Marco Milani
O crescimento do uso de ferramentas de inteligência artificial (IA), como o ChatGPT, trouxe à tona uma série de debates éticos e filosóficos sobre o papel dessas tecnologias na sociedade. Entre essas discussões, destaca-se uma preocupação relevante no campo do Espiritismo: a possibilidade de se tentar transformar tais ferramentas em “oráculos modernos”, capazes de substituir os ensinos dos Espíritos sistematizados por Allan Kardec. Essa intenção, embora compreensível frente à rapidez e eficiência dessas tecnologias, apresenta graves implicações e desafios que merecem análise crítica.
A Doutrina Espírita é fruto de uma investigação criteriosa conduzida por Kardec, com base em comunicações mediúnicas cujas informações foram validadas pelo método do Controle Universal. Esse conhecimento não é fruto de opiniões pessoais, mas sim de um ensino coletivo que trata da natureza, origem e destino dos Espíritos, bem como de suas relações com o mundo corporal. O caráter experimental e a lógica que permeiam os princípios espíritas refletem o cuidado de Kardec em evitar que influências subjetivas ou interpretações enviesadas desvirtuassem o conteúdo recebido.
As ferramentas de inteligência artificial, por outro lado, baseiam-se em dados coletados de fontes do mundo material, acumulando e processando informações disponíveis na internet e em outros repositórios de conhecimento. Embora impressionantes em sua capacidade de resposta e emulando, por vezes, um tom “neutro” ou “onisciente”, esses sistemas são incapazes de alcançar o discernimento moral que caracteriza as mensagens dos Espíritos. A IA não possui consciência, intuição ou capacidade de acessar dimensões transcendentais; seu alcance está restrito ao plano físico e técnico, refletindo os preconceitos, limitações e lacunas das informações com as quais foi treinada.
A tentativa de usar a IA para rever e aperfeiçoar o ensino espírita, portanto, esbarra na limitação natural da fonte e do método. A linguagem precisa e objetiva de ferramentas como o ChatGPT pode dar uma falsa impressão de autoridade, fazendo com que indivíduos não familiarizados com as próprias limitações tecnológicas e, principalmente, imaturos quanto aos princípios e conceitos doutrinários, aceitem prontamente as respostas geradas por IA como novas verdades. Isso contraria a fé raciocinada, a qual convida à análise e ao estudo aprofundado com a prudência necessária. Kardec sempre incentivou o questionamento e a busca pela verdade, alertando contra a inconveniência da aceitação cega, mesmo diante de mensagens mediúnicas assinadas por Espíritos conhecidos.
Outra situação associada a essa prática é o enfraquecimento do papel da mediunidade como meio pelo qual a humanidade pode estabelecer comunicação direta com o mundo invisível, possibilitando a continuidade do aprendizado e da interação com os Espíritos. Quando se tenta substituir essa conexão viva e dinâmica por uma tecnologia artificial, há um afastamento do aspecto experimental mediúnico. A IA, certamente, pode auxiliar no estudo e na organização de informações, mas não pode replicar a profundidade da experiência espiritual que a mediunidade proporciona.
Além disso, a transformação do uso da IA em oráculo moderno contraria a proposta de autonomia racional promovida pelo Espiritismo. Kardec não buscou criar seguidores passivos, mas indivíduos conscientes de sua responsabilidade moral e de seu papel no progresso coletivo. Delegar o discernimento sobre a realidade espiritual a uma máquina programada por homens encarnados desvirtua a própria fonte e incentiva uma subordinação tecnológica.
É essencial reconhecer que a tecnologia desempenha um papel relevante e positivo no apoio ao estudo do Espiritismo, desde que utilizada com discernimento. Ferramentas de IA facilitam o acesso a obras espíritas, organizam estudos e podem responder dúvidas comuns, mas são apenas instrumentos e não substitutos do conhecimento doutrinário. Cabe aos espíritas acompanharem e usarem com o bom senso que Kardec tanto prezava as potencialidades dessas ferramentas.
Assim, o desafio não está em incentivar a tecnologia, mas em saber utilizá-la de maneira responsável como poderosa aliada, sem deslumbramento.
Texto publicado na Revista Candeia Espírita, nº 41, fev/2025, p. 9-10
Imagem de Shelley Evans por Pixabay