Acreditar é ético e racional?, por Marcio Sales Saraiva

Tempo de leitura: 5 minutos

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Por um bom debate aconteça entre fé e ciência.

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O livro “A ética da crença”, de W. K. Clifford, William James e Alvin Plantinga (Organização de Desidério Murcho e tradução de Vítor Guerreiro, Editorial Bizâncio, Lisboa, 2018) é uma pequena antologia que oferece uma “amostra de uma área da filosofia da religião conhecida por ‘epistemologia da fé’. Nela, estuda-se aspectos epistemológicos da crença religiosa, ou fé. Difere, por isso, de outras áreas da filosofia da religião, nomeadamente a área metafísica central, que trata da discussão dos argumentos a favor e contra a existência de Deus” (Amazon, 2024).

Em outras palavras, “trata-se de saber se haverá justificação para ter fé sem provas, argumentos ou indícios. Sem muita reflexão, muitos descrentes responderão que não; muitos crentes responderão, talvez também sem muita reflexão, que sim. Que razões haverá para cada uma destas posições?” (Clifford et. al, 2018, p. 3)

Murcho destaca três posições clássicas no campo da epistemologia da fé.

O primeiro é W. K. Clifford que no ensaio “A ética da crença” (1877) irá defender uma posição indiciarista, ou seja, é ilegítimo, do ponto de vista epistêmico, acreditar em algo sem provas ou indícios objetivos de que este algo é verdadeiro. Seu racionalismo o coloca como aliado de argumentos ateus ou ceticamente agnósticos.

O segundo autor é o pragmatista William James em seu clássico “A vontade de acreditar” (1896) onde critica os “excessos” de Clifford e defende uma posição antifundacionalista, ou seja, é legítimo acreditar em algo mesmo sem termos “provas” ou indícios rigorosos de que tal seja verdadeiro. Até porque, o conceito de verdade em James é muito diferente de Clifford e passa pelo consenso social, por aquilo que é útil e faz bem.

Por último, o ensaio do cientista e matemático Alvin Plantinga, “Será a crença em Deus apropriadamente básica?” (1981), que concorda com os pressupostos racionalistas de Clifford, defende a concepção fundacionalista (grosso modo, existem crenças básicas e naturais que não precisam de justificação) como central para a ciência, mas considera que crer em Deus é parte das crenças básicas dos seres humanos, portanto, para Plantinga, nada teria nada de irracional ou injustificável na fé em Deus.

O livro é ótimo e nasceu a partir das aulas de Filosofia da Religião que Desidério Murcho lecionou na Universidade Federal de Ouro Preto em 2009. Recomendo para aquelas e aqueles que já tem algum domínio no campo.

Cito algumas passagens do primeiro ensaio da obra, “Fé, epistemologia e virtude”, assinado pelo organizador.

“Uma perspectiva inicialmente plausível é defender que uma crença está justificada, ainda que seja falsa, desde que quem tem essa crença tenha sido epistemicamente virtuoso, ao invés de ser preconceituoso, tendencioso, preguiçoso ou pura e simplesmente falho de raciocínio. Nesta perspectiva, a justificação adequada não é primariamente uma propriedade das crenças, mas antes das atitudes epistémicas das pessoas; só derivadamente a justificação adequada é uma propriedade das crenças. Esta abordagem deu origem à chamada epistemologia das virtudes, que ao analisar o problema central da justificação epistémica põe a ênfase no carácter epistemicamente virtuoso ou não das pessoas, e não nas propriedades intrínsecas da justificação” (Clifford et. al, 2018, p. 24)

“Podemos então concluir preliminarmente que a fé não é conhecimento, nomeadamente porque a fé é infactiva [1] e o conhecimento é factivo. Mas esta não é a única razão. Mesmo que a fé implicasse conhecimento, nunca poderia ser conhecimento, constitutivamente, dada a diferença entre as fenomenologias da fé e do conhecimento. Vimos que a fé se assemelha ao conhecimento proposicional por envolver uma forte convicção, e que se assemelha ao conhecimento por contacto por envolver um aspecto testemunhal. Mas noutros aspectos a fé é profundamente diferente desses tipos de conhecimento” (Clifford et. al, 2018, p. 37).

“1. Acreditar que Deus existe.

  1. Não acreditar que Deus existe.
  2. Acreditar que Deus não existe.

Confunde-se por vezes 2 com 3. 2 é mais fraco do que 3, no sentido em que 3 implica 2, mas 2 não implica 3: quem acredita que Deus não existe, não acredita que Deus existe, mas quem não acredita que Deus existe pode não acreditar que Deus não existe. Suspender o juízo quanto à existência de Deus é rejeitar 1 e 3: é o que faz o agnóstico. O crente, claro, aceita 1 e rejeita as outras; o ateu aceita 3, o que implica aceitar 2, e rejeita 1. Estas relações lógicas dizem respeito a qualquer crença, e não especificamente à crença de que Deus existe” (Clifford et. al, 2018, p. 42).

“seremos crédulos se acreditarmos num testemunho que pressupõe que a outra pessoa tem um acesso privilegiado à verdade, no sentido forte. Isto é credulidade porque a pessoa poderá ser vítima de alucinação, ainda que seja sincera; ou poderá estar a mentir, por qualquer motivo” (Clifford et. al, 2018, p. 58).

“Um antídoto à credulidade é o seguinte: quanto mais gostaríamos que algo fosse verdadeiro, mais razões temos para ver cuidadosamente se é mesmo verdadeiro, ou se estamos a enganar-nos a nós mesmos, nomeadamente por sermos vítimas da superstição comum de que acreditar em algo muito firmemente contribui para a sua verdade” (Clifford et. al, 2018, p. 58).

“Porque somos falíveis, a virtude epistémica exige que estejamos dispostos a pôr em causa as nossas crenças, incluindo as mais queridas. E é difícil imaginar contextos epistémicos nos quais a falibilidade humana não seja evidente” (Clifford et. al, 2018, p. 66). Portanto, é importante rompermos com o comportamento “epistemicamente vicioso” daquelas e daqueles que só buscam acreditar no que confirmam suas próprias crenças.

E, por último:

“A diversidade epistémica é por isso saudável, e terá de ser acolhida com agrado por quem for epistemicamente virtuoso. Cada um de nós pode pôr em causa as ideias em que acredita, mas a melhor pessoa para o fazer é o nosso semelhante que desde o início não acredita nessas ideias. Assim, qualquer crente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os descrentes que argumentam contra a sua fé; e qualquer descrente epistemicamente virtuoso acolhe com agrado os crentes que argumentam a favor da fé. O valor epistémico da diversidade de opiniões é permitir que as ideias mais díspares sejam defendidas por quem genuinamente acredita nelas. E o primeiro sinal de vício epistémico é a falta de tolerância, que se revela na vontade de eliminar ou silenciar quem pensa de maneira diferente de nós, ou na manipulação da discussão, tornando-a um exercício performativo que visa cativar e seduzir, e não descobrir a verdade e detectar o erro” (Clifford et. al, 2018, p. 68).

Que estas sugestões possam ser úteis para que um bom debate aconteça entre fé e ciência.

ACREDITAR É ÉTICO E RACIONAL?

Nota dos Editores:

[1] Segundo o próprio Desidério Murcho, “A factividade é um termo da linguística. Um verbo, por exemplo, é factivo quando a oração encaixada representa algo como um facto. Ou seja, quando esse verbo implica o facto expresso pela oração encaixada. Por exemplo, o verbo “sonhar” não é factivo porque “O Asdrúbal sonhou com uma árvore” não implica a existência da árvore; mas “ver” é factivo porque “O Asdrúbal viu uma árvore” implica a existência da árvore. É neste sentido que o conhecimento é factivo: porque não faz sentido dizer que o Asdrúbal sabe que Lisboa é um país, porque Lisboa não é um país, é uma cidade. Mas a crença não é factiva, precisamente porque o Asdrúbal pode ter a crença de que Lisboa é um país” (MURCHO, 2024, s. p.). A infactividade, assim, é o oposto disto.

Referências dos Editores:

AMAZON. A ética da crença. Ebook Kindle. Anúncio. Disponível em <https://www.amazon.com.br/%C3%89tica-Cren%C3%A7a-Desid%C3%A9rio-Murcho-ebook/dp/B01E7IQOSM>. Acesso em 20. Jul. 2024.

MURCHO, D. Factivo, facticidade, factício e factitivo. Crítica na Rede. 30. Ago. 2008. Disponível em <https://criticanarede.com/factivo.html>. Acesso em 20. Jul. 2024.

Imagem de Pete Linforth por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “Acreditar é ético e racional?, por Marcio Sales Saraiva

  1. É importante acreditar, pois isso dá sentido à vida. Mas em que acreditar, se não em nós mesmos? Afinal, quem somos nós para acreditarmos em nós mesmos? Seria isso egocentrismo? Acreditar em Deus é como sonhar: uma necessidade real para a fisiologia da alma.

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