A (verdadeira e necessária) união entre os espíritas, segundo Vicente de Paulo, por Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 5 minutos

Marcelo Henrique

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No oposto do que conclama Vicente de Paulo, segmentos espíritas seguem se combatendo, em busca de uma unidade que se traveste em uniformidade e dependência, que caracterizam o meio espírita como um ambiente sem diálogo, com disputas de poder e influência, distante da realidade ideal, que já se manifesta em sociedades mais despertas, com o combate de toda e qualquer intolerância, preconceito e fundamentalismo.

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Em duas comunicações que Allan Kardec resolveu apresentar no capítulo XXXI, de “O livro dos médiuns”, sob o título “Dissertações Espíritas”, nos itens XX e XXVI, encontramos duas mensagens assinadas por Vicente de Paulo. Elas seriam direcionadas, segundo o Codificador, para o porvir do Espiritismo, aos médiuns e às reuniões espiritistas. Vale dizer que esse personagem já havia se manifestado inúmeras outras vezes, sobretudo subscrevendo textos contidos em “O evangelho segundo o espiritismo”.

Vicente de Paulo (1581-1660) – veja box ao final – ficou conhecido, na História da Humanidade, sob a expressão de um sacerdote católico francês do século XVII, o qual teve como divisa teórica e prática a caridade. Dedicado à evangelização de parcelas mais carentes da sociedade francesa, realizou prodígios visando minorar as dores dos camponeses, contribuindo, ainda, para a alteração da estrutura da Igreja Romana, por sua ativa participação no Conselho de Consciência, órgão encarregado de examinar todos os casos concernentes à Igreja, decisivo para o Renascimento católico.

Debruçando-nos sobre as contingências espíritas de nosso tempo e percebendo a relativa (e duradoura) dualidade entre os chamados religiosos e os laicos, em que cada qual entende e professa a Doutrina dos Espíritos à sua maneira, considerando as distintas e (até) antagônicas práticas, entendemos que o momento é decisivo e exige, de todos, principalmente das lideranças e dos escritores e jornalistas espíritas, prudência, bom-senso e espírito de diálogo, conciliação e, sobretudo, caridade.

Caridade para entender que cada qual reage conforme sua bagagem espiritual e se afiniza com idéias e práticas mais concernentes com seus hábitos, crenças e idiossincrasias íntimas. Em outras palavras, a parte majoritária do movimento espírita afilia-se à noção religiosa da Doutrina e, em conseqüência, entende a caridade como a prática assistencialista, prioritariamente dentro das instituições, por meio de projetos e campanhas específicas. De outro lado, a corrente filosófico-científica, denominada de laica, mesmo reconhecendo o caráter moralizador do conteúdo espiritista e o seu embasamento nas máximas morais de Jesus, propugna pela não-adesão ao sentido religioso da doutrina e pela prática espírita extramuros das entidades espíritas.

Caridade, também, para perceber que devamos investir nas semelhanças, que são muitas, efetivando parcerias que iniciem na promoção de eventos em que se busque a difusão das idéias espiritistas, investindo, ainda mais, em espaços de comunicação, ou seja, de aproximação, contato, fraternidade e debate, à luz do pensamento espírita, sem intenção de cooptação ou desejo de sobrepujar-se ao outro.

Para Vicente (“O livro dos Médiuns”, cap. XXXI, item XXVI),

 “O Espiritismo deverá ser uma égide contra o espírito de discórdia e de dissensão; mas, esse espírito, desde todos os tempos, vem brandindo o seu facho sobre os humanos, porque cioso ele é da ventura que a paz e a união proporcionam.” 

A discórdia e a dissensão, para ele, penetraria nas assembleias espíritas, deles decorrendo a desafeição entre os seguidores da doutrina. Recomenda, ele, assim, guarda e vigilância, porque ancoradas na paciência e na conciliação que a caridade verdadeira inspira e, no caso de ser necessária a separação entre o joio e o trigo, os bons Espíritos 

“[…] estarão sempre do lado onde houver mais humildade e verdadeira caridade”.

De modo usual, uns e outros sempre se posicionam como “detentores” da verdade, com autodesignações como “pureza doutrinária”, “espiritismo verdadeiro”, “verdadeiro caráter da doutrina”, “resgate do pensamento kardecista”, etc., ou, de modo complementar, posicionam-se em relação aos “outros”, com adjetivações como “pseudo-espíritas”, “reformadores”, “espiritualistas”, “movimento paralelo”, “dogmáticos”, para ficarmos nas principais nomenclaturas, aplicáveis, é verdade, em cenários e para destinatários específicos. E, complementarmente, inexistindo qualquer diálogo profícuo e produtivo entre os “segmentos” em tela, tem-se em geral a adoção da postura de indiferença, fazendo de conta que “a” ou “b” não existem (ou não têm representatividade ou importância), ou não “representam o Espiritismo (de Kardec)”.

É mais do que hora de nos motivarmos ao exame sério, criterioso e detalhado da situação vivida no seio do movimento espírita (principalmente no Brasil). Há, notadamente, uma intransigência generalizada em relação a qualquer aproximação, por mais sutil que seja. Em eventos “oficiais”, promovidos por entidades “independentes” (espíritas ou não), temos visto uma espécie de “saia-justa” entre os dirigentes da corrente majoritária, por terem que “dividir” a mesa de honra com representantes do outro grupo.

Repisando o iluminado mentor, na outra passagem selecionada, encontraríamos novas (e severas, porquanto oportunas) advertências:

“Sede unidos, para serdes fortes”, justamente para resistir, diz ele, “ […] aos dardos envenenados da calúnia e da negra falange dos Espíritos ignorantes, egoístas e hipócritas”. E, catedraticamente, postula acerca da necessidade de agirem, todos os genuínos espíritas, com indulgência e tolerância recíprocas, para esquecer eventuais defeitos – de uns e de outros – tornando notórias as qualidades, numa amizade sincera que é o sustentáculo para a resistência aos “ataques do mal”.

Enquanto continuarmos – clara ou veladamente – nos combatendo, em busca de uma unidade que se traveste em uniformidade e dependência, e enquanto primarmos pela adoção de sistemas rígidos de controle e tutela das atividades espiritistas, não dando oportunidade ao espírito de liberdade, cunhado pela Espiritualidade Superior como o principal requisito e legítima alavanca do progresso espiritual, estaremos fadados a ser (mais) um movimento de feições de absolutismo e intransigência – tanto nas relações íntimas, quanto no cenário exterior – com disputas de poder e influência  numa época em que o mundo começa a despertar, em sociedades mais democráticas, para o combate de toda e qualquer intolerância, preconceito e fundamentalismo.

Este fundamentalismo, aliás, precisa urgentemente de um basta! Porque todos, invariavelmente, somos espíritas e porque a compreensão das verdades e dos princípios da Doutrina Espírita compreende e permite que, ainda que de modo parcial e evolutivo, nossas percepções e leituras sejam distintas, caminhando, com a marcha do progresso, para a convergência, num futuro que é obra consequente do presente.

Referências:

KARDEC. O evangelho segundo o Espiritismo. Traduzido por J. Herculano Pires. 20. Ed. São Paulo: LAKE, 1998.

KARDEC, A. O livro dos Médiuns: guia dos médiuns e dos evocadores. Trad. J. Herculano Pires. 20. Ed. São Paulo: LAKE, 1998.

 

Quem foi Vicente de Paulo

Vicente de Paulo (1581-1660), terceiro filho do casal João de Paulo e Bertranda de Moras, camponeses profundamente católicos, destacou-se, desde cedo, por sua notável inteligência e devoção. Professor, concluiu os estudos de teologia na Universidade de Toulouse e foi ordenado sacerdote, aos 19 anos. Depois, formou-se em Direito Canônico. Foi Capelão da Rainha Margarida de Valois (Margot) e encarregado da distribuição de esmolas aos pobres.

Vicente fundou a Confraria do Rosário e dedicou-se à luta pela dignidade dos presos, que viviam em condições subumanas. Foi, também, Capelão Geral e Real da França. Vendo o abandono espiritual dos camponeses, fundou a Congregação da Missão (Padres Lazaristas), para evangelização do “pobre povo do interior”.

Vicente de Paulo foi o criador de muitas obras de amor e caridade. Sua vida é uma história de doação. Muitos acham que a maior virtude de São Vicente é a caridade, mas sua humildade suplantava essa virtude. Foi, ainda, um bravo reformador do clero. Foi canonizado pelo Papa Clemente XII, em 1737 e, em 1885 foi declarado patrono de todas as obras de caridade da Igreja Católica, por Leão XIII. Colaborador da Doutrina Espírita, assinou as respostas dos itens 888 e 888a, bem como os “Prolegômenos”, de O livro dos espíritos, os citados itens XX e XXVI, além do XXXI, de O livro dos médiuns, e o item 12, do Cap. XIII, de O evangelho segundo o espiritismo.

 

Imagem de Anke Sundermeier por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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