Alguns pontos questionáveis de “O livro dos Espíritos” (1), por Sidnei Batista

Tempo de leitura: 12 minutos

NOTA INTRODUTÓRIA DO ECK
Concebido em três partes, este estudo visa levantar questões acerca de pontos considerados questionáveis pelo autor, em relação à primeira obra de Kardec, “O livro dos Espíritos”. A intenção é apresentar refutações de cunho doutrinário direcionados a Espíritos fortes, livres-pensadores, emancipados de preconceitos, cuja morada intelectual é construída na rocha firme da razão científica.
Acompanhe, uma a uma, as partes. Reflita sobre os apontamentos nelas contidos. Sugerimos discuta os mesmos em seu grupo de estudos espíritas, permitindo o arejamento que só o contraditório propicia.
Espiritismo COM Kardec

PRIMEIRA PARTE
Neste tratado científico-filosófico, fruto de minha opinião pessoal, pretendo fazer algumas refutações de cunho doutrinário, isento da intenção de abalar as convicções de fé das almas frágeis e pusilânimes, atemorizadas que são em confrontar opiniões e críticas que possam divergir de suas crenças dogmáticas. Almas infantis, relutantes em encarar coisas que lhes escapam aos paradigmas inarredáveis aos quais se apegam tenazmente, cujo raciocínio orbita em torno de sua casa mental erguida sobre a areia movediça da fé religiosa cristalizada em ortodoxias da letra morta, sem o espírito vivificante da Razão. Com efeito, não é esta categoria de almas que busco para o diálogo, elas nada têm a oferecer para a liberdade de pensamento e de expressão.

Dirijo-me, em absoluto, aos Espíritos fortes, livres-pensadores, emancipados de preconceitos, cuja morada intelectual é construída na rocha firme da razão científica, convictos de que esta não desmoronará sob o assédio das tempestades, preparados que são para um mundo em constantes transformações. Espíritos robustos, que se sentem e se conhecem libertados das asfixiantes estruturas tenazes e ortodoxas do cristianismo, da Fé prevalecendo à Razão. Meu intento é incutir nas massas o fermento das ideias centradas no Espiritismo laico, total e irrefutavelmente livre do paradigma beatífico que culminou na criação do equivocado tríplice aspecto do Espiritismo: Ciência, Filosofia e Religião. Em minha opinião, no conteúdo holístico do Espiritismo prevalece unicamente o aspecto de Ciência. Ciência epistêmica do Universo e da Vida, da qual a Filosofia é complemento natural. Sem o suporte da Ciência, a Filosofia não se sustenta e não possui nenhuma razão de existir.

Neste trabalho teço alguns questionamentos a certos conceitos emitidos em “O Livro dos Espíritos”, conceitos, aliás, que devem ser objetos de análise crítica e racional, completa e totalmente isenta de ideias preconcebidas. Confesso que até a certa altura da minha vida eu absorvia sem espírito crítico os postulados doutrinários expostos por Allan Kardec e a equipe espiritual comandada pelo Espírito da Verdade. Conforme o jargão popular, muitas situações me “passavam batido”.

Mais amadurecido, comecei a prestar atenção e fui percebendo termos e definições conflitantes expostos por Kardec e pelos seus orientadores desencarnados. Aos poucos, em muitas respostas e explanações, saltaram-me aos olhos algumas divergências informativas sobre as leis naturais da progressão da Alma.

Em certas questões, não raro os espíritas se revelam tão ortodoxos e fundamentalistas quanto os profitentes das diversas denominações políticas, filosóficas e religiosas. A maioria dos adeptos aceita tudo sem questionamentos, ou se questionam, o fazem engessados em definições estreitas e limitadas ao sentido literal. Por isso, resolvi ir a fundo à procura dessas distorções e, aos poucos, elas me foram saltando aos olhos, distorções que denomino “pontos questionáveis de O Livro dos Espíritos”. Certamente causarão polêmicas e discordâncias no meio espírita. Sendo um livre-pensador racional, eu os classifico de controversos, por darem ensejo a interpretações dúbias. E o que é mais grave, fornece munições aos inimigos do Espiritismo para atacá-lo e acusá-lo de incoerente.

Quero expor os questionamentos numa dialética compreensível às classes distintas de leitores. Não ignoro, contudo, que suscitarão reações muitas vezes agressivas caso venham a cair em mãos preconceituosas e mal-intencionadas. Não faltarão os patrulhamentos inquisitoriais, que certamente anatematizar-me-ão acusando-me de pretender desvirtuar uma obra, segundo acreditam, “infalível, perfeita e completa”. No entanto, a meu ver, desde que é ministrada por Espíritos de distintos níveis de conhecimentos e de saber, a doutrina expressa n’O Livro dos Espíritos não é perfeita.

Antes que alguém venha apressadamente me censurar, sem conhecer minhas ponderações, previno que as faço com isenção de ânimo, não tenho a intenção de colocar em xeque qualquer ideia formulada pelos Espíritos encarregados da elaboração desse livro, e tampouco adulterar os textos de Allan Kardec a quem foi confiada a tarefa de organizar o Espiritismo neste Planeta. Sim, Kardec e a equipe espiritual realizaram aqui o mesmo trabalho que simultaneamente outros “Kardecs” e Espíritos realizavam nos orbes do mesmo nível de evolução, espalhados no Universo e nos inumeráveis Universos.

Por isso, em razão de minhas ideias pessoais, com o objetivo de desenvolver-lhes um sentido mais profundo, procurei apontar não apenas eventuais dubiedades, mas também algumas incongruências sobre assuntos que são complexos. Caso não sejam submetidos a um exame imparcial, levam fatalmente ao aviltamento das ideias. Não é a Fé que se sobrepõe à Razão, pelo contrário é a Razão que deve ser o condutor da Fé. A propósito, para refletir sobre a liberdade de opinião, transcrevo o pensamento do notável jurista Pedro Lessa: “O homem só deve render-se aos argumentos e convicções próprios, jamais a injunções alheias”.

Neste estudo, então, irei apresentar algumas inquirições analíticas de destacados itens do livro em tela que, a meu ver, apresentam controvérsias.

Evolução estacionária?
Um exemplo de ponto controverso: os Espíritos estacionam a evolução, interrompem temporariamente seu progresso ao chegarem a um determinado grau e permanecem estacionários por um tempo indefinido. Até que surja a necessidade de acompanharem as transformações do mundo que os rodeiam, eles retomam a caminhada. E, mais adiante, poderão novamente interromper a evolução, e assim por muitas e muitas vezes.

Para desmentir tal proposição, recorramos às leis físicas do “movimento retilíneo uniforme”, conhecido por MRU. Isso quer dizer que, não apenas as leis da matéria, como também as da Alma – sua criação, sua atuação e suas relações com a matéria, suas atuações interindividuais na sociedade, a reencarnação e a ascensão a estados superiores – tudo é regido pela Lei da Física. Sim, ouso admitir que nas leis espirituais também haja o MRU, regido pela Física espiritual. Sendo o Universo movido pelas leis mecânicas do movimento nada para. Portanto não há razão para afirmar que os Espíritos estacionam, uma vez que o movimento físico do Universo é efeito exatamente da ação inteligente da Alma. Com efeito, se o elemento inteligente age incessante na matéria em transformação contínua, não tem sentido este elemento interromper sua evolução. A progressão das coisas e das Almas se manifesta em perfeita sincronia homocinética, simulcadenciada uma em seguida à outra, anterior, como as ondas do mar a se quebrarem na arrebentação. Portanto, não tem fundamento a teoria de que alguns Espíritos atrasem seu progresso, enquanto outros prosseguem evoluindo sem obstáculos. Quem defende tal absurdo, não cogita que a Lei Natural está sendo violada. Sendo violada, a Lei não pode ser considerada perfeita nem imutável.

Sobre a Escala Espiritual Planetária
Contanto notável no contexto da época em que foi publicada, a bibliografia espírita encabeçada por “O livro dos Espíritos” foi ditada conforme a leitura que Kardec e os Espíritos fizeram do mundo que conheciam naqueles dias. Assim sendo, na condição de Espíritos de diferentes graus de desenvolvimento, em virtude da própria escala espiritual presente em nosso Planeta Terra da qual eles são participantes, todos eles (inclusive Kardec) nada mais fizeram do que emitir sua opinião pessoal acerca dos fundamentos da Doutrina, estes sim verossímeis e inquestionáveis por se assentarem nas Leis Naturais.

Portanto, classificar tais Espíritos como seres suprassumos no grau supremo de perfeição, atribuindo-lhes infalibilidade intelectual e moral é de uma presunção mesquinha. É, também, ao conferir-lhes tamanho distanciamento em relação a nós, confiná-los nos mistérios sobrenaturais do pós-morte. Não existe perfeição espiritual no grau supremo; esta é sempre relativa. Os distintos graus de desenvolvimento entre os Espíritos se devem, assim, em razão do tempo em que cada um existe, isto é, a “idade” de cada um, concernente ao seu “nascimento como Princípio Inteligente”, semelhante a um nascituro, acabado de ser concebido. Nas intermináveis transmigrações intelectuais e morais a que cada ser logra atingir, seus estados de consciência se alteram em perfeito sincronismo. Como dissemos tudo é relativo, nada é absoluto.

A percepção intelectual global de um indivíduo é circunscrita, pois, ao seu nível de conhecimentos e de alcance de compreensão que ele tem das coisas e da vida, concernente ao seu patamar evolutivo. Cada Espírito conhece as coisas do seu nível de experiências para baixo (de onde ele ascendeu), ao passo que as coisas que ultrapassam seu horizonte cognitivo ele as ignora totalmente. Quando muito, ele as pressente e, mesmo assim, somente as que estão mais adjacentes ao seu estado cognitivo, enquanto as mais distantes, ele nem suspeita que existam. De acordo com o patamar evolutivo, então, ele expressa suas idiossincrasias e juízos de valores em linguagens muitas vezes repletas de símbolos, revelando o atavismo das suas culturas ancestrais adquiridas e assimiladas, a lhes emergirem do inconsciente subliminar.

Por isso, as diferenças de níveis entre Espíritos presentes em uma mesma sociedade é proporcional à sabedoria e à capacidade intelecto-moral deles, tanto que numa das obras literárias que compõem a Codificação Espírita, podemos encontrar ensinamentos de alta elevação, envolvendo questões científico-filosóficas de ordens variadas e de beleza invulgar. Isto demonstra que os distintos conceitos acerca de determinado assunto ou problemática, procedem de inteligências de maiores graduações evolutivas. Por outro lado, na mesma obra, constata-se Espíritos que emitem conceitos de menor qualidade, num nível mais superficial, também mostrando que estes trazem ainda fortemente impregnados no inconsciente os atavismos remanescentes das religiões e das ideologias que professavam, dos quais ainda guardam resíduos. Todavia, nestes intercurso de relações de níveis distintos, “o discípulo jamais será maior que o mestre”, tanto quanto o nível do mestre não poderá ser muito distante daquele do discípulo.

Além das distintas capacidades de interpretação da parte dos Espíritos, o problema de tradução de suas falas, escritos e suas opiniões não deixa de ser um entrave nas obras escritas num idioma e, depois, traduzidas para outro(s). Ao ser vertido para outra língua, o texto original acaba sofrendo distorções. Palavras e expressões idiomáticas, exclusivas de um povo, por vezes não possuem termos similares ao idioma a que a tradução se destina. No caso em questão, as obras básicas da Codificação Espírita foram escritas de acordo com a ortografia francesa do século 19, de sorte que muitos termos – e até mesmo períodos gramaticais usados na época – sofreram alterações e prejuízo à compreensão, ao serem traduzidos para o português do século 20.

Obviamente, também “O livro dos Espíritos” enquadra-se nesse contexto, assim como qualquer outra obra, independente da qualidade e do estilo com que é escrita. A “Bíblia”, o “Corão”, “Os Vedas” e “A Divina Comédia”, por exemplo, contêm grandes verdades e belezas de estilo literário. Foram, porém, redigidos de acordo com os paradigmas e os conhecimentos relativos ao grau de desenvolvimento espiritual de seus autores, dentro de um contexto histórico numa determinada época. Concernente ao Espiritismo é a mesma coisa: Espíritos de diferentes classes e ordens evolutivas participaram conjuntamente da elaboração dos livros da Codificação Espírita, onde cada um contribuiu expondo suas opiniões, de acordo com seus conhecimentos, capacidades e aptidões. Contudo, como dissemos, todos sem exceção participam da escala espiritual planetária, estratificada em camadas progressivas entre um piso e um teto, conforme é citado exemplificativamente nos itens de números 100 a 113 da primeira obra de Kardec.

As Transmigrações Progressivas
Pela teoria espírita, todos os seres do Universo estão submetidos ao ciclo de gradativas transições entre os estados inferiores e os estados superiores de inteligência, compreendendo ampla variedade de conhecimentos e saberes intelectos-morais, desde os que estão se individualizando na criação elementar até aos chegados a graus gigantescos de desenvolvimento espiritual, que jamais terá um termo. Na dicção da obra primeira: “É assim que tudo serve, tudo se encadeia na Natureza, desde o átomo primitivo até o arcanjo, pois ele mesmo começou pelo átomo”.

O sofista Protágoras de Abdera, um dos precursores do Espiritismo, possui uma perfeita correspondência com tal concepção, ao dizer que “o homem é a medida de todas as coisas, das que são enquanto são, e das que não são enquanto não são”. Endossando o pensamento do filósofo, sabemos que cada Espírito da plêiade encarregada da Codificação ditou conceitos doutrinários na exata medida de seus conhecimentos desenvolvidos ao longo de sua vida existencial.

Nas 1019 perguntas e nas 193 subperguntas, totalizando, então, 1212 questionamentos na obra em comento, uma quantidade considerável delas traz a linguagem e conceitos repletos de simbolismos extraídos de paradigmas atávicos, muitos de cunho religiosos. Essa é a razão de, em diversos trechos de “O livro dos Espíritos”, como, também, em “O evangelho segundo o Espiritismo”, alguns Espíritos se referirem à cólera divina e às sentenças implacáveis decretadas por Deus; outros, com a mais tranquila naturalidade, aludem à permissão ou à proibição aleatória de Deus, em determinadas condições, como se Deus fosse uma autoridade agindo ao arbítrio de seus humores, um Deus antropomórfico e antropopático, tão ao gosto da epifania judaico-cristã difundida na Bíblia.

O Bem e o Mal
No item “99”, de “O livro dos Espíritos”, Kardec pergunta: “Os Espíritos da terceira ordem são todos essencialmente maus?”. E as Inteligências Invisíveis, a ele respondem: “Não; uns não fazem bem nem mal”.

Ora, “não fazem bem nem mal”, é possível isso? A resposta tem consistência fundamentada na razão? Para mim não tem, por não ser possível existirem indivíduos amorais entre os seres inteligentes. Em minha opinião, em qualquer época da Humanidade, ou mesmo da Eternidade, nunca existiu, não existe e jamais existirá um Espírito neutro. A menos que seja um robô sem vida, completamente destituído da faculdade de pensar. Portanto, enquanto Espírito, tal não existe. Os próprios Espíritos dizem que quem não faz o bem por si só já faz o mal, o que, de certa forma, nos parece uma indefinição relativa, por estar no limite do aceitável, em razão de haver pontos mais importantes com que nos preocuparmos. A meu ver, Espíritos dessa ordem são rudimentarmente simples e ignorantes, não possuindo a noção de valores em termos de moral, de bem nem de mal. Mas nada impede que tenham atitudes e maneiras de ser que afetem, positiva (bem) ou negativamente (mal), o seu meio social e o ambiente onde vivam. É por essa via, então, que eles gradualmente vão despertando para sua individualidade.

Complementarmente, baseando-nos na questão “191”, os Espíritos recém-egressos do estado de animalidade grosseira, estão na infância relativa embora sejam almas já desenvolvidas. Comportam-se, assim, como seres brutos dotados de paixões, de instintos selvagens e ferozes. Interagem no meio-ambiente com seus semelhantes guerreando uns contra os outros, cultivam a antropofagia natural como mostra, também, a questão “787b”.

O Destino
Na questão “115”, sobre serem, os Espíritos criados bons e outros maus, Kardec recebe uma resposta da qual extraímos um trecho: “(…) Uns aceitam essas provas com submissão e chegam mais prontamente ao seu destino; outros não conseguem sofrê-las sem lamentação, e assim permanecem, por sua culpa, distanciados da perfeição e da felicidade prometida”. Faço, então, duas considerações notadas neste contexto, a seguir.

1ª) “Prontamente ao seu destino”: O que se entende por chegar “prontamente ao seu destino”, uma vez que não existe propriamente um destino a ser atingido, se na linha da evolução partindo do átomo os seres evolvem eterna e infinitamente, jamais encontrarão um limite final? Ora, a questão estaria resolvida caso o destino fosse uma meta no final dum espaço a ser percorrido, algo como uma competição esportiva limitada a uma extensão mensurada, na qual um número definido de atletas disputassem uma corrida de cem, duzentos, trezentos metros rasos. Embora todos tenham iniciado a prova ao mesmo tempo, os atletas chegarão seguidamente em primeiro, segundo, terceiro, até o último lugar, de acordo com sua velocidade e resistência. Evidentemente, aí sim, neste contexto, será possível conhecer os vencedores das provas que subirão ao pódio.

Todavia, não é assim que as coisas funcionam nas leis espirituais. Graças à tradição de premiar campeões, de conferir-lhes honrarias, o homem comum analisa as coisas sob o ponto de vista estreito e imediatista do mundo terreno em que vive. Imagina, então, que na “espiritualidade”, o critério é o mesmo. Erroneamente, ele acredita em alguns são naturalmente melhores, mais civilizados, mais cultos e moralmente superiores que outros, enquanto outros naturalmente são piores, bárbaros, ignorantes e moralmente inferiores.

Evidentemente, não estou me referindo a homens, contados demograficamente num breve período de vida entre o berço e o túmulo. Refiro-me a Almas imortais, “nascidas em tempos diferentes, compondo gerações distintas”. As gerações existem em quantidades numericamente infinitas, estratificadas ilimitadamente na escala universal. Esta escala evolutiva universal não tem começo nem fim, segundo a questão “78”. Na evolução espiritual, Espíritos de uma geração mais jovem jamais ultrapassarão os da geração predecessora, mesmo que a diferença entre uma e outra seja uma mísera “fração de segundo”. O raciocínio é o mesmo aplicado na condição humana: duas crianças, uma nascida imediatamente depois da outra, jamais igualarão a idade, num perfeito sincronismo: a primeira será sempre mais velha que a segunda. Em minha opinião, este é o verdadeiro sentido da afirmação de Jesus: “o discípulo jamais será maior que seu mestre”.

Não há, então, Espíritos distantes da perfeição, pois todos são perfeitos no estágio em que estiverem, em qualquer grau de evolução. A perfeição é relativa exatamente porque o progresso espiritual é interminável; jamais cessará. Também não é verdadeiro que haja Espíritos da mesma idade – criados na mesma geração – que progridem mais rápido uns, menos rápidos outros, que seus companheiros. É incorreto afirmar que Espíritos mais jovens ultrapassem os mais velhos que lhes estavam à frente, fazendo-os “comer poeira”. A tese do estacionamento de alguns Espíritos não tem base racional espírita, uma vez que na interminável escala existencial dos seres inteligentes, os mais jovens seguem as pegadas dos mais velhos que os antecederam na Criação. Por mais que recuemos no passado ou avancemos mentalmente no futuro jamais chegaremos a um ponto onde tudo começou, antes do qual nada existia e jamais chegaremos a um ponto final onde tudo cessa definitivamente, após o qual nada mais existirá. A que altura da lei de progresso é possível, então, demarcar o limite fatal para todos, além do qual nada mais haverá para progredir?

No exato momento em que uma geração espiritual começa a existir, esta passa a ocupar em escala ascendente as idades das gerações que a antecederam, as quais já estão avançando num movimento sincronizado de simulcadência homocinética. No infinito pretérito, gerações de Princípios Inteligentes antecederam a outras gerações, o que vem explicar o sentido da questão “130” de “O livro dos Espíritos”, sobre como os “anjos” como são vistos pelas gerações mais jovens.

Então, onde situariam os Espíritos retardatários de todas as gerações, aqueles que, por preguiça ou fragilidade de ânimo, no uso de seu livre-arbítrio, teriam se tornado estacionários na sua evolução? Isso não existe, além de contradizer a dinâmica sincronizada do desenvolvimento dos Espíritos, esta ideia é absurda. Na lei natural tudo é movimento contínuo, sem intermitências, no Universo e na Vida. Caso houvesse estacionamento ou atraso de alguns Espíritos a lei divina perde seus atributos de eternidade e infinitude.

2ª) “Distanciados da perfeição”: Em primeiro lugar, formulo algumas perguntas, colocando em xeque a afirmação dos Espíritos:
1ª – Dentro do conceito de eternidade e de infinito, é possível mensurar a extensão, o volume e o peso das potências espirituais de alguns Espíritos para considerá-los distanciados da perfeição?
2ª – A perfeição é absoluta ou é relativa?
3ª – Haverá um ponto final onde se pode afirmar que um Espírito atingiu à perfeição suprema, a perfeição máxima após a qual não mais prosseguirá?
4ª – Considerando que, mesmo com uma diferença de um “nano grau” de uma linha simétrica entre duas gerações de Espíritos, haverá à retaguarda da inferior uma interminável cadeia regressiva de indivíduos que seriam considerados imperfeitos?
5ª – E, no mesmo contexto, onde situar o grau máximo de perfeição para definir a “felicidade prometida”? Em que ponto exato atingiremos a culminância do progresso, que nos determinará peremptoriamente o grau supremo, nada mais havendo para avançar?

Entendemos que supremo é o que está acima de tudo, é o derradeiro ponto que se pode atingir, e do qual, depois, nada mais haverá. Ora, só em afirmar que a perfeição é suprema, já está declarado que ela é finita, porque parou. Com esta declaração, cai por terra a concepção infinita da Episteme Espiritual do Universo, que pela simples lógica de ser episteme determina o progresso eterno, uma vez que ela é o corolário intrínseco da perfeição absoluta das leis divinas, que trazem em si inumeráveis atributos, dos quais destacamos cinco: eternidade, infinitude, imobilidade, unicidade e imutabilidade.

Semelhante ao movimento do pêndulo de um relógio, oscilando de um lado para outro, marcando o compasso do tempo, entre o relativo e o absoluto há sempre uma sincronia de compasso jamais interrompido. O relativo é absoluto enquanto relativo, da mesma forma que o absoluto é relativo enquanto absoluto, uma vez que será transposto e ultrapassado no espaço de relativo. Na eternidade tudo obedece às leis universais em perfeita harmonia, tudo é movimento no Universo e na Vida, não há solução de continuidade. Em qualquer grau da cadeia, os Espíritos são perfeitos, desde os elementares Princípios Inteligentes iniciando a evolução aos mais graduados que consigamos imaginar. Todos, proporcionalmente, são tão perfeitos, uns em relação aos outros. Sendo todos os seres da Criação perfeitos no grau em que estiverem, o termo distanciado da perfeição não é coerente com os fundamentos do Espiritismo.

Imagem de Paul McGowan por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

11 thoughts on “Alguns pontos questionáveis de “O livro dos Espíritos” (1), por Sidnei Batista

  1. Lucidez!
    Somos seres lucigênicos e nossa capacidade de pensar é incomensurável!
    Obrigada por vir ao encontro de tantas dúvidas, que, como não via eco em nenhum espaço de convivência, acabei me calando e permanecendo na angústia.

    1. Valéria Cristina de São Thiago Ledoux, antes de tudo venho pedir-lhe mil desculpas pela demora em comentar o seu comentário. Mas aqui estou eu. Diz você “que como não havia eco em nenhum espaço de convivência, acabou se calando e permanecendo na angústia”. Pois eu lhe digo, cara amiga, em verdade em verdade eu lhe digo, não se cale, erga sua voz, liberte-se e não deixe a angústia invadir sua casa. Não se cale, fale o que você tem que falar, porque se você se calar as pedras falarão por você. Um abraço.

  2. Parabenizo o autor pela coragem de expor pontos de vista contra-hegemônicos, o que é fundamental para o desenvolvimento do Espiritismo. Parabenizo-o, sobretudo, por firmar uma posição clara a respeito de uma questão que é basilar a quem estuda Espiritismo: “Não é a Fé que se sobrepõe à Razão, pelo contrário é a Razão que deve ser o condutor da Fé.” Excelente.

    Não posso, entretanto, concordar com a maneira como a questão foi apresentada, como simples “pontos questionáveis” na obra kardequiana. Ao mesmo tempo que o autor pondera que o texto retrata uma determinada época, ele quase critica os autores do texto por estarem inseridos na sua época. Estudar Allan Kardec requer uma contextualização bem mais consistente, que supere, por exemplo, a crença que o autor transparece neste trecho:

    “…a quem foi confiada a tarefa de organizar o Espiritismo neste Planeta. Sim, Kardec e a equipe espiritual realizaram aqui o mesmo trabalho que simultaneamente outros “Kardecs” e Espíritos realizavam nos orbes do mesmo nível de evolução, espalhados no Universo e nos inumeráveis Universos.”

    Qual a base racional para uma afirmação dessa magnitude? A fé? Onde a razão que deve orientar os passos da fé? Não vejo como partir de um pressuposto dessa natureza.

    Outro ponto importante: Qual a base lógica para se aplicar princípios da Física (MRU), que trabalha com matéria inanimada, a seres pensantes? E quais elementos oferecem sustentação à ideia de que a evolução espiritual se processa como um “movimento retilíneo uniforme”? A inteligência, a vontade e o livre-arbítrio não são elementos que escapam a esse tipo de comportamento observado nos domínio da matéria? A simples ideia de que existem “leis”, que é uma ideia humana, fornece elemento suficiente para isso? Por que não considerar as ciências sociais e humanas nesse tipo de reflexão?

    Reafirmo a importância desse tipo de debate e os meus parabéns ao autor por sua coragem. É por acreditar nesse tipo de diálogo que escrevi o livro Contextualizando Kardec: do séc XIX ao XXI, onde abordo essas questões por outra ótica, a da análise do contexto sócio-histórico em que a obra foi escrita e suas correlações com a atualidade. Penso que Contextualizar Kardec, em vez de criticar-lhe a obra, nos conduz a um caminho mais seguro para um melhor entendimento da proposta espírita.

    Abraço a todos.

    1. Caro Elias Inácio de Moraes, creio que você partícipe do grupo ECK. Por isso peço-lhe, se for possível, que você transcreva este seu comentário para o Facebook. Assim, poderei responder por lá, de maneira que o maior número de pessoas possam visualizar. Porque é lá, no Facebook, que os leitores eckanos têm maior acesso. Se não for incomodo para você. Desde já agradeço.

  3. Caríssimo, em primeiro lugar louvo a sua iniciativa. Toda a discussão em torno da doutrina espírita, quando feita com elevação, resulta sempre em aprendizado e aprimoramento.
    No geral, comungo dos seus pontos de vista, e penso ser muitíssimo importante realçar que as obras da codificação são produtos da sua época, e que se fossem hoje escritas seriam necessariamente diferentes. Além disso, a ideia de que seriam obras “infalíveis” contraria a evidência de que foram escritas por médiuns imperfeitos que deram abrigo a comunicações de espíritos, também a seu turno, imperfeitos.
    Sem mais, deixe-me então trazer os pontos em que não concordo com o que escreveu. Primeiro, e este é um ponto de pormenor, não me identifico com uma proposta de espiritismo “laico”; eu próprio autointitulo-me de espírita “cristão”.
    Segundo, esta passagem (“Isso quer dizer que, não apenas as leis da matéria, como também as da Alma – sua criação, sua atuação e suas relações com a matéria, suas atuações interindividuais na sociedade, a reencarnação e a ascensão a estados superiores – tudo é regido pela Lei da Física”) carece de fontes. E para mim, pelo menos, contradiz de forma perentória uma dos atributos básicos do espírito: o livre-arbítrio.
    Ora, se todos os estados em que a alma está, ou seja, todas as ações, pensamentos, emoções, etc. são regidos exclusivamente por leis físicas, elas são inevitáveis, e não dependem, verdadeiramente, da vontade do espírito. Esta vontade, na verdade, nem sequer existe, porque dependerá, ela também, das interações físicas que o espírito experimenta.
    Neste caso, tanto vale ter alma como não ter. No extremo chegaríamos à doutrina determinística, que equivale, para o caso, ao materialismo.
    Em resumo, se o espírito não pode estacionar no seu progresso, não tem livre-arbítrio. Se não pode escolher não avanção, não tem vontade própria.
    É também bastante possível que a minha leitura tenha dado uma interpretação errada daquilo que escreveu. Se assim for, aguardo os desenvolvimentos do seu raciocínio. Mas a leitura da última parte (“O Destino”) parece-me apontar para esta linha de raciocínio.

    1. Caro Alexandre Mano, creio que você partícipe do grupo ECK. Por isso peço-lhe se for possível que você transcreva este seu comentário para o Facebook. Assim, poderei responder por lá, de maneira que o maior número de pessoas possam visualizar. Porque é lá no Facebook que os leitores eckanos têm maior acesso. Se não for incomodo para você. Agradeço-lhe.

  4. Uma verdadeira pérola. Aqui no ECK, podemos encontrar espíritos vanguardistas que estão à frente do seu tempo. Aguardo mais e entretanto vou lendo, relendo e aprendendo, com apreciações que não encontro em mais lado nenhum. Gratidão Sidnei por partilhar os seus estudos connosco.

    1. Querida Rosário, peço-lhe se for possível, que você transcreva este seu comentário para o Facebook. Assim, poderei responder por lá, de maneira que maior número de leitores possam visualizar. Porque é lá no Facebook que as pessoas têm maior acesso. Se não for incomodo para você. Desde já agradeço. Beijos.

  5. Estimado Sidnei. Li e reli suas opiniões sobre o rumo atual que deve ser dado ao Kardecismo. Percebi ser você uma pessoa culta e com grande cabedal de conhecimento. Kardec comentou que essa era uma doutrina dinâmica e não estática. Como você disse o mundo mudou muito e faz muito tempo que a doutrina foi codificada. Então com todo respeito sugiro que você crie uma nova doutrina. No meu humilde modo de ver não existe Espiritismo Laico. Kardec sem Jesus não é Kardec. Um fraterno abraço. Dr. Ricardo Sallum AME- SANTOS.

    1. Ricardo Sallum, venho agradecer-lhe pelas suas palavras atribuindo-me um grande cabedal de cultura e conhecimento, pelos quais eu me pauto pela ausência de falsa modéstia,. Não sou modesto, aliás eu fujo de pessoas “humildes, virtuosas”, são estas tão ou mais perigosas que as pessoas arrogantes, orgulhosas, vaidosas porque estes se mostram tais quais são, sem máscaras. Não foram estes que Jesus se empenhou em criticar. Jesus batia forte nos falsos moralistas, chamava-os de hipócritas, aqueles que ostentam longas vestes de púrpura, recitam salmos, louvações e oram nas sinagogas para serem admirados como virtuosos enquanto assolam as casas das viúvas. Mas, não sendo eu nada modesto, reconheço minhas limitações em virtude de minha estatura, não me jugo melhor que ninguém. Você sabe, é a estatura de uma pessoa que lhe permitirá espraiar seu “olhar” até os limites do horizonte a que ela possa vislumbrar. Uso a metáfora do horizonte físico para levar ao entendimento do horizonte cognitivo da Alma, que se dilata e amplia à proporção que esta cresce em Ciência e Sabedoria. Todo mundo contempla o horizonte que lhe é próprio. A Doutrina, não é estática, é dinâmica exatamente por força das potencialidades da Alma a se expandirem e se multiplicarem, tal e qual o processo da mitose dum protoplasma. A respeito de sua objeção ao Espiritismo laico, isso é questão de foro íntimo, individual e pessoal. Eu pessoalmente penso e admito o Espiritismo laico, isento o mais possível de dogmas, de religião. Me reconheço muito mais técnico do que teórico, o teórico se vale da radicalização fideísta da fé, enquanto o técnico sustenta seus fundamentos na Razão, que se faz pela observação da realidade existencial das coisas, dos seres, das Alma e dos Espíritos. Outros não, a maioria o vê uma religião. O Espiritismo é o que cada pessoa faz dele. Léon Denis cunhou esta frase “o Espiritismo se´ra o que o fizerem os homens”, frase que se veste de profunda exegese, conquanto ele usara o verbo ser conjugado na terceira pessoa – “será” -, Denis alude ao tempo presente – o eterno presente – conjugado na primeira pessoa: “EU Sou”. Você diz também que Kardec sem Jesus não é Kardec. Meu amigo, é a sua opinião, a qual eu respeito, é direito seu em crer dessa forma, mas não é a minha opinião. Eu, pessoalmente, penso que sem os Espíritos Kardec não seria Kardec, independentes de serem eles Jesus, João, Pedro ou Maria. O Espiritismo se funda na existência dos Espíritos, se Jesus – que é um Espírito – não existisse não mudaria em nada a ordem natural do Universo. Jesus não é o protótipo da progressão espiritual, ele é apenas um modelo – não é o único, há os iguais a ele como há uma infinidade de modelos de graus abaixo dele da mesma forma que há uma infinidade de modelos de graus acima dele – na escala espiritual infinita, conforme a representação simbólica da “escada de Jacó”. Sobre sua sugestão de eu criar uma nova doutrina, eu não preciso criar, exatamente pelos motivos acima expostos. Kardec e os Espíritos criaram o Espiritismo pela forma pessoal de como eles entendiam e conheciam os princípios rudimentares das Leis Naturais da Alma/Espírito em suas relações, ações sobre a matéria, com a matéria e através da matéria, das quais resultam as consequências intelectuais e morais, como dizem os Prolegômenos: “o homem quintessencia o Espírito pelo trabalho e tu sabes que não é senão pelo trabalho do corpo que o espírito adquire conhecimentos”. Um abraço.

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