Lawrence Sklar (1)
É precisamente a ideia que temos do que é compreender esse mundo, compreender o seu funcionamento e fornecer explicações do que nele acontece, que dependerá, em si mesma, da própria natureza desse mundo. Logo, tanto nas suas tarefas epistemológicas como nas metodológicas a filosofia terá de recorrer continuamente ao que as ciências avançadas, incluindo a física fundamental, nos dizem acerca do mundo.
A física e a filosofia são duas formas profundamente interdependentes de procurar compreender o mundo e o nosso lugar como agentes de conhecimento do mundo.
Tradicionalmente, a filosofia tentou descrever a natureza do mundo nos termos mais gerais. Renunciando à descrição e classificação minuciosas dos múltiplos fenômenos da natureza, deixando isso como tarefa para as ciências particulares, a filosofia preocupou-se com a natureza do ser nos níveis mais abstratos. Será que só existem particulares, ou teremos de postular que os universais, as propriedades, têm existência própria? Será que a substância do mundo se esgota no ser material, ou teremos de tolerar também um qualquer domínio de existência não-material para acomodar os fenômenos da mente? Estes são os tipos de perguntas que se espera que os filósofos respondam.
A filosofia tomou também como seu o domínio do exame crítico das ciências específicas. Apesar de a ciência inferir o inobservado e a natureza do futuro a partir dos limitados dados disponibilizados pelas nossas observações até ao presente, a filosofia preocupa-se com a justificação do raciocínio indutivo que permite tal projeção do alegado conhecimento para lá do domínio do observado. A ciência coleciona os resultados das observações, resultados formulados nos termos derivados, em última análise, da linguagem da experiência quotidiana. Explica depois estes resultados por referência a um domínio de entidades teóricas inobservadas e suas propriedades. A filosofia, ao invés, questiona a legitimidade de tal extrapolação do domínio do observável para o do inobservável. Como poderemos justificar ou dar uma base racional a tais inferências? Mais profundamente ainda: como podem conceitos que propõem referir-se ao inobservável chegar mesmo a ter sentido para nós, dado o papel que a associação entre o conceito e a experiência alegadamente desempenha na fundamentação do significado?
A filosofia da ciência é muitas vezes caracterizada dizendo que reserva para si temas do domínio da metodologia. Ao passo que a acumulação efetiva de resultados da observação e a sua assimilação por parte de teorias explicativas gerais constituem as tarefas do cientista na sua disciplina particular, é ao filósofo da ciência que compete explorar os métodos que a ciência emprega para cumprir a sua tarefa. Como se formulam, testam, aceitam e rejeitam as teorias em ciência? Qual é o papel desempenhado pela confrontação com os dados? Que papel desempenham elementos como a simplicidade ontológica ou a elegância formal no processo contínuo de construção e seleção de teorias? Quais são os meios que o cientista usa para oferecer uma compreensão do mundo com base em observações e teorizações? Como formula o cientista as explicações? Quais são os recursos por detrás dos esquemas explicativos e de que modo a existência de uma explicação científica nos dá uma compreensão complementar da natureza do mundo? Mas, como vimos, a necessidade de teorias revolucionárias na física que lidem com os fenômenos da natureza aos mais altos níveis de generalidade e profundidade forçou os próprios cientistas a confrontarem-se com questões precisamente do tipo das que tradicionalmente têm estado reservadas aos filósofos.
Quando lidamos com as questões mais fundamentais a respeito do espaço e do tempo e ao seu lugar na natureza, vêm a lume questões sobre o tipo de ser que pode existir e que pode ser invocado nas nossas explicações. Isto já era óbvio no século XVII quando pensadores do calibre de Newton e Leibniz lutaram com as questões metafísicas que pareciam inseparáveis das suas perspectivas sobre a natureza do espaço e do tempo. Agora que as revoluções nas nossas perspectivas do espaço e do tempo nos são impostas pelas teorias da relatividade restrita e geral, reaparecem estes velhos temas sobre o carácter substancial do espaço e do tempo. Mais profundamente ainda, como vimos, pensadores como Bohr, debatendo-se com os estranhos fenômenos a que a mecânica quântica tem de fazer justiça, perceberam ser necessário lidar com questões relativas à própria objetividade do mundo enquanto entidade alegadamente independente das ações empreendidas por quem procura conhecer a sua natureza. Os velhos temas filosóficos da autonomia do mundo relativamente à apreensão sensível e intelectual que dele temos — questões sobre as quais Kant, por exemplo, meditou profundamente – tornam-se parte de uma tentativa para compreender o formalismo da teoria concebida para dar conta dos estranhos fatos relativos à interação entre matéria e radiação com os quais a mecânica quântica tem de lidar.
Vimos também que a abordagem crítica e epistemológica da filosofia teve um papel a desempenhar nos fundamentos de algumas destas teorias da física contemporânea. Apesar de o espaço-tempo revolucionário das teorias da relatividade restrita e geral ter nascido em parte da necessidade de novas perspectivas do espaço e do tempo que fizessem justiça aos fatos experimentais recentemente descobertos sobre o comportamento da luz, o movimento das partículas e os resultados de medições relacionadas com réguas e relógios, o exame crítico de conceitos do ponto de vista epistémico desempenhou igualmente um papel importante na formulação destas teorias. Este programa crítico é sobretudo evidente no trabalho de Einstein, que repetidamente faz avançar a discussão teórica pedindo-nos para refletir sobre o significado dos nossos termos básicos relacionados com o espaço e o tempo. Einstein convida-nos a considerar o modo como estes termos funcionam nas nossas teorias, sublinhando sobretudo a medida em que as teorias por nós postuladas se fundamentam em fatos do mundo que nos sejam genuinamente acessíveis do ponto de vista epistémico. Usando um exame crítico de termos e hipóteses que depende de uma exploração dos limites da nossa consciência epistêmica do mundo, Einstein dá nova energia às teorias da física disponíveis para lidar com a estrutura espacial e temporal do mundo. Numa tentativa para resolver as características aparentemente paradoxais do mundo que a mecânica quântica nos descreve, encontramos uma vez mais pensadores como Bohr e Heisenberg tentando convencer-nos de que uma compreensão correta da teoria, assim como do mundo que ela descreve, exige que recuemos e reflitamos sobre a nossa capacidade de conhecer o mundo. Esta é uma reflexão do ponto de vista crítico-epistemológico.
Podemos considerar a forma como a mecânica estatística indica a existência de modos de explicar os fenômenos que parecem exigir modelos de explicação estatística de uma originalidade surpreendente como um exemplo de como os resultados da física exigem que repensemos questões metodológicas. O papel desempenhado pelas probabilidades na mecânica estatística; o fundamento para as atribuir a microestados de tipos particulares de sistemas; o papel por elas desempenhado para dar conta dos fenômenos macroscópicos com que a termodinâmica lida; e a relação entre estas probabilidades e as consequências de tipo estatístico derivadas das leis da dinâmica subjacentes – tudo isto indica que um repensar destas matérias está na ordem do dia. Temos de pensar profundamente na relação entre as condições iniciais e as leis, assim como no papel desempenhado por ambas na explicação da razão pela qual acontece o que acontece no mundo. Vimos também como as consequências da mecânica quântica – como as demonstrações de impossibilidade da existência de variáveis ocultas locais – sugerem que a ciência nos obrigou a adoptar uma nova atitude em relação ao que constitui uma explicação completa das correlações descobertas entre fenómenos quando estes não estão em interação causal no momento em que ocorrem. Efetivamente, a própria natureza da causalidade e de como a devemos procurar e invocar na ciência surgem de maneira diferente no contexto quântico.
Não podemos, pois, ter a esperança de fazer filosofia independentemente dos resultados da física. Que isto é verdade no caso da metafísica – a investigação da natureza do mundo ao nível da maior generalidade – parece óbvio. É evidente que a nossa compreensão dos tipos fundamentais de coisas e propriedades que temos de postular para percebermos a natureza do mundo tem de ter em linha de conta aquilo que a ciência nos diz sobre o mundo. Vezes e vezes sem conta a filosofia que procura raciocinar a priori, sem confiar nos dados da observação e da experiência, e chegar a conclusões sobre como o mundo tem de ser se viu em situações embaraçosas provocadas pelas revelações da ciência. Isto mostrou-nos que os filósofos aprioristas tiveram uma imaginação muito limitada quando tentaram delimitar o domínio de possibilidades no que respeita à natureza do mundo. Sem os resultados da física, que filósofo teria considerado as inúmeras possibilidades no que respeita à natureza do espaço e do tempo, da causalidade e dos tipos de objetividade e da sua ausência que as novas teorias radicais da física postularam como possibilidades a ter em consideração?
Mas não é só a metafísica que tem de prestar atenção aos resultados da ciência. Muitos filósofos da teoria do conhecimento têm vindo a defender ultimamente que a esperança de alcançar uma teoria racionalmente justificada e formulada em termos apriorísticos sobre a inferência que conduz à verdade é também uma proposta duvidosa. Ao decidir que regras é razoável usar para procurar a verdade, defenderam esses filósofos, temos de nos apoiar nas nossas melhores e mais perspicazes ideias sobre a natureza do mundo, cujas verdades estamos a tentar descobrir por meio da investigação persistente. Mas, sendo assim, temos certamente de ter em consideração aquelas teorias das ciências – quer se trate da física fundamental ou da neuropsicologia e das ciências cognitivas da percepção e do pensamento – que nos dizem o que sabemos acerca da natureza do mundo que estamos a tentar descobrir e acerca da relação que temos com o mundo como agentes de percepção e criadores de teorias. Como vimos, é precisamente a ideia que temos do que é compreender esse mundo, compreender o seu funcionamento e fornecer explicações do que nele acontece, que dependerá, em si mesma, da própria natureza desse mundo. Logo, tanto nas suas tarefas epistemológicas como nas metodológicas, a filosofia terá de recorrer continuamente ao que as ciências avançadas, incluindo a física fundamental, nos dizem acerca do mundo.
É importante notar que a filosofia não se limita a depender das ciências unicamente como fontes de dados brutos. Sem dúvida que os resultados da observação que empurram a física para a invenção das teorias novas e radicais que temos estado a avaliar têm um impacto crucial sobre a filosofia. Mas o que fornece à filosofia um espectro ainda mais rico de novas formas conceptuais de lidar com o mundo é também a capacidade, por parte dos que fazem aquelas ciências, para imaginar novos esquemas conceptuais que dão conta dos novos dados. É a imaginação de cientistas como Boltzmann, Einstein e Bohr que é a fonte de formas completamente novas de pensar acerca da natureza da realidade, do conhecimento que temos dela e da nossa capacidade para dar uma explicação dela. É essa imaginação que fornece uma fonte sempre fértil de enriquecimento para o filósofo que procura novas maneiras de lidar com problemas, tanto novos como velhos, apresentados pelo mundo da experiência.
Mas se a filosofia tem de prestar muita atenção aos resultados da física fundamental, é claro que esta última também depende da filosofia. À medida que explorámos as raízes das teorias fundamentais que constituem o núcleo da física moderna observámos, vezes e vezes sem conta, que a formulação destas teorias não é uma extrapolação trivial por meio de raciocínios óbvios a partir dos dados da observação. Ao invés, a formulação de uma teoria apropriada e a justificação racional fornecida para essa escolha, quando se adota e defende uma determinada postura teórica contra as suas críticas, dependem dos tipos de raciocínio que os filósofos exploraram e em que meditaram profundamente. Isto pode ver-se claramente, por exemplo, nas justificações racionais por detrás das teorias da relatividade restrita e geral oferecidas por Einstein e nas tentativas levadas a cabo por Bohr para fornecer uma compreensão coerente do formalismo da mecânica quântica. Nestes casos, questões filosóficas como a distinção entre as consequências de uma teoria susceptíveis de serem testadas por meio da observação e as que são imunes a tal confrontação; o papel do exame crítico dos significados dos conceitos não observacionais das teorias; a justificação dos princípios que presidem à escolha de teorias, como o da simplicidade ontológica; a questão de saber se as generalizações são adequadas para fornecer explicações genuínas dos fenômenos; e a questão de saber quando podemos considerar que estamos perante uma explicação última – todas estas questões desempenham um papel crucial no interior da dialética científica que conduz à formulação e aceitação de teorias. É como se as questões tradicionalmente encaradas como filosóficas tivessem de se tornar parte do próprio pensamento científico quando as teorias científicas em questão tiverem uma generalidade e um caráter fundamental tão acentuados quanto as que discutimos.
Já houve uma altura em que os físicos teóricos recebiam habitualmente alguma formação em filosofia e na sua história. Nessa altura podíamos encontrar, nas obras de alguns dos maiores cientistas, referências explícitas ao tipo de raciocínio filosófico em que se apoia o raciocínio científico. Einstein e Bohr constituem dois exemplos dignos de nota. Apesar de a especialização da formação académica nas últimas décadas ter tornado tal familiaridade com a filosofia tradicional menos comum entre os cientistas – mesmo entre os mais teóricos –, tornou-se agora claro que é necessário o tipo de pensamento filosófico, enquanto parte do pensamento científico, que discutimos. Isto é verdade quer o cientista queira enfrentar este fato quer não. Pode ver-se uma prova a favor disto no tipo de pensamento parafilosófico que se tornou parte da especulação e teorização cosmológicas sobre o Big Bang na cosmologia científica.
O fato de as próprias teorias científicas se basearem num pensamento de tipo filosófico – quer isto seja explícito na história da ciência quer seja apenas implícito e esteja à espera que o historiador e o filósofo o tragam à luz – significa também que temos de ter cuidado com tentativas demasiado ingênuas para resolver questões filosóficas tradicionais por meio dos resultados da ciência. Os argumentos que visam estabelecer que um dado resultado da ciência resolve conclusivamente uma questão filosófica tradicional numa ou noutra direção perdem de vista muito frequentemente o modo como os pressupostos filosóficos implícitos foram integrados na teoria que está a ser usada para resolver o debate. Caso se tivessem feito outras escolhas filosóficas na própria ciência, as implicações que a ciência teria na filosofia poderiam parecer muitíssimo diferentes.
Em qualquer caso, é muito claro que, ao nível da sua maior generalidade e das suas tentativas para lidar com a natureza ao nível mais fundamental, a ciência não é uma disciplina cuja natureza se possa distinguir radicalmente da filosofia. E a melhor maneira de fazer filosofia é usar um método cuja teorização, como na ciência, se confronte sempre com a natureza das coisas tal como esta nos é revelada por essa experiência subtil a que chamamos “observação e experimentação científicas”.
Nota do ECK:
(1) Artigo originalmente publicado em inglês, incluso em “Filosofia da Física”, de 2001, traduzido por Desidério Murcho.
Acesse cada texto:
A interdependência entre filosofia e ciência, por Lawrence Sklar
Ciência, Filosofia e Religião?, por Carlos de Brito Imbassahy
A confusão entre a Filosofia de Jesus e o Cristianismo, por Nícia Cunha
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