A vingança é um prato que se come frio, por Gabriel Lopes Garcia

Tempo de leitura: 6 minutos

Gabriel Lopes Garcia

O assassinato brutal comoveu a cidade. A mãe do rapaz chorava seu luto e recebia apoio da sociedade. Sentindo o amargor de sua perda, a senhora recebeu uma proposta inusitada: um matador de aluguel se dispôs a matar o assassino de seu filho. O criminoso fez a oferta como um presente para a mãe enlutada. E faria de graça. Anotou seu contato em um pedaço de papel e entregou para a mulher. Bastava ela pedir e o serviço seria executado.

Essa história é verídica [1] e me provoca a reflexão: o que eu faria no lugar dessa mulher? E você que lê imagina o que faria na mesma situação dela? A mãe confessou que várias vezes se sentiu tentada a fazer o contato com o matador de aluguel e autorizar a execução. Não chegou a fazê-lo, pois rasgou o papel e jogou fora. Embora o desejo pela desforra que lhe apareceu por vezes no coração, ela afirma que não se arrepende da decisão.

Fraqueza humana

Esse caso revela um drama comum nas experiências dos Espíritos em processo de amadurecimento: o desafio de lidar com as injustiças e com quem as causa. Observo que, com frequência, apesar dos avanços conceituais do direito e da organização de um sistema punitivo formal, a Lei de Talião é a que prevalece em nossos nossos desejos e sentimentos. É de uma aplicação simples e parece atender aos nossos anseios por justiça. Isso é mais evidente quando nós ou pessoas queridas são vítimas e também no exame de crimes chocantes.

É claro que, como se trata de analisar comportamento humano, muitos fatores estão dinamicamente relacionados. Vivemos em um contexto desafiador, e a sociedade, cansada da impunidade, resolve trocar o senso de justiça pelo apoio ao justiçamento. É tentador apelar ao “olho por olho, dente por dente” na busca por atender demandas e problemas ignorados ou conduzidos de forma insatisfatória.

A popularidade política da violência policial e a prática de linchamentos são casos ilustrativos desse cenário. O abandono do Estado, a repressão da polícia, os desmandos do crime organizado e a seletividade do poder judiciário atuam como combustíveis para o exercício da vingança e dos métodos violentos de punição.

Combinam-se dentro de nós as inclinações para praticar o mesmo mal que alguém nos fez com as agitações do tecido social. Retomando o caso da mãe (do início do texto), eu não a julgo em sua vacilação. Deve ser muito tentador ceder à oportunidade de fazer justiça com as próprias mãos. Parece-me que para nós, no presente estágio de progresso espiritual, é difícil adotar uma conduta não violenta, não responder a um mal sofrido na “mesma moeda”, mesmo que a pessoa diga acreditar em alguma forma de justiça divina.

As lições da mesa mediúnica

O desejo de vingança pode ser tão forte dentro da criatura que ela o carrega ao mundo espiritual depois da morte. No intercâmbio mediúnico do qual participo semanalmente, é muito comum a manifestação de Espíritos endurecidos que estão executando desforra contra pessoas que os prejudicaram.

Eles geralmente se apresentam bravos conosco, pois estamos atrapalhando seus projetos de retaliação. Muitos deles inclusive nos ameaçam pela interferência considerada indevida. Estão revoltados e é comum que digam: “O seu deus me deixou sofrer injustamente”. Acusam a providência divina de abandono.

Esses diálogos têm muito potencial educativo para nós, caso saibamos retirar-lhes reflexões frutuosas. Primeiramente, observando o paradigma espírita, compete-nos recebê-los com respeito, compaixão e escuta atenta. É terapêutico falar de nossas mazelas em um ambiente emocionalmente estruturado, no qual nos sentimos acolhidos e compreendidos. Percebemos que o Espírito queixoso tem sua história e seus motivos, mesmo que discordemos de suas ações em resposta ao mal que sofreu.

Além disso, estou convencido de que nossa abordagem deve ser sincera, realista e sem condenar a conduta do Espírito. No diálogo franco e empático, vamos propondo um exame mais prudente da situação, sem moralismo. Demonstramos acolhimento da dor do Espírito e o orientamos relativamente às consequências que possivelmente colherá caso persista na perseguição de seu(s) adversário(s).

Um dos pilares da conversa é a postura de humildade dos encarnados, que nos reconhecemos com desejos semelhantes ao do Espírito vingativo. Não nos dirigimos a ele na condição de pretensa superioridade moral, mas na condição de um irmão em humanidade que compreende seus impulsos de vingança. Sabemos muito bem, por experiência própria, o que é esse fogo da revolta que arde no coração perante uma injustiça.

Portanto, buscamos ajudar o Espírito a raciocinar sobre a situação com mais ponderação, pois não estamos (via de regra) emocionalmente envolvidos no conflito. Por isso também é terapêutico para os encarnados, pois no diálogo vamos formulando novas compreensões das brigas entre as pessoas, vamos aprendendo a verbalizar e nomear sentimentos e descobrimos caminhos de reações que não passem por vingar-se do ofensor.

O retrato espiritual de amargor e empenho na vingança nos ensina sobre a diferença entre prazer e felicidade. O Espírito gosta da sensação oriunda do revide, fica mesmo satisfeito em espicaçar, torturar mentalmente, induzir ao suicídio. Nada obstante, mesmo quando completa seu projeto e come o frio prato da vingança, sente-se infeliz e vazio.

Finalmente, convém considerar que a vingança complica ainda mais a vida de quem a executa, pois além de permanecer com a questão original não resolvida, acrescentou o mal praticado contra o ofensor. Isso acarretará consequências ruins, pois ao “sujar as mãos” sob a justificativa de fazer justiça, haverá de sua parte de colher os resultados funestos de sua escolha.

Vigiar e Punir

Eu conduzi reflexões sobre as fronteiras entre justiça e vingança em alguns centros espíritas. Em uma dessas ocasiões, ao final da atividade, fui procurado por uma mãe aflita. Ela me relatou o seu sofrimento com o filho presidiário. As suas queixas se concentraram nas condições de vida dele lá e as desditas que vivencia toda vez que vai visitá-lo.

Ela fez um retrato típico da vida de um prisioneiro no Brasil: superlotação; condições precárias de higiene e de alimentação; carência de atendimento médico; alto índice de doenças contagiosas etc. Reclamou dos constrangimentos e humilhações que experimenta nos dias de visita. A senhora expressou muita tristeza e inconformidade com a situação e a indiferença alheia com os sofrimentos dos encarcerados e de suas famílias.

A narrativa dessa mãe é habitual e me questiono se um presídio brasileiro típico não é uma forma de vingança coletiva contra os criminosos. Já adianto ao mais afoito que não se trata de defender práticas criminosas nem de relativizar a ação daquele que matou, roubou, extorquiu, estuprou. Não se trata aqui de acobertar quem cometeu um crime e foi preso. A questão é discutir o que e por que fazemos o que fazemos com essas pessoas privadas de liberdade.

Um sistema prisional funcionando nesses moldes não tem qualquer efeito positivo na ressocialização dos condenados. Pelo contrário, se transforma em uma escola do crime e empurra muitos bandidos de baixa periculosidade para aumentar o contingente das facções. Mas penso que prevalece o gozo público, especialmente o do autoproclamado cidadão de bem, de ver sofrer quem perturba a sociedade com seus delitos.

Há uma autorização social, mesmo que ilegal, para o tratamento desumano a criminosos e/ou suspeitos. Acredito que isso se deve, em parte, ao desejo de vingança latente em nós e estimulado em muitas instâncias, principalmente nas mídias. A internet é uma indústria de dinheiro com conteúdos de ódio. Nesse caldo cultural, a resposta a quem fere a lei é um grande “dane-se!”. Que sofra bastante, pois prejudicou alguém. Na mentalidade vingativa, a justiça será feita se o criminoso sofrer horrores.

Eis um dos dilemas da vingança: qual punição é suficiente? Qual é o limite de penalidade para quem comete um crime hediondo? E o Espiritismo acrescenta uma camada de complexidade nessa discussão, pois evidencia a continuidade da vida do criminoso finda sua reencarnação. Esse sujeito retorna ao mundo espiritual provavelmente sem ter reparado seu erro. O que fazer com esse Espírito no além? Trancafiá-lo? Continuar alguma vingança contra ele? Sendo assim, a situação jamais se resolveria.

Duplicidade: entre valores proclamados e valores reais

A Doutrina Espírita aborda a justiça em uma perspectiva que considera a reencarnação como elemento central. E por princípios éticos, é contrária à prática da vingança, independentemente do que tenha acontecido. Formula-se o entendimento de que a justiça divina entrega a cada um segundo as suas obras, no mundo corpóreo como no espiritual. A nós compete praticar a virtude da justiça, isto é, respeitar os direitos de cada um, determinados pela lei humana e pela lei natural.

No entanto, essa clareza da posição filosófica do Espiritismo não implica, necessariamente, que seus adeptos sejam pessoas justas. Antes de sermos espíritas, somos Espíritos em progresso. Então é esperado, por um exame com os “pés no chão”, encontrar na comunidade dos espiritistas os mesmos desafios existenciais presentes na atual população terrestre.

Logo, espíritas também são pessoas que alimentam desejos de vingança e alguns até a praticam. Assim sendo, conteúdos do Espiritismo podem ser explorados de forma enviesada para acobertar intenções vingativas. Pode-se usar da ideia de reencarnação como ferrete a castigar os adversários. Ilustro essa mentalidade com duas modalidades.

1 — O que denomino vingança passiva: eu me refiro ao sentimento de alegria ou satisfação perante o dano ou infortúnio de um terceiro. Essa conduta está bem caracterizada na seguinte frase: “Aqui se faz, aqui se paga!”. A vantagem é poder saborear a desgraça do inimigo sem ter cometido nenhuma falta. Mas isso é um indício de atraso espiritual.

2 — O que denomino vingança reencarnatória: consiste em “planejar” as futuras expiações de alguém: pode ser um criminoso perverso ou uma pessoa que me prejudicou. A partir do sentimento de injustiça e de uma leitura superficial de reencarnação, constroem-se perspectivas sombrias para o Espírito: voltará muito doente, miserável, sem família etc.

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Fato é que a vingança envenena a alma e a acorrenta psiquicamente ao adversário, em pugnas que se arrastam, não raro, por várias reencarnações. Precisamos encarar com seriedade e sobriedade os nossos desejos vingativos, pois podemos fazer escolhas ruins a partir deles e causar muitos sofrimentos para nós. Sem dúvidas, é uma proposta desafiadora. A perspectiva espiritualista da existência contribui para novas interpretações dos eventos infelizes. Usemos dessa sabedoria a nosso favor. Abandonar projetos de vingança e não retribuir com o mal aquele que me praticou o mal já é um avanço significativo, é uma decisão inteligente e libertadora.

[1] Episódio 1 da série “Crime e Castigo” produzida pelo podcast Rádio Novelo. Sugiro fortemente que escute todo o conteúdo dessa temática.

Disponível neste link: https://radionovelo.com.br/originais/crimeecastigo/justica-seja-feita/

Agradeço a revisão de Priscilla Pellegrino e os comentários de Claudia Nunes.

Written by 

Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

2 thoughts on “A vingança é um prato que se come frio, por Gabriel Lopes Garcia

  1. Excelente texto! Uma racional reflexão sobre um assunto de grande importância para nos libertar de conceitos tão arcaicos ainda vigentes em nossa sociedade.
    Parabéns, Gabriel!

  2. Texto maravilhoso! Acredito que tenha vindo nessa encarnação para aprender isso com prioridade. E eu me esforço muito e aí percebo o quanto sou ainda um espírito difícil, com pouca evolução.

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