Marcelo Henrique
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“A gente não quer só comida
A gente quer comida, diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída para qualquer parte
A gente não quer só comida
A gente quer bebida, diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida como a vida quer”
(Comida, música escrita em 1987).
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Introdução: A vida imita a arte.
A letra atemporal de Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, na forma de música entoada pelos Titãs, está perto de completar 40 anos. Fome e Sede, que estão encartadas na poesia, nos remetem à fala atribuída a Jesus de Nazaré, no Sermão das Bem-Aventuranças, conhecido e decantado no “mundo” cristão (e espírita).
Fome e sede, obviamente, são enquadradas, inicialmente, no âmbito da materialidade, dentro das chamadas necessidades básicas da existência do ser humano. Fazem parte do cotidiano de pessoas e sociedades, na luta de cada dia para colocar o pão na mesa. E endereçam o pensar para a dicotomia entre necessário e supérfluo e para a gradação (individual) do que satisfaz ou não o ser, suas buscas e conquistas, suas lutas e vitórias. Ou fracassos e derrotas.
Mas a fome e a sede – ou a necessidade de “comida” – não se restringem ao combate à inanição. Ela alcança o conjunto de Direitos Universais, onde a fome e sede de justiça social [1] endereça os membros da sociedade a outras lutas, no sentido da democratização do acesso a distintos direitos e a conquista da equidade nas relações sociais.
Os debates legislativos na atualidade brasileira.
Discute-se, atualmente, em nosso país – como já ocorrido em outros países, no passado recente –, uma nova disciplina para a jornada/escala de trabalho da imensa maioria da população brasileira, o 6×1, isto é, a quantificação de seis dias trabalhados e um de folga. Em sede de Proposta de Emenda Constitucional (PEC), que já recebeu número suficiente para ser levada à votação em Plenário nas duas Casas Legislativas Federais (Câmara e Senado), prevê a alteração do artigo 7º, XIII, da Constituição Federal, para estabelecer uma jornada (máxima) de trabalho de 4 (quatro) dias, com o limite de 8 (oito) e 36 (trinta e seis) horas trabalhadas, diária e semanalmente, na sequência.
A parlamentar Erika Hilton (PSOL-SP) atendendo a reclamos da população a partir de iniciativa do trabalhador Ricardo “Rick” Azevedo, que é vereador (PSOL-RJ), que desencadeou a petição pública “on line” organizada pelo do Movimento “Vida Além do Trabalho” foi quem propôs o dispositivo, em fase de projeto. Até o momento da feitura deste artigo, na manhã do domingo (17/11/2024) já haviam assinado o petitório, 2.948.025 indivíduos. A iniciativa se consolida como uma efetiva medida correlacionada a uma “agenda propositiva” do Congresso Nacional [2].
O Trabalho em uma leitura espiritual-espírita.
Acerca do Trabalho, Kardec perquiriu as Inteligências Invisíveis e, em conjunto com elas, versou sobre a temática, apresentando contornos e fundamentos que nos devem servir de referência, para uma análise da existência material planetária [3]. A partir, inicialmente, de “O livro dos Espíritos”, em sua Parte Terceira (“As Leis Morais”) podemos entender, na configuração espiritual-espírita, os principais elementos da Lei do Trabalho [4], em dez pontos característicos [5]:
1) É lei da Natureza o trabalho, que configura uma necessidade do Espírito;
2) Corpo e Espírito trabalham, dando a correta noção de bidimensionalidade, pois, assim como na existência físico-material (encarnados), os desencarnados também trabalham em qualquer parte do Universo;
3) É trabalho toda e qualquer ocupação útil (sendo necessário bem configurar o que seja utilidade e que tal o será quando vise o bem);
4) Trabalho é expiação e missão (no sentido do aperfeiçoamento da inteligência, atributo do Espírito);
5) O trabalho, na circunstância da materialidade (existência física tem duplo objetivo, qual será tanto a conservação (do corpo material) quanto o desenvolvimento da inteligência;
6) Todos os Espíritos trabalham e nos mundos superiores à Terra, sendo as necessidades menos materializadas, mais espiritualizado é o trabalho;
7) Se o indivíduo já possui quantitativo suficiente de recurso para sua mantença individual, deve colaborar com os demais, sendo-lhes útil aos semelhantes, empregando o tempo que destinaria à conquista de bens de que já não mais necessita, a fazer o bem a quem puder;
8) Aqueles que não podem trabalhar devem ser assistidos pelos demais para a continuidade existencial, minimizando-se os efeitos prejudiciais ou danosos à sua integridade físico-espiritual;
9) O repouso também é uma lei da Natureza, tanto do sentido da reparação das forças biológicas humanas, quanto na questão de permitir, com o melhor aproveitamento do tempo, o desenvolvimento das faculdades humanas (liberdade); e,
10) Aqueles que impõem trabalhos excessivos, penosos, insalubres ou perigosos atentam contra as leis da Natureza e, conforme a dinâmica destas, irão expiar as faltas cometidas, futuramente.
Considerações finais: A aproximação entre o espiritual e o material.
Veja-se que a iniciativa legislativa em comento, apesar de não ter sido produzida por indivíduos ou instituições espíritas, contempla vários dos elementos acima elencados, senão todos. É preciso, pois, rever a questão da distribuição do trabalho assalariado e com vínculo (definitivo ou provisório), em relação àqueles que laboram em instituições privadas, sobretudo (já que o regime jurídico de servidores e empregados públicos contempla cargas horárias mais favoráveis), proporcionando às pessoas não só o descanso remunerado de forma digna (e ampliada) quanto a perspectiva de, lembrando a canção dos titânicos, “diversão, arte, balé e a vida como a vida quer: fazer amor e ter prazer para aliviar a dor; dinheiro e felicidade, inteiro e não pela metade”.
O cenário atual, que repete os anteriores, desde a chamada Revolução Industrial, já foi objeto de estudo por Karl Marx, acerca dos efeitos danosos do trabalho (em excesso), a concentração de recursos econômico-financeiros na mão de poucos, o domínio dos meios de produção e a espoliação da mão de obra, caracterizadores do modelo capitalista sobre a Humanidade. Modelo que precisa ser revisto, no respeito a indivíduos e povos, inclusive considerando a imperiosa necessidade do homem promover o progresso social. E, fundamentalmente, um novo marco legal para a jornada/regime de trabalho em nosso país é um importante elemento de necessária revisão.
Recontextualizando-se Marx, sua preocupação com a expropriação do trabalho e a sua diminuição enquanto valor, em relação ao superdimensionamento dos bens de produção, encontra ressonância no projeto antes mencionado, justamente para também permitir que a classe trabalhadora possa se dedicar e investir em sua própria especialização, no tempo em que não esteja no trabalho profissional, elemento que é uma das maiores críticas dos especialistas econômico-financeiros, que é a da baixa (ou ausente) qualificação para o trabalho.
Configura ela, não mais um grito solitário, mas coletivo de “socorro!” pelos direitos do cidadão e contra a subordinação da vida ao trabalho (profissional). E ele já havia tido um prenúncio, com Antônio Cândido, ao inaugurar a Biblioteca do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST): “a luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar meu tempo de forma que eu me humanize’”, declarou o escritor [6].
Por fim, como já afirmamos em outro artigo sobre a citada lei, aqui, repisamos: “Para as coisas da matéria, atitudes e cuidados materiais. Para as espirituais, a atenção para que façamos o melhor que esteja ao nosso alcance, sempre” [7]. E, completamos: que as coisas materiais se aproximem das espirituais, considerando a perspectiva de que a espiritualização (progresso) dos seres leve à espiritualização da sociedade!
Notas do Autor:
[1] “Sede de Justiça Social” é o título do capítulo que escrevemos na obra coletiva “Temos Sede: do que precisamos como espíritas?”, publicado em 2024, pela Editora Comenius. A obra pode ser adquirida em: <https://www.editoracomenius.com.br/temso-sede-do-que-precisamos-como-espiritas>.
[2] Para acessar o conteúdo do referido projeto de Emenda Constitucional: <https://www.cartacapital.com.br/politica/leia-a-integra-do-projeto-que-propoe-o-fim-da-escala-6×1/>.
[3] Nosso nono livro, no prelo, trata exatamente dos aspectos humano-materiais-espirituais do trabalho, tendo como título (provisório): “A Transcendência e a Espiritualidade do Trabalho”.
[4] KARDEC, A. O livro dos Espíritos. Parte Terceira, Capítulo III, itens 674 a 685. Trad. J. Herculano Pires. 64. ed. São Paulo: Lake, 2004.
[5] Tivemos a oportunidade de compor uma edição inteira sobre a Lei do Trabalho, na Revista Espírita Eletrônica Harmonia, do grupo Espiritismo COM Kardec (ECK), cujo conteúdo (Editorial e sete artigos), pode ser acessado em: <https://www.comkardec.net.br/editorial-lei-do-trabalho-contextos-sonhos-e-desafios/>.
[6] A afirmação completa é: “Acho que uma das coisas mais sinistras da história da civilização ocidental é o famoso dito atribuído a Benjamim Franklin, ‘tempo é dinheiro’. Isso é uma monstruosidade. Tempo não é dinheiro. Tempo é o tecido da nossa vida, é esse minuto que está passando. Daqui a 10 minutos eu estou mais velho, daqui a 20 minutos eu estou mais próximo da morte. Portanto, eu tenho direito a esse tempo. Esse tempo pertence a meus afetos. É para amar a mulher que escolhi, para ser amado por ela. Para conviver com meus amigos, para ler Machado de Assis. Isso é o tempo. E justamente a luta pela instrução do trabalhador é a luta pela conquista do tempo como universo de realização própria. A luta pela justiça social começa por uma reivindicação do tempo: ‘eu quero aproveitar o meu tempo de forma que eu me humanize’. As bibliotecas, os livros, são uma grande necessidade de nossa vida humanizada”. Disponível em:<https://www.assufrgs.org.br/2006/08/11/escritor-antonio-candido-inaugura-biblioteca-do-mst-e-fala-da-forca-da-instrucao/>.
[7] Veja-se no texto “Trabalhador sim senhor!”, disponível em: <https://www.comkardec.net.br/trabalhador-sim-senhor-por-marcelo-henrique/>.
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Anexo:
Comida
Titãs
Composição: Arnaldo Antunes / Marcelo Fromer / Sérgio Britto
Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comida
A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte
A gente não quer só comida
A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer
Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
A gente não quer só comer
A gente quer comer
E quer fazer amor
A gente não quer só comer
A gente quer prazer
Pra aliviar a dor
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer dinheiro
E felicidade
A gente não quer
Só dinheiro
A gente quer inteiro
E não pela metade
Bebida é água!
Comida é pasto!
Você tem sede de quê?
Você tem fome de quê?
Imagem de Rosy / Bad Homburg / Germany por Pixabay