A segunda edição desconhecida de “O livro dos Espíritos”, por Eugênio Lara (in memoriam)

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Eugênio Lara (in memoriam)

O fundador do Espiritismo, até 1868, promoveu modificações em quase todas as suas obras. Quando comparamos as edições e observamos as alterações realizadas, podemos compreender o processo não somente histórico de elaboração da Kardequiana, mas também as decisões editoriais, doutrinárias.

Nada como consultar as obras originais da produção Kardequiana. Com o advento da internet, o fluxo de informações não fica mais restrito às bibliotecas, a meia dúzia de colecionadores, de pesquisadores e estudiosos que nem sempre tiveram espaço ou oportunidade para divulgar e compartilhar seu acervo e produção. Afirmamos isso a propósito da leitura da primeira edição, digitalizada, de “O que é o Espiritismo”, opúsculo publicado por Allan Kardec em 1859, onde pudemos perceber, em alguns detalhes contidos em seu final, informações que modificaram nosso olhar da primeira obra da filosofia espírita: “O livro dos Espíritos”.

Esse opúsculo foi finalizado em maio de 1859, provavelmente publicado em junho do mesmo ano e divulgado na “Revista Espírita” (julho de 1859) como a “nova obra do Sr. Allan Kardec”.

Até hoje, como é de hábito, as editoras costumam divulgar seu catálogo no final dos livros publicados. Kardec fazia o mesmo com suas obras. Nas últimas páginas de “O que é o Espiritismo”, podemos notar a divulgação do estatuto da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE), da “Revista Espírita”, de várias obras espíritas, dentre elas a segunda edição de “O livro dos Espíritos”, com um índice surpreendente.

A segunda edição da primeira obra de Allan Kardec, definitiva, lançada em 18 de março de 1860, continha quatro livros na forma de perguntas e respostas, com comentários e ensaios teóricos de Allan Kardec. São 1019 questões [1] distribuídas em 474 páginas. A primeira edição, de 18 de abril de 1857, continha três livros, 501 perguntas e 176 páginas.

Esclarece Kardec, no aviso à segunda edição:

Esta reimpressão pode pois ser considerada como uma obra nova, embora os princípios não tenham sofrido qualquer mudança, há um pequeno número de exceções, que são mais complementos e esclarecimentos que verdadeiras modificações.” [2]

Nesse mesmo texto, o fundador do Espiritismo faz referência a “O livro dos Médiuns”, obra que seria publicada somente em 1861:

Na primeira edição desta obra [“O livro dos Espíritos”], anunciamos uma parte suplementar. Ela deveria se compor de todas as questões que aí não puderam ter lugar ou que as circunstâncias ulteriores e de novos estudos deveriam fazer nascer. Mas como elas são todas relativas a qualquer uma das partes já tratadas e das quais são o desenvolvimento, sua publicação isolada não teria apresentado sentido algum. Preferimos esperar a reimpressão do livro, para fundir tudo junto e então aproveitamos para trazer, na distribuição das matérias, uma ordem muito metódica, ao mesmo tempo em que podamos tudo o que tivesse duplo emprego.” [3]

E finaliza mostrando explicitamente a relação de continuidade entre “O livro dos Espíritos” e “O livro dos Médiuns”:

“O preceito relativo às manifestações propriamente ditas e aos médiuns, forma, de qualquer maneira, uma parte distinta da filosofia e que pode ser objeto de um estudo especial. Esta parte, tendo recebido um desenvolvimento considerável, por consequência da experiência adquirida, acreditamos dever fazer um volume distinto, contendo as respostas dadas sobre todas as questões relativas às manifestações e aos médiuns, além de numerosas observações sobre o espiritismo prático. Esta obra formará a continuação ou o complemento do Livro dos Espíritos.” [4]

No Epílogo da primeira edição de “O livro dos Espíritos”, há o esclarecimento de Allan Kardec acerca da complementação desta obra, o anúncio suplementar:

A próxima publicação, que será continuação dos três livros contidos neste primeiro trabalho, compreenderá, entre outros assuntos, os meios práticos pelos quais o Homem pode conseguir neutralizar o Egoísmo, fonte da maioria dos males que afligem a Sociedade. Toca este assunto as questões de sua posição neste Mundo e de sua situação no futuro da Terra. Nota. Esta segunda parte será publicada por via de subscrição, e destinada às pessoas que se inscreverem para esse efeito, fazendo-nos seu pedido por escrito (sem compromisso nem pagamento antecipado).” [5]

No ano seguinte, em 1858, Kardec publicaria “esta segunda parte” sob o título de Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas, cumprindo assim o anúncio feito anteriormente. Esse opúsculo introdutório teve apenas uma única edição; após a publicação de “O livro dos Médiuns” (1861), ele não foi mais reimpresso.

Entre a primeira edição (1857) e a segunda edição (1860) de “O livro dos Espíritos”, ele chegou a produzir uma edição completa (1859), compacta, composta por cinco livros, uma “edição perdida”, uma verdadeira raridade, cuja publicação não temos absoluta certeza de ter sido feita.

Quanto à nova edição de “O livro dos Espíritos”, a decisão de Allan Kardec, após consultar sua esposa e os Espíritos, foi editorial. Ele agiu não somente como pedagogo, mas como editor ao perceber que, ao invés de publicar uma obra muito volumosa, difícil de manusear e consultar, seria preferível desmembrá-la em dois volumes, cada qual com um título, mas de conteúdos inter-relacionados. Essa foi sua decisão editorial definitiva. No entanto, pelo que podemos observar no final de “O que é o Espiritismo”, entre a primeira edição (1857) e a segunda edição (1860) de “O livro dos Espíritos”, ele chegou a produzir uma edição completa (1859), compacta, composta por cinco livros. É o que poderíamos chamar de uma “edição perdida” [6], uma verdadeira raridade, cuja publicação não temos absoluta certeza de ter sido feita.

O índice de “O livro dos Espíritos” divulgado no final do opúsculo em questão é composto pelos seguintes livros: LIVRO PRIMEIRO (As causas primárias); LIVRO SEGUNDO (Mundo espírita ou dos Espíritos); LIVRO TERCEIRO (Leis morais); LIVRO QUARTO (Esperanças e consolações) e LIVRO QUINTO (Manifestação dos Espíritos). (7) Esta informação, pouco conhecida pelos estudiosos do Espiritismo, demonstra cabalmente que “O livro dos Médiuns” é a segunda parte de “O livro dos Espíritos”, seu desdobramento editorial, como se fosse o lado B de um disco de vinil, o segundo volume, “a continuação ou complemento”, conforme as próprias palavras do fundador do Espiritismo.

Como essa informação foi publicada em junho de 1859, é possível que o livro completo já tivesse sido composto na gráfica, ainda em fase de revisão, cujas provas tipográficas foram divulgadas no final do opúsculo citado, com a exposição do índice detalhado. Fosse a obra publicada, certamente Allan Kardec teria divulgado essa informação na “Revista Espírita”. Em todo o ano de 1859, não há nenhuma referência quanto à nova edição da obra primeira da Doutrina Espírita.

Se “O livro dos Espíritos” estava prestes a sair composto por cinco livros, o que fez Allan Kardec mudar de ideia? Não temos uma resposta precisa. Também não sabemos como era o conteúdo de toda essa edição, muito menos do inusitado quinto livro que quase foi acrescentado. Todavia, há um fato muito relevante que, em nosso entendimento, deve ser considerado. O naturalista Charles Darwin lançou sua revolucionária obra “A Origem das Espécies” (On the Origin of Species) em 24 de novembro de 1859, causando um impacto fulminante em toda a Europa. Sempre antenado com as descobertas científicas, Allan Kardec certamente leu esse livro e provavelmente, por conta disso, ao ver a revolucionária teoria da evolução, decidiu alterar o conteúdo de seu primeiro livro espírita, adequando-o à nova descoberta. Ao compararmos a primeira edição com a segunda observamos a nítida diferença entre ambas quanto à evolução do homem e dos animais. A segunda edição não se choca com a teoria darwiniana.

Trata-se, obviamente, de uma hipótese. Se tivéssemos acesso aos manuscritos e documentos de Allan Kardec, dos originais de suas obras enviados à gráfica, aos 50 cadernos ofertados pelo dramaturgo Victorien Sardou, que ele analisou criteriosamente, dentre tantos outros documentos, poderíamos compreender de modo mais aprofundado as decisões editoriais e doutrinárias que ele tomou ao longo da elaboração da Kardequiana.

O filósofo espírita José Herculano Pires, na Introdução de “O livro dos Espíritos”, prefácio de sua tradução desta primeira obra espírita, afirma que “O livro dos Médiuns” é a sua “sequência natural”, o desenvolvimento do capítulo sexto até o final do Livro Segundo: Mundo Espírita ou dos Espíritos (8). Ora, se Herculano tivesse tido acesso à primeira edição de O Que é o Espiritismo, sua interpretação seria bem outra. Em nosso entender, “O livro dos Médiuns” é muito mais do que a “sequência natural”, ele é a cara-metade de “O livro dos Espíritos”, é a sua alma gêmea, forma com ele um todo indissolúvel, uma obra única, síntese completa do pensamento espírita.

Publicado em janeiro de 1861, “O livro dos Médiuns” esgotou-se rapidamente. A segunda edição, lançada em novembro daquele mesmo ano, foi completamente modificada, como explica o Druida de Lyon: “Esta segunda edição é muito mais completa que a precedente; encerra numerosas e importantes instruções e vários capítulos novos. Toda a parte que concerne mais especialmente aos médiuns, à identidade dos Espíritos, à obsessão, às questões que podem ser dirigidas aos Espíritos, às contradições, aos meios de discernir os Espíritos bons dos maus, à formação de reuniões espíritas, às fraudes em matéria de Espiritismo, recebeu notáveis desenvolvimentos, frutos da experiência. No capítulo das dissertações espíritas adicionamos várias comunicações apócrifas, acompanhadas de observações pertinentes, de modo a facultar os meios de descobrir o embuste dos Espíritos enganadores, que se apresentam com falsos nomes.” [9]

O fundador do Espiritismo, até 1868, promoveu modificações em quase todas as suas obras, inclusive na “Revista Espírita”. Quando comparamos as edições e observamos as alterações realizadas, podemos compreender o processo não somente histórico de elaboração da Kardequiana, mas também as decisões editoriais, doutrinárias.

A comparação entre a primeira e a segunda edição de “O livro dos Médiuns” (assim como de “O livro dos Espíritos”), considerando as experiências editoriais e doutrinárias publicadas na Revista Espírita, que era o seu laboratório de ideias, pode nos dar muitas pistas e dicas das experimentações mediúnicas que ele realizava, do diálogo com os espíritos, do confronto de ideias, enfim, um quadro interessante e abrangente a fim de compreendermos ainda mais o trabalho complexo e hercúleo empreendido por Allan Kardec.

Este exercício nos oferece um panorama detalhado do trabalho de Kardec, demonstrando que ele não foi apenas codificador, mas, sobretudo um editor, um cientista, o pedagogo por excelência e o verdadeiro fundador da Doutrina Espírita.

Notas do Autor:

[1] Alguns tradutores adotaram 1018 questões porque na segunda edição, por um erro de composição e revisão, não existe a questão 1011.

[2] No original, Avis – sur cette nouvelle edition, conforme o fac-símile da segunda edição existente na Bibliothèque Nationale de Paris, digitalizada e de domínio público pela Gallica [http://gallica.bnf.fr] . Tradução de Míriam de Domênico Rodrigues. Grifo meu.

[3] Idem.

[4] Ibidem. Grifo meu.

[5] “O Primeiro Livro dos Espíritos de Allan Kardec 1857”, Epílogo. Texto em fac-símile, versão em face publicada no primeiro centenário, em 1957. Trad. Canuto Abreu. São Paulo: Companhia Editora Ismael [1957]. Grifo meu.

[6] Essa expressão eu tomei emprestado do estudioso e pesquisador espírita
Vital Cruvinel, editor do blog “Decodificando o Livro dos Espíritos” [http://decodificando-livro-espiritos.blogspot.com], que gentilmente me enviou a primeira edição digitalizada de “O que é o Espiritismo”.

[7] No original: LIVRE PREMIER. (Les causes premières.); LIVRE DEUXIÈME. (Monde spirite ou des Esprits.); LIVRE TROISIÈME. (Lois morales.); LIVRE QUATRIÈME. (Espérances et consolations.); LIVRE CINQUIÈME. (Manifestation des Esprits.) . Qu’est-ce Que Le spiritisme – Allan Kardec, 1ª edição, Paris-França, Ledoyen, Libraire-Éditeur [1859]. Edição digital da Bibliotheque Nationale de France.
Na primeira edição de “O livro dos Espíritos”, Manifestação dos Espíritos é o título do capítulo X do Livro Primeiro, Doutrina Espírita, e o mais extenso de todos.

[8] “Introdução ao Livro dos Espíritos: A Codificação Espírita”, p. 12, in “O livro dos Espíritos”, 41. ed. Trad. J. Herculano Pires. São Paulo: LAKE, 1982.

[9] KARDEC, Allan – “Revista Espírita”, novembro de 1861, p. 517 – Trad. Evandro Noleto Bezerra. Rio de Janeiro: FEB, 2008.

 

Nota do ECK: Texto originalmente publicado no site “Pense – Pensamento Social Espírita”, em 2010.

Imagem de un-perfekt por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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