Por Pedro Camilo de Figueirêdo
Meses atrás, fui convidado por um grupo espírita do Brasil para fazer uma palestra on-line sobre o tema deste texto, “A obsessão nossa de cada dia”.
Dentre as abordagens possíveis para o tema, decidi fazer uma busca em textos escritos pelo Irmão X através de Francisco Cândido Xavier. Crônicas, contos, cartas, apólogos e outros escritos do Irmão X são sempre muto bem-vindos para tratarmos de temas do cotidiano, pois falam de perto às nossas necessidades mais caras.
Dentre os dois textos escolhidos para tratar do assunto, “O guia”, do livro Estante da vida, chamou-me atenção de forma peculiar. A obra foi publicada em 1969 e, naturalmente, retrata a sociedade da época, com seus costumes e arranjos.
Nele, Irmão X narra as “aventuras” de um dia de estágio seu ao lado de um espírito que, na nomenclatura kardequiana, podemos identificar como espírito familiar, aquele que nos acompanha de perto nas lides do dia a dia, auxiliando-nos o quanto possível nas tarefas que nos competem.
Aurelino Piva era responsável por cuidar de d. Sinésia, uma senhora de classe média que era casada, tinha dois filhos e contava com uma “secretária do lar” para auxiliá-la nas tarefas domésticas. Desde as 4h manhã, quando se desdobra para amenizar os efeitos dos excessos alimentares da noite anterior; passando pelos cuidados para que as crianças não brigassem tanto entre si; alcançando zelos com as condições de saúde do esposo; e atravessando todas as atenções dispensadas durante um dia inteiro de cuidados – surpreendemos o espírito Aurelino Piva a desdobrar-se para que d. Sinésia permanecesse “tão hígida quanto possível”, pois, conforme suas palavras, “Um dia tranquilo no corpo físico é uma bênção que devemos enriquecer de harmonia e esperança”.
Nada obstante todos os esforços de Aurelino ante os obstáculos do dia, notamos d. Sinésia assumir atitudes bastante “familiares” a todos nós: excesso no comer e na ingestão alcoólica; preguiça para despertar, visto que, embora tenha acordado às 6h, somente às 8h decidiu levantar-se da cama; pessimismo ante os problemas que o dia anunciava; indiferença para com os problemas de saúde do marido; ingratidão pelo dia admirável que tivera, sob o olhar atendo de Aurelino.
À noite, após um dia intenso de trabalho, num momento em que Aurelino se senta ao lado de Irmão X para uma conversa mais despreocupada, d. Sinésia fere o dedo com uma agulha que manejava para enfeitar um vestido.
Devido esse contratempo, d. Sinésia reclama, esbravejando:
“— Oh! meu Deus! meu Deus!… ninguém me ajuda! Vivo sozinha, desamparada!… Não há mulher mais infeliz do que eu!…”
Face à perplexidade do Irmão X, que acompanhou todas as operosidades do dia para que a assistida tivesse um dia de paz, Aurelino aduz, sem se perturbar:
“— Acalme-se, meu caro. Auxiliemos nossa irmã a reequilibrar-se. Esta irritação não há de ser nada. Ela também, mais tarde, vai desencarnar como nós, e será guia…”
Não há como ler a história desse “um dia de vida” de d. Sinésia sem pensarmos nos nossos próprios dias. Excessos, preguiça, pessimismo, indiferença, ingratidão, reclamação e irritação são alguns dos muitos sentimentos que ocupam nossas horas e nossos dias na Terra, quase sempre sem nos darmos conta dos esforços que pessoas que nos amam, seja no mundo físico, seja no mundo espiritual, empreendem para que tenhamos serenidade para lidar com as incumbências diárias.
Às vezes, atribuímos a obsessores, encarnados e desencarnados, a responsabilidade pelos nossos infortúnios, mas o certo é que, na grande maioria das vezes, somos nós mesmos, enredados por disposições semelhantes à de d. Sinésia, que construímos e alimentamos “a obsessão nossa de cada dia”.
Quem precisa de obsessor, quando pode contar consigo na tarefa de criar as “condições favoráveis” para o próprio insucesso?
Imagem de Taras Lazer por Pixabay