A Pobreza numa Análise conforme o Pensamento Espírita, por Luiz Gustavo O. dos Santos

Tempo de leitura: 8 minutos

Luiz Gustavo O. dos Santos

***

Pobreza é carma? Não há injustiçados? Voltemos a Kardec e Herculano Pires!

***

Como é sobejamente sabido, no movimento espírita hegemônico institucionalizado brasileiro correm muitas ideias contrárias à codificação. São mistificações, mentiras, muitas vezes eivadas de má-fé. Uma das piores falsificações, e das mais cruéis, que se repete e propala constantemente nesse meio, é a de que “quem sofre é porque mereceu”. Daí a consequente despolitização, o alheamento das questões sociais, como se a miséria, a pobreza, a desigualdade fossem “justas”, “merecidas”. 

Na cabeça de muitos, a pobreza é a “lei de Deus” funcionando. Pensa-se erradamente: “o pobre mereceu, é justo que esteja assim pela má utilização da riqueza que fez em outra vida”. Mas, alto lá! Pode ser isso ou não; quem o sabe? Na dúvida sobre cada caso, sempre cabem as perguntas: 

– A doutrina permite julgar assim os irmãos? Não, decerto! (“O evangelho segundo o Espiritismo”, cap. X, itens 11 a 13). 

– A lei de Deus autorizou alguém a conhecer o passado de cada pessoa pobre, para tão assertivamente sentenciar que todas estão na pobreza devido ao que fizeram em vidas passadas? Ao contrário, Deus não faz esquecer, não vela esse passado? Sim, vela; é o que ensina a doutrina (“O livro dos Espíritos”, item 392 e seguintes.) Quem se arroga ter recebido revelação das existências passadas, portanto? De fato, ninguém tem essas revelações. 

***

É mesquinho afirmar que o sofrimento da pobreza só pode ocorrer porque houve “merecimento”, ou seja, porque é expiação de faltas passadas.

***

O que se faz, candidamente, é apenas uma dedução geral, a partir de um entendimento incompleto e mesquinho, de que todo o sofrimento da pobreza só pode ocorrer porque houve “merecimento”, ou seja, porque é expiação de faltas passadas. Eis do que se trata, para muitos: um “justiçamento cármico” inexorável (e nada doutrinário). A própria doutrina, em sua metafísica da lei divina, explica que o sofrimento pode se dar por três causas: expiação (de faltas passadas), mas também por prova (teste de virtude, que não exige referência a faltas passadas) ou mesmo por missão! (“O evangelho segundo o Espiritismo”, cap. V, item 9). 

De onde os sapientes mistificadores tiraram que toda a aflição da pobreza é expiação? De seu próprio mau juízo. E, ainda que fosse possível acessar a informação precisa de que alguém sofre na pobreza por expiação, qual atitude seria a correta, caridosa, frente a esse caso? A que a doutrina indica é clara: o alívio e a própria extinção da mesma, jamais a conformação a uma suposta condenação (“O evangelho segundo o Espiritismo”, cap. V, item 27, mensagem assinada pelo Espírito Protetor Bernardim).

 

Além do mais, se há aflições cujas causas estão no passado (as “causas anteriores”), há muito mais que têm suas causas na atualidade (as “causas atuais”)! O recurso às causas anteriores se faz quando se trata de questões “que nenhuma filosofia resolveu até agora” (“O evangelho segundo o Espiritismo”, cap. V, itens 6 a 9). Ora, qualquer filosofia política, social, como a de Platão, de Rousseau, de Fourier, de Saint-Simon, de Marx, de Russell, etc., explica as causas atuais da pobreza! Está nas relações injustas de poder, de um sistema de egoísmo, refletido numa sociedade com classes dominante e dominada, baseada na excludente riqueza pessoal; o que hoje se concretiza no capitalismo. E a saída proposta é uma nova forma de distribuição, numa sociedade de ajuda mútua e solidariedade, protetora e emancipadora, de tipo socialista. 

***

Aceitar de bom grado a injustiça, numa indiferença tranquila, como condizente com a lei divina, reproduzindo-a e perpetuando-a no meio social, não é Espiritismo!

***

Portanto, é por desconhecimento e/ou má-fé que se procura a causa da pobreza entre as “causas anteriores”. O problema se prende à injustiça social, à desigualdade das condições sociais. Desigualdade esta que, segundo a própria doutrina, é devida ao homem, à sua viciosa organização social, não a Deus, às suas leis ou à natureza (“O livro dos Espíritos”, itens 806 e seguintes, 930, 707, 717, etc.) E que deve desaparecer um dia, junto com orgulho e o egoísmo que a engendram. “Com uma organização social previdente e sábia o homem não pode sofrer necessidades” (“O livro dos Espíritos”, item 930, comentário de Kardec) [1].

Ouve-se um péssimo adágio, repetido aqui e ali em meios espíritas, para dar ares de sabedoria aforística a uma desumanidade, que diz: “Há a injustiça, mas não há injustiçados”… O quê! É como se um mecanismo oculto “aproveitasse” as injustiças do mundo, lhes direcionando os seus devidos merecedores… Tal pensamento faz pintar as injustiças como “justas”! Apenas justifica as injustiças e, com isso, conforma a consciência perante a aflição de muitos. Pior: faz aceitar de bom grado a injustiça, numa indiferença tranquila, como condizente com a lei divina, reproduzindo-a e perpetuando-a no meio social! Isso não é divino, não é doutrina espírita. É grave… é absurdo. 

Em resumo, ninguém tem acesso ao passado de cada um para sentenciar sobre a sorte geral. E pensar assim, além de ser, para o espírita, demonstração de ignorância doutrinária, ainda constitui ato de desamor. É pré-julgamento, é preconceito. A doutrina condena tal prática e tais ideias. Ela veta adotar esse posicionamento frente aos sofrimentos dos pobres e afirma categoricamente: Há, sim, injustiçados; os pobres são injustiçados! Ninguém está autorizado a acusar os pobres de merecerem ou terem pedido seu sofrimento no passado, valendo-se farisaicamente da ideia de reencarnação para justificar as injustas causas atuais da pobreza. E mais, todo sofrimento, mesmo que soubéssemos consistir em expiação, deve ser aliviado ou extinto, inclusive por uma melhor organização social! Não há lugar para o orgulho na normativa ética espírita, só para o amor. É preciso que a sociedade chegue a fundar suas instituições no amor, na ajuda mútua, na solidariedade. Devemos atuar para extirpar da face da Terra as causas atuais da pobreza, morais, políticas, econômicas e sociais. 

Kardec e Herculano

Assim, lemos em Kardec e em Herculano Pires:

O alívio das expiações

“Não digais, portanto, ao verdes um irmão ferido: ‘É a justiça de Deus, e é necessário que siga seu curso’, mas dizei, ao contrário: ‘Vejamos que meios nosso Pai Misericordioso me concedeu, para aliviar o sofrimento de meu irmão. […] Vejamos mesmo se Deus não me pôs nas mãos os meios de fazer cessar esse sofrimento; se não me deu, como prova também, ou talvez como expiação, o poder de cortar o mal e substituí-lo pela bênção da paz’. 

Auxiliai-vos sempre, pois, em vossas provas mútuas, e jamais vos encareis como instrumentos de tortura. Esse pensamento deve revoltar todo homem de bom coração, sobretudo os espíritas. Porque o espírita, mais que qualquer outro, deve compreender a extensão infinita da bondade de Deus. O espírita deve pensar que sua vida inteira tem de ser um ato de amor e de abnegação, e que, por mais que faça para contrariar as decisões do Senhor, sua justiça seguirá o seu curso. Ele pode, pois, sem medo, fazer todos os esforços para aliviar o amargor da expiação, porque somente Deus pode cortá-la ou prolongá-la, segundo o que julgar a respeito. 

Não seria excessivo orgulho, da parte do homem, julgar-se com o direito de revolver, por assim dizer, a arma na ferida? De aumentar a dose de veneno para aquele que sofre, sob o pretexto de que essa é a sua expiação? Oh! Considerai-vos sempre como o instrumento escolhido para fazê-la cessar. Resumamos assim: estais todos na Terra para expiar; mas todos, sem exceção, deveis fazer todos os esforços para aliviar a expiação de vossos irmãos, segundo a lei de amor e caridade” (Allan Kardec, “O evangelho segundo o Espiritismo”, cap. V, item  27) [1].

O egoísmo como ponto de partida

“É fato reconhecido que a maior parte das misérias da vida provém do egoísmo dos homens. Desde que cada um só pensa em si sem pensar nos outros e ainda só quer a satisfação dos próprios desejos, é natural que a procure a todo preço, sacrificando embora os interesses de outrem, quer nas pequenas, quer nas maiores coisas, tanto na ordem moral, como na material. Daí todo o antagonismo social, todas as lutas, conflitos e misérias, visto como cada um quer pôr o pé adiante dos outros” (Allan Kardec, “Obras póstumas”, Primeira Parte, “O egoísmo e o orgulho: suas causas, seus efeitos e os meios de destruí-los”) [1].

“Se eles [os preceitos de Jesus] fossem seguidos no mundo, todos seriam perfeitos. Não haveria ódios, nem ressentimentos. Direi mais ainda: não haveria pobreza, porque do supérfluo da mesa de cada rico, quantos pobres seriam alimentados? E assim não mais se veriam, nos bairros sombrios em que vivi, na minha última encarnação, pobres mulheres arrastando consigo miseráveis crianças necessitadas de tudo” (Allan Kardec, “O evangelho segundo o Espiritismo”, cap. XIII, item 9, Mensagem assinada por “Irmã Rosália”) [1].

“Certamente que, por uma sábia organização social, podem aliviar-se muitos sofrimentos, e é a isso que é preciso visar; […] 

Guardai-vos, no entanto, de ver, em todos os povos, culpados em punição; se a pobreza é para alguns uma expiação severa, para outros é uma prova que deve abrir-lhes, mais prontamente, o santuário dos eleitos. 

[…] Merecei por vossas virtudes, que Deus não vos envie senão bons Espíritos, e de um inferno fareis um paraíso terrestre” (Allan Kardec, “Revue Spirite”, agosto, 1861, Dissertações, “O pauperismo”, mensagem assinada por Adolphe, Bispo de Alger) [2].

“Os pobres são os injustiçados da Terra. Os ricos são os que amealharam os bens da Terra e fizeram a sua própria justiça. O reino é do Céu, mas o Jovem Carpinteiro o trouxe para a Terra, a fim de que a justiça se faça através do amor. Como é difícil aos homens compreenderem essa dialética Divina! Há dois mil anos admiram a grandeza do Reino, desejam atingi-lo, mas não jogam fora o fardo terreno que os impede de chegar a ele. […] 

Os homens que amealharam fortuna da Terra amealharam egoísmo, injustiça e impiedade. Os bens da natureza pertencem a todos, e os que transformam esses bens para produzir outros não podiam esquecer o dever da fraternidade. Como pode regozijar-se na opulência o homem que vê seus irmãos morrendo de fome, doença e miséria nas sarjetas da cidade ou nos paióis do campo? ‘Mas ele pode auxiliar as obras sociais’. […] 

Derrubar as migalhas da mesa para os cachorrinhos e os gatos não é amor nem justiça. […] 

De que adiantaria anunciar a Boa Nova aos ricos que só tem ouvidos moucos para as coisas do Reino? Os pobres sofrem, são injustiçados, carecem de amor. Deus sabe que eles têm ouvidos de ouvir. A Boa Nova lhes toca o coração amargurado” (J. Herculano Pires, “O Reino”, cap. 2).

“Ai daquele que pretender empobrecer os homens e empobrecer a Terra. […] 

O Reino é rico, mas a riqueza do Reino é abundante e impessoal. O que faz a pobreza é a riqueza pessoal. Há um caruncho da alma: o egoísmo. Esse caruncho destrói a maior riqueza do universo, que é o Espírito, quando o homem se julga dono pessoal dos frutos da terra. 

[…] Que são os bens, se não os frutos da Terra? Maria previu, na sua intuição humana de mãe e na sua previsão divina de Espírito, a redistribuição dos frutos da Terra para que o amor e a justiça do Reino triunfem entre os homens. A árvore que lança suas raízes ao solo e estende seus ramos aos ventos não dá frutos para este ou aquele, mas para todos. 

[…] Que direito tem um homem de cercar uma árvore ou mais árvores, de torná-las suas escravas particulares, de arrebatar-lhes sistematicamente os frutos para transformá-los em riqueza pessoal? Os frutos devem saciar a fome dos famintos, alimentar as crianças e fortalecê-las para o futuro. A riqueza dos frutos é para todos. A árvore é o gesto de Deus ensinando aos homens a eterna doação. Nada lhe pedem e ela tudo dá. 

[…] Os entesouradores pessoais organizam-se em associações, em trustes, em gigantescos monopólios. Pegam os frutos das árvores, os frutos minerais das entranhas da terra, os frutos aquáticos dos rios e dos mares, sugam os lençóis subterrâneos e as misteriosas jazidas que os séculos formaram, e de tudo isso fazem moedas ingênuas, doiradas ou prateadas, cintilantes de pureza, que transformam em instrumentos de suplício e de vício. Os entesouradores pessoais se associam contra os pobres, dominam nações e povos, exploram multidões e se consideram benfeitores da humanidade. Graças ao poder do dinheiro acumulado, o ingênuo e puro dinheiro que leva saúde ao doente e alimento ao faminto, mas que em suas mãos se transforma em lâminas do punhal assassino, derrubam governos, subvertem regimes, tripudiam sobre o direito das gentes. Mas um dia alguém vem demandar-lhes a alma néscia e apagar-lhes das gerações a odiosa memória, o exemplo corruptor” (J. Herculano Pires, “O Reino”, cap. 3).

Conforme a doutrina, importa guardar esta ideia: Não estamos autorizados a reproduzir a injustiça humana a pretexto de realizar justiça divina! 

A transformação social, para extinguir as causas da pobreza, eliminando a “riqueza pessoal” e prescrevendo o bem de todos, é um imperativo espírita. Trata-se, na prática, de superar a opressão capitalista e realizar, enfim, a emancipação socialista.

Complementarmente, indico ainda o excelente artigo da “Revue Spirite”, de 1877, já sem a coordenação/edição de Kardec, escrito por J. Camille Chaigneau, chamado “Progresso social e reencarnação”, que traduzi e incluí como Apêndice no livro da Anna Blackwell, intitulado “O efeito provável do espiritualismo sobre a condição social” [3].

 

Notas do ECK: 

[1] Os textos deste artigo, extraídos das mencionadas obras kardecianas, são todos da Editora Lake, com a tradução do Professor J. Herculano Pires. Apenas no caso de “Obras Póstumas”, o tradutor e João Teixeira de Paula, com Introdução e Notas de Herculano. 

[2] E, no caso da “Revue Spirite”, a publicação é da Editora IDE, com tradução de Salvador Gentile e revisão de Elias Barbosa.

[3] Referida obra pode ser gratuitamente acessada em: <https://edconhecimento.com.br/wp-content/uploads/2022/08/O-Efeito-Provavel-1-20.pdf >.

 

Imagem de Charly Gutmann por Pixabay

Written by 

Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “A Pobreza numa Análise conforme o Pensamento Espírita, por Luiz Gustavo O. dos Santos

  1. É inegável! Que veja quem tem olhos para ver, que pense e aja quem tem cérebro para pensar e agir. O belíssimo artigo enfatiza que a pobreza resulta de diversos fatores que não podem ser ignorados em favor de explicações fatalistas apregoadas por detratores espíritas. A verdadeira aplicação da doutrina exige o combate à miséria e a construção de um mundo mais fraterno, alicerçado nos princípios de amor e justiça.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Saiba como seus dados em comentários são processados.