresenta a base espírita, na dicção de Kardec [2]:

“Como se sabe, a identidade dos Espíritos é uma das grandes dificuldades do Espiritismo prático. Ela não pode ser constatada de maneira positiva senão para os Espíritos contemporâneos, dos quais se conhecem o caráter e os hábitos. Eles se revelam, então, por uma multidão de particularidades nos fatos e na linguagem, que não permitem deixar nenhuma dúvida. Esses são aqueles cuja identidade nos interessa mais, pelos laços que nos unem a eles. Um sinal, uma palavra frequentemente bastam para atestar a sua presença, e essas particularidades são tanto mais significativas, quando há mais semelhança na série das conversas familiares que se teve com esses Espíritos. É preciso considerar, além disso, que quanto mais os Espíritos estão próximos de nós pela época de sua morte terrestre, menos são despojados do caráter, dos hábitos e das ideias pessoais que no-los fazem conhecer.” (Nossas marcações.)

E ele prossegue [2]:

“Ocorre de outro modo com os Espíritos que não são conhecidos, de alguma sorte, senão pela história; para aqueles, não existe nenhuma prova material de identidade; pode haver sua presunção, mas não certeza absoluta da personalidade. Quanto mais afastados de nós estiverem os Espíritos pela época em que viveram, menos essa certeza é grande, tendo em vista que suas ideias e seu caráter podem ser modificados com o tempo. Em segundo lugar, aqueles que chegaram a uma certa elevação formam famílias similares pelo pensamento e o grau de adiantamento, dos quais todos os membros estão longe de nos serem conhecidos. Se um deles se manifesta, o fará sob um nome nosso conhecido, como indício de sua categoria. Evocando-se Platão por exemplo, pode ocorrer que ele responda ao chamado; mas se não o pode, um Espírito da mesma classe responderá por ele: este será seu pensamento, mas não sua individualidade. Eis do que importa muito bem se compenetrar.

De resto, os Espíritos superiores vêm para nos instruir; sua identidade absoluta é uma questão secundária. O que eles dizem é bom ou mau, racional ou ilógico, digno ou indigno de sua assinatura, aí está toda a questão. No primeiro caso, é aceita; no segundo, é rejeitada como apócrifa.” (Destacou-se.)

Em seguida, é transcrita uma comunicação de Erasto, sob o médium Sr. d’Ambel, de 6 de janeiro de 1865 [2]:

“[…] Ora, na maioria das circunstâncias em que os Espíritos se comunicam, os grandes Espíritos, bem entendido, estão longe de ter sob a mão os elementos suficientes para a emissão de seu pensamento na forma, com a fórmula que teriam dado quando vivos. Está aí um motivo para não receber suas instruções? Certamente não! Porque se algumas vezes a forma deixa a desejar, o fundo é sempre digno do signatário das comunicações. De resto são querelas de palavras. Existe ou não existe? Tudo está aí. Se ela existe, que importa o Espírito e o nome que se dá! Se não se crê nele, importa menos ainda com isso se preocupar. Os Espíritos tratam de convencer; quando não têm sucesso, é um inconveniente sem importância; é simplesmente porque o encarnado não está ainda pronto para ser convencido. No entanto, estou bem à vontade para afirmar aqui que sobre cem indivíduos de boa-fé que experimentam por eles ou por médiuns que lhes são estranhos, há mais de dois terços que se tornam partidários sinceros da Doutrina Espírita, porque nesses períodos excepcionais, a ação dos Espíritos não se circunscreve somente ao ato do médium, mas se manifesta por mil lados materiais ou espirituais sobre o próprio evocador.

Em suma, nada é absoluto, e chegará sempre uma hora mais fecunda, mais produtiva do que a hora precedente. Eis, em duas palavras, minha resposta à pergunta colocada por vosso presidente.” (Grifos nossos.)

Por esses textos tão atuais percebemos que o Espiritismo no Brasil entrou numa veia religiosa peculiar de seu povo e, por meio do sincronismo com isso, passou mais de um século perdido em uma falsa compreensão e desconhecimento por parte dos seus adeptos. Difícil, portanto, a situação do meio espírita do século XXI, em que congressos ditos espíritas seguem modelos pentecostais no anseio proselitista de divulgar uma mensagem evangélica sem quaisquer princípios espíritas, assim como permeada por apelos roustainguistas, concretizando uma fé cega disfarçada de fé raciocinada. Isto é tudo, menos Espiritismo!

Como resolver isso? Só existe um meio: resgatar o legado de Allan Kardec. E isso só será possível através da leitura e estudo das suas 32 obras. Essa é a única saída para evitarmos que, no Brasil, o Espiritismo (outrora com sua proposta universal do conhecimento humano através do conhecimento de si mesmo) não se torne o reducionismo de uma mensagem evangélica cristã, de coração do mundo e pátria do evangelho, distante do necessário diálogo com outras correntes de pensamento humano-espirituais.

 

Notas do Autor:

[1] Afirmação de Kardec em “A Gênese” Cap. I, item 55, nestes termos: “Caminhando de par com o progresso, o Espiritismo jamais será ultrapassado, porque, se novas descobertas lhe demonstrassem estar em erro acerca de um ponto qualquer, ele se modificaria nesse ponto. Se uma verdade nova se revelar, ele a aceitará”. O texto em questão é da edição recuperada (FEAL, 2018), diante das adulterações póstumas feitas por aqueles que assumiram o legado kardeciano. 

[2] Dissertação de Kardec, contida na “Revue Spirite”, de Fevereiro de 1865, em “Perguntas e Problemas” – “As obras-primas por via mediúnica”. Trad. Salvador Gentile. Edição do Instituto de Difusão Espírita, 1993.


Edição: Abril 2025

 

Editorial: Somente um ponto de partida: os livros resistem, por Manoel Fernandes Neto e Nelson Santos

Mediunidade Decolonial: por uma mediunidade autônoma e crítica, por Lindemberg Castro, Heloísa Canali, Fábio Diório, Ruth Barros, Raimundo Filho e Eduardo Silveira [1]

Para que estudamos e dialogamos sobre o Espiritismo?, por Dirce Carvalho Leite

O Pensamento de Kardec nos dias atuais, por Walter Pérez

O cerne da questão dos sofrimentos futuros, por Wilson Garcia

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Um singelo quadro na parede, por Marcelo Henrique

Imagem divulgação FEB dos romances históricos de Emmanuel. 

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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