A bispa e suas lições para a Humanidade, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 9 minutos

Marcelo Henrique

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Nós resolvemos, como a bispa anglicana, optar por apontar outras alternativas de caminhada. Estamos propondo o desarme consciencial, no sentido de não desperdiçarmos (tanto) tempo em embates inúteis, porquanto cada um segue na condição espiritual de responder conforme sua própria consciência. E seguir, cada qual, seu curso submetido à Lei do Progresso. Como nós.

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Prolegômenos.

Não sou religioso. Sou espírita, e não concebo qualquer ideia de religião, com todas as suas exigências e formalidades, ritos, rituais, sacramentos, mandamentos, “santos”, celebrantes, pastores, padres e quejandos.

Também não sou cristão. Reconheço a importância do homem Yeshua bar Yosef, Jesus de Nazaré, a quem carinhosamente chamo de “Magrão” há décadas. Distante do Cristo – um personagem da fé – e, por isso, um ser irreal, fantasioso, que representa a “encarnação” da Divindade Criadora do Universo (para os que nisso creem). E, em complemento, posso dizer que sou apaixonado pela figura humana de Jesus, que sempre enxergo como um irmão mais velho e sábio, com orientações seguras no curso da caminhada.

Mas, nem sendo religioso e, tampouco, cristão, me reservo a observar fatos e situações, de hoje ou de ontem, sem o viés da crença/religião, mas com o viés da religiosidade – a que conceituo como espiritualidade, porque simboliza a forma com que cada ser (Espírito) entra em sintonia consigo mesmo, com outros Espíritos e com a Fonte/Causa Primária (tenha esta a denominação que for, ad libitum do indivíduo).

E, também, não tenho qualquer dificuldade em dialogar com espíritas religiosos ou espíritas cristãos, aqueles que majoritariamente representam o pensamento dito espírita, no Brasil e em outras partes do planeta. Nem com pessoas de outros credos, com quem convivo em distintos ambientes. Porque acredito no livre pensar (espírita) e sigo aquilo que Kardec enunciou algumas vezes, ao tratar do entendimento acerca do Espiritismo, orientando que cada individualidade teria o seu “tempo de despertamento” e as informações espirituais seriam, pouco a pouco, pela própria ação da maturidade espiritual, melhor entendidas.

O Fato e a Contextura Espírita.

Recentemente um fato – noticiado à exaustão pelas mídias e, em especial “recheado” por comentários de diversificadas nuances nas redes sociais – me chamou a atenção de modo peculiar. E meu interesse derivou de uma passagem “religiosa” da Doutrina dos Espíritos, grafada no livro que tem o maior peso do Cristianismo entre as 32 obras que Kardec escreveu: “O evangelho segundo o Espiritismo” (1864).

O trecho em questão está inserido no Capítulo XVII da obra em tela (“Sede Perfeitos”), no item 3, que tem o título “O homem de bem”. O texto é de autoria de Kardec, interpretando o contido no evangelho de Mateus (5: 44-48), em que as recomendações – atribuídas ao homem Yeshua, em uma de suas célebres pregações aos seus seguidores – se dirigiam ao amor aos inimigos, ao fazer o bem aos que nos odeiam e orar (enviar pensamentos elevados) aos que nos perseguem e caluniam. Em outras palavras e também relembrando outra frase atribuída ao Magrão, seria “dar a outra face àquele que nos bateu em uma” (Mt; 5: 38-39). Ou seja, a primeira sugestão é um reforço da segunda, e as duas no mesmo sentido.

Passado tanto tempo e tendo sido, tais passagens, interpretadas “ao sabor” de diferentes religiões, sobressai a essência grandiosa, que endereça ao ser ao cultivo de (difíceis) virtudes e, com isso, na ação sincera e sistemática, adiantar-se na escala progressiva, na obediência estrita e na aplicabilidade da Lei do Progresso (“O livro dos Espíritos”, Terceira Parte, Capítulo VII, Itens 776 a 802). Assim sendo, TODOS os indivíduos podem esforçar-se por encampar em suas rotinas a prática daquelas ações ensinadas (e vivenciadas) pelo Magrão, em relação aos nossos desafetos ou inimigos.

Fatos e Fotos.

Neste janeiro de 2025, uma personagem “mais ou menos comum” do cotidiano – desconhecida da grande maioria dos habitantes deste orbe (de expiações e provas) – ganhou relevância midiática, conforme dito há pouco. Trata-se da Mariann Edgar Budde, da Diocese Episcopal de Washington, movimento religioso que possui maior aproximação com o Protestantismo, os Anglicanos.

Budde celebrou um culto dentro da programação oficial de posse de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos da América, no dia 21 de janeiro. A repercussão na forma de fotos e vídeos foi viral, em relação não ao “culto” em si, mas o que nele foi dito e, também, no pós-discurso, sobretudo em relação à manifestação do próprio governante e a réplica da religiosa.

Lembrando antiga revista brasileira, são muitos os “Fatos e Fotos”.

Vamos a eles.

O discurso [1].

É de conhecimento público que qualquer celebração religiosa cristã tem um momento que é considerado o ápice da celebração, quando o ministrante (padre, pastor, celebrante, orador ou expositor) se dirige aos “fiéis” (público presente) para dar um recado específico. Quase sempre, a “homilia”, “prédica” ou “palestra” busca associar preceitos dos evangelhos (cristãos) com situações do cotidiano, representando, assim, a tradução, para o contexto da atualidade, de um ou mais ensinamentos.

É, pois, um momento de destacada e relevante introspecção, com o exercício da intelectualidade para entender o “recado”.

Mariann Budde foi direta, enfática e até audaciosa. Não foi, nem um pouco, deselegante nem grosseira. Disse verdades. E valeu-se da retórica cristã para sensibilizar qualquer destinatário de sua prédica.

No discurso, a ênfase foi sobre temas de direito civil e política migratória. E pediu compaixão para pessoas da comunidade LGBTQIA+ e os imigrantes. 

Logicamente, por se tratar de programação constante da posse do novo mandatário americano, o conceito de nação (EUA) foi conotativamente associado à prédica de Jesus sobre a “casa edificada sobre uma rocha”. Exortou à “unidade que promova a comunidade em meio à diversidade e às divisões”, culminando em “uma unidade que sirva ao bem comum”.

E tal unidade não pode ser imposta nem derivada de insistências que minam as resistências e geram a estafa em quem luta pelas liberdades, nem qualquer vitória de uns obre os outros. E isto considerando, como ela salienta na prédica, os conflitantes “poder, riqueza e interesses”.

É no “cuidar uns dos outros, mesmo quando discordamos” a exata noção de respeito interpessoal, distante dos partidarismos políticos e ideológicos (lembrando o “amai os vossos inimigos”, também atribuída ao Sublime Carpinteiro, ainda que a discordância e a dialética sejam um traço e uma característica, entendemos nós, de seres que pensam por si mesmos.

Quando pessoas e coletivos entram em embates e disputas, é bem possível que não haja espaço para qualquer conciliação, respeito, alteridade e boa convivência, porque, para Budde, o sentimento do “desprezo alimenta campanhas políticas e redes sociais”, compondo uma verdadeira cultura “e muitos lucram com isso”.

Por fim, como desiderato para nós e os que virão após nós, não só na América do Norte como em todo o planeta – que se transforma, desde que foi criado, e todos os dias (ainda que nem sempre nos pareça que está progredindo de fato) – a fraternal (sem deixar de ser pungente) advertência da religiosa se dirige à honra à dignidade humana (espiritual), que “significa recusar zombar, desconsiderar ou demonizar aqueles com quem discordamos”, direcionando comportamentos ou atitudes ao ato de “debater respeitosamente nossas diferenças e, sempre que possível, buscar um terreno comum”.

A reação do personagem citado no discurso.

Na saída do templo, o presidente americano considerou que a religiosa não fez “um bom serviço”. E, depois, em sua rede social (“Truth Social”), ele escreveu: “A suposta bispa que discursou no Serviço Nacional de Oração na terça-feira de manhã era uma radical de esquerda que odeia Trump” e uma “hater”, e, ainda, destacou que “ela e sua igreja estão devendo um pedido de desculpas ao público”, conforme reportagem da BBC [2].

Trump, assim, segue em seu itinerário de “dono do mundo”, caracterizado com a íntima percepção do comportamento “nós contra eles”, situando-se na despótica posição de que não tem nada a temer (nem a perder). Seguem os poderes e honrarias humanos na retórica de (aparente) superioridade, como antigos monarcas de priscas eras, que se consideravam dotados de autorizações ou mandatos divinos. A história se repete. E não é por fraude…

Obviamente que Espíritos que são guindados a altos postos de mando, nas esferas pública ou privada, muitas das vezes não conseguem “lutar contra suas más inclinações”, dando azo aos sentimentos que materializam discursos e ações em que os vícios ou defeitos humano-espirituais são marcantes: orgulho, vaidade, cupidez, presunção, arrogância, prepotência, indiferença e ódio. 

A manifestação final da religiosa.

Mariann, após as manifestações do líder político americano, concedeu algumas entrevistas em que ressaltou que não deve qualquer pedido de desculpas, nem retratação, porque sua fala foi um pedido de misericórdia. E nada mais que isso. Destacou, outrossim, que não odeia o presidente e reza por ele.

Evidentemente, muitos especialistas em política enalteceram a coragem da clériga, em maiores proporções do que muitos congressistas americanos, que se calam diante de desmandos ou discursos que semeiam ódio e perseguições aos diferentes.

Enalteceu, por fim, que a discordância não é um problema humano-social, em face das diferenças de consciência entre os indivíduos, mas que isto deve ser feito, sempre, de forma respeitosa, sem recorrer à rudeza e violência dos discursos.

O que nós, espíritas, temos a ver com isso?

Alguns leitores podem estar se perguntando o que uma sucessão de fatos envolvendo a nação norte-americana, seu líder político e o discurso de uma religiosa anglicana na programação de posse do mandatário têm a ver com o cenário espírita.

Respondemos, de plano, que tudo o que diz respeito à ambiência planetária deve ser objeto de cuidadoso exame da parte dos espíritas, que não podem ficar exclusivamente retidos em herméticos nichos do pensamento humano. Como se os espíritas só devessem observar – e debater – os temas contidos na própria Doutrina dos Espíritos ou a ela diretamente associados, em termos de informações espirituais (ou mediúnicas).

Em segundo lugar, como já destacado na obra pioneira (“O livro dos Espíritos”) a ideia de pátria (ou nação) é uma circunstância meramente material, em face da naturalidade dos humanos, e que os afetos ao lugar de nascimento, ao povo e à cultura particular destes lugares, desaparece completamente, seja quando o Espírito (encarnado) avalia os elementos espirituais afetos à encarnação (e ao papel ou missão de cada um em mais uma existência físico-corporal), seja quando, desprovido da matéria, após a morte, ele não mais deve se ocupar das paixões terrenas, seguindo o seu curso na senda de Progresso.

Terceiro, as questões ético-legais de todos os países, das comunidades internacionais e da (assim podemos dizer) sociedade planetária devem ser alvo de estudo e profunda análise, inclusive no direcionamento das opiniões e condutas nos ambientes locais em que cada um de nós se acha inserido.

Os problemas sociais que fazem parte da realidade norte-americana se reproduzem em qualquer outro país – inclusive no Brasil – ambientando lutas, debates, embates e propostas de materialização de uma sociedade melhor, diante da Lei do Progresso, mais espiritualizada.

Entre outras questões – que não fazem, especificamente, parte deste artigo, mas que também ocupam a ordem do dia (internacional), com atos do governo Trump e sua repercussão em diversos países e mercados – devemos ressaltar as repetidas “bravatas”, ameaças e até ações estatais que caracterizam preconceitos vários, em especial a homo e a transfobia e a xenofobia e a aporofobia.

Não é “exagerado” dizer que o radicalismo ianque tem uma correspondência em solo brasileiro, manifesto em uma ideologia que comunga com os mesmos (pérfidos e hediondos) ideais que desqualificam o outro pelo que ele é, pela sua expressão do pensamento e por elementos relativos à sexualidade, à etnia, à origem (nascimento) e à condição socioeconômica.

Eis porque tais temáticas – e a circunstância local americana aqui tratada – seguem como preocupação de todo “verdadeiro espírita” ou “homem de bem”, como grafado na teoria kardeciana. 

As lições da Bispa e nós.

As questões afetas ao posicionamento da religiosa em relação ao presidente norte-americano devem ser, também em termos de posicionamento político-social dos espíritas em geral, objeto de análise.

Afinal de contas, via de regra, o discurso de apolitismo e de distanciamento de questões político-sociais se instaurou de tal maneira no meio espírita, que a ambiência reflete uma apatia generalizada, uma desesperança diante do que seja possível edificar em termos de materialidade (existência humana no planeta) e uma dependência do “Alto”, na forma seja de “orientações egressas de Espíritos em páginas mediúnicas” ou a “encarnação” de Espíritos “luzeiros”, tão declamada e esperada pelos espíritas – mas nunca concretizada, porquanto seja, a atividade diuturna da vida na Terra, obra nossa, sem qualquer terceirização (de responsabilidades).

Para os que torcem o nariz quando pautas como as levantadas por Mariann Edgar Budde, em Washington, são presentes na realidade brasileira – e alcançam os espíritas porque estes são cidadãos, participam de outros grupos sociais e convivem, nas instituições e grupos espíritas, com pessoas da mais ampla categorização em termos de elementos sócio-materiais – parecem não ter entendido a real proposta do Espiritismo para os terrenos.

Edificar um mundo melhor, uma sociedade transformada (ou como gostam de dizer “regenerada”), materializar o “Reino” apregoado pelo Magrão, neste planeta azul não é uma tarefa reservada a poucos, a eleitos, ou a espiritualmente missionários. É de todos. É do hoje, é de sempre – e sempre quer dizer todos os dias.

Mesmo adotando uma configuração padrão e majoritária de “religião” (ainda que os espíritas neguem, até o fim, os elementos que caracterizam uma seita ou igreja), vemos muito pouco de alcance social à tarefa dos espíritas. Seja em discursos, seja em atitudes. Falar para os seus, em ambientes circunscritos – como se as plateias espíritas simbolizassem o “povo de Deus”, os “escolhidos”, os “despertos”, ou aqueles que são donatários da (única expressão, ou a mais verdadeira) da “Terceira Revelação de Deus” para a Humanidade – tem se revelado inócuo, infértil, inexpressivo e impossível de acelerar o Progresso.

Diante, então, de tantas mazelas sociais, de tantas iniquidades derivadas da mais absoluta incapacidade de entender – e, MAIS, respeitar – o outro, o que fazer? E, ainda, quando também o discurso espírita é servil para delimitar espaços e estabelecer diferenças inconciliáveis entre os que pensam o (e sobre o) Espiritismo, quando mais, conviver com aqueles que expressam valores sócio-econômico-políticos que derivam de raciocínios e ideologias diferentes daquela manifesta pelo segmento majoritário dos espíritas, qual o nosso papel?

Continuaremos a nos digladiar, afirmando, seja em matéria política, seja em conformação religiosa, que somos “nós contra eles”, ou, “nós sabemos e eles não”, em (eternas) disputas entre o poder de falar e de ser ouvido, ou poderemos pensar na possibilidade de recuos estratégicos para utilizar o conhecimento espírita e a eloquência – como fez a bispa – para primeiro apontar outras alternativas de caminhada e, depois, como fez o próprio Magrão, voltar para recolher as ovelhas que se perderam no trajeto?

Nós resolvemos, como a bispa anglicana, optar pela primeira das ações acima. Estamos propondo o desarme consciencial, no sentido de não desperdiçarmos (tanto) tempo em embates inúteis, porquanto cada um segue na condição espiritual de responder conforme sua própria consciência. E seguir, cada qual, seu curso submetido à Lei do Progresso. Como nós.

De nossa parte, este Portal seguirá sendo o espaço para DENUNCIAR – ainda que a linguagem seja, obviamente, fraterna e acolhedora, como foi o discurso de Mariann Edgar Budde, sem ofensas ou vinditas, sem achaques nem fakenews – aquilo que na Terra do Cruzeiro (Brasil) ou em qualquer parte do planeta esteja em desacordo com o que prescrevem as Leis Universais (na tradução da Terceira Parte, de “O livro dos Espíritos”) e, mais especificamente, no segmento dito espírita, conclamar aqueles que estão descontentes com as atuais posturas do “meio espírita”, que possamos, alternativamente, propor e construir – como estamos construindo – uma alternativa àqueles que queiram seguir de modo diferente.

Sigamos…

Notas do Autor:

[1] O discurso, na íntegra, transcrito e traduzido para o português está disponível em <https://www.poder360.com.br/poder-internacional/leia-o-discurso-critico-que-a-bispa-de-washington-fez-a-trump/>. Acesso em 22. Jan. 2025.

[2] A reportagem está disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/articles/cy8pdqnn1eno>. Acesso em 22. Jan. 2025.

 

Imagem by NASA/Paul Alers por Wikipédia, – NASA Flickr account, Public Domain, Link

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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