A descriminalização do aborto ante a lei dos homens e as leis naturais, por Leopoldina Xavier

Tempo de leitura: 6 minutos

Por Leopoldina Xavier

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“Não existe nenhum pecado que a misericórdia de Deus não possa alcançar”, Papa Francisco, em 01.08.2015, ao autorizar a Igreja Católica a perdoar as mulheres que abortaram.

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O aborto não tem uma única linha de seguimento na sua delimitação, porque várias são as suas conceituações, quer na ciência, quer na filosofia, quer na religião. Isto deve nos fazer refletir – e muito – sobre a circunstância da sua criminalização numa sociedade civilizatória.

Na filosofia, Platão em seu livro “A República” defendeu a interrupção do aborto para mulheres com mais de 40 anos. Aristóteles, por sua vez, afirmava que o feto tinha vida e estabeleceu que, até o 40º dia para o sexo masculino e 90º, se feminino, poderia se praticar o aborto. Na Grécia antiga, recordemos, Hipócrates ensinava as parteiras a realizarem o aborto.

Em Roma, Seneca apontou a tolerância do aborto e não o condenou, devendo lembrar ser ele um estoico e que o estoicismo influenciou sobremaneira a Igreja Católica.

Entre os cristãos-católicos, Santo Agostinho admitiu a linha Aristotélica para o aborto, ou seja, só a partir da 40ª semana pode-se falar em pessoa. Santo Tomás de Aquino acompanha o pensamento e que só a partir da 40ª semana a alma racional surge.

Na religião, portanto, a Igreja Católica nunca teve um pensamento linear; sua posição é mais comandada por decisões políticas do que pela teologia em si, tanto é que o aborto só virou doutrina condenatória no Concílio Vaticano I (1869), sob a orientação do Papa Pio IX, apresentando, pela vez primeira o conceito de que a vida começa na concepção.

E por que a Igreja assim definiu? Justamente por uma decisão política, tomada sob a influência direta de Napoleão que sabia naquele momento histórico da dependência da Igreja Católica e da necessidade dela ser por ele protegida (vide conflito de posse Itália/França). Neste ponto vale a pena lembrar, para nós espíritas, o momento histórico na França, ocasião em que Kardec tem um esbanjamento de produção literária, com a Codificação Espírita.

A Igreja Católica no Século XX passou a admitir o aborto indireto (aquele em que determinada patologia com risco de morte, como no caso de uma gravidez tubária ou de câncer no útero, por exemplo, quando o tratamento médico acaba levando à morte fetal), mas rechaça o aborto em caso de estupro.

Devemos recordar que o protestantismo de Lutero, em paralelo, foi quem tornou possível a legalização do aborto nos países escandinavos.

No Brasil do período colonial e sob a influência de Portugal e da Igreja Católica, o aborto só era criminalizado para o terceiro que o praticava; no Código Penal da República o aborto era crime grave, a pena era atenuada quando praticado pela própria gestante para ocultar sua honra, mas grave para terceiro que o praticasse e resultasse em morte da paciente. Depois, na vigência do Código Penal de 1940, foi declarado o aborto como crime contra a vida, com hipóteses de exceção a gravidez decorrente do estupro, a do risco de morte da mulher (aborto terapêutico), e, mais recentemente, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), no caso de fetos anencéfalos.

Atualmente, o STF está analisando o aborto (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF 442), para que seja descriminalizado o mesmo até a 12ª semana de gestação [1]. No seio dos debates, o Ministério da Saúde, em sua primeira participação da audiência pública para debater a questão no próprio Tribunal, forneceu os seguintes dados: 1) que é de cerca de 1 milhão de abortos induzidos; que independe de classe social; 2) que o que depende da classe social é a gravidade e a morte; 3) quem mais morre por aborto no Brasil são mulheres negras, jovens, solteiras e com até o Ensino Fundamental; 4) que os procedimentos inseguros de interrupção voluntária da gravidez levam à hospitalização de mais de 250 mil mulheres por ano, cerca de 15 mil complicações e 5 mil internações de muita gravidade; 5) que o aborto inseguro causou a morte de 203 mulheres em 2016, o que representa uma morte a cada 2 dias.

Os mencionados dados do aborto inseguro no Brasil são crescentes, ano após ano e levam a uma realidade incrivelmente cruel. Analisando este cenário com o olhar espírita temos, a partir da questão 330, de “O livro dos Espíritos”, o trato do chamado “planejamento encarnatório”.

Já na questão 344, do mesmo livro, diz-se que toda vez que se transgride a Lei de Deus há crime, quando as Inteligências Invisíveis respondem a Kardec acerca do aborto. Então, a interpretação usual desta questão, leva a uma “conclusão”: o aborto é crime pelo fato de se estar impedindo uma alma de suportar as provas/expiações pelas quais o seu corpo serviria de instrumento.

Como fica, então, as situações do aborto indireto e a do aborto terapêutico, vistos acima, quando para preservar a saúde da mãe, o Espírito pode esperar? Não é possível a ela responder com o lacônico “Deus dá a vida e ele pode tirar”, certo? A pergunta que se faz, em decorrência desta situação, é: como estabelecer um equilíbrio entre o planejamento encarnatório e o planejamento familiar?

Kardec sempre foi muito firme em defender a melhora do homem por meio da educação, acreditando na formação de seres inteiros (integrais), não permitindo a manipulação social com ideias pré-concebidas ou dogmas. A esse respeito, o Professor francês perguntou aos Espíritos se Deus se ocuparia pessoalmente de cada homem, em seus mínimos atos e atitudes. A resposta foi apresentada no sentido que todas as nossas ações estão submetidas às Leis de Deus, ou seja, uma espécie de aplicação automática pelas próprias leis, em mecanismos de aplicabilidade que ainda não conhecemos, face à nossa (ainda) condição primitiva de entendimento espiritual.

Mas é da lavra de Kardec, em preciso comentário ao item 964, de “O livro dos Espíritos”, que encontramos uma delimitação precisa da dinâmica das Leis Divinas: “não há nenhuma delas [nossas ações], por mais insignificante nos pareça, que não possa ser uma violação dessas leis. Se sofrermos as consequências dessa violação, não nos devemos queixar de nós mesmos, que nos fazemos assim os artífices da nossa felicidade ou de nossa infelicidade futura” (grifamos).

Assim, Deus logicamente conhece as limitações, os impulsos, as provas e expiações a que cada Espírito deve passar, bem como nos oferece como guia a consciência que contém a responsabilidade de nossos atos. Quanto à nossa condição particular de existência, incluindo todas as nossas necessidades, tanto as Inteligências Invisíveis quanto Kardec afirmam que cabe à razão de cada um distinguir as condições e as necessidades (item 635, da obra primeira).

Dessa forma cabe a indagação: o julgamento do ato de aborto pode se submeter a Lei dos Homens, fechando os olhos à compreensão das Leis Naturais, bem como do processo de progresso encarnatório a que cada Espírito se submete e de acordo com sua liberdade de consciência?

Léon Denis (2011, p. 383) ao tratar do livre arbítrio, ponderou:

“O problema do livre-arbítrio tem, dizíamos, uma grande importância, sob o ponto de vista jurídico. Mesmo levando em consideração o direito de repressão e de preservação social, é muito difícil precisar, em todos os casos que dependem dos tribunais, a extensão das responsabilidades individuais. Só seria possível fazê-lo estabelecendo o grau de evolução dos culpados. Para tal, o neoespiritualismo talvez nos fornecesse os meios. Mas, a justiça humana, pouco versada nestas matérias, mantém-se cega e imperfeita em suas decisões e seus julgamentos” [2].

Ao colocar o aborto como crime, abandonamos a história sobre o aborto, a evolução da ciência com seus métodos contraceptivos, a pílula do dia seguinte que mata o embrião já concebido e os conceitos de saúde pública e social. E, no campo do Espiritismo abandonamos o caráter do adiantamento do Espírito pela educação, pelo progresso permanente e a lei reencarnatória da liberdade e responsabilidade dos atos, para cairmos na filosofia determinista de uma única existência corpórea. Ou seja, caímos exclusivamente na lei punitiva dos Homens para que julgue no hoje e agora, de forma singular e sem compromisso com a lei progressiva ético-moral, adotando a moral do lava-mãos de César.

Assim, é de se perguntar: Qual o progresso espiritual que uma mulher encarcerada pelo aborto pode obter? Não seria melhor a mulher que pratica(ou) o aborto ser o agente de si mesma na compreensão e responsabilidade perante e lei reeencarnatória de seu progresso interior?

Por outro lado, a lei da indulgência, do amor ao próximo, também prefere uma mulher livre para o exercício das suas provas e expiações, ao invés de vê-la encarcerada, porquanto a sentença condenatória vai suprimi-la da vivência social e lhe limita justamente o aprimoramento espiritual.

Perguntemo-nos, ainda: As mulheres que praticam o aborto em face da postura espírita tradicional que é pela criminalização da mulher, não preferem esconder o fato do que expô-lo e encontrar o apoio fraterno para sua educação e progresso espiritual? Não são julgadas até pelo pensamento? Que consolo é esse?

A abordagem acerca da criminalização/descriminalização do aborto por parte dos espíritas deveria ter uma abordagem mais humana e social, não podendo ser reduzida à mera punição. A carceragem, como afirmou Leon Denis no texto sublinhado, ser condenada a uma pena o mais das vezes cega e imperfeita, porquanto injusta!

Referências:

DENIS, L. O Problema do Ser e do Destino: (os testemunhos, os fatos, as leis): estudos experimentais sobre os aspectos ignorados do ser humano; as personalidades duplas; a consciência profunda; a renovação da memória; as vidas anteriores e sucessivas, etc. Trad. Homero Dias de Carvalho. Rio de Janeiro: CELD, 2011.

KARDEC, A. O livro dos Espíritos. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE, 2004.

Nota do ECK:

[1] O processo em tela pode ser visualizado e analisado, em termos de peças processuais e tramitação no endereço: <https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5144865>. Acesso em 18. Fev. 2025.

Imagem de Simp1e123 por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “A descriminalização do aborto ante a lei dos homens e as leis naturais, por Leopoldina Xavier

  1. Muito bem contextualizado. O livre arbítrio deve ser o único a ser considerado. Nenhuma mulher pratica aborto sem uma razão forte.O corpo é dela e não deve ser julgada pelos outros e muito menos criminalizada pela justiça dos homens. Parabéns amiga.

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