Allan Kardec, o chefe druida, por Mauro Quintella

Tempo de leitura: 6 minutos

Por Mauro Quintella

Na foto Imagem da estrutura de Stonehenge, na Inglaterra, imagem de Sally Wilson por Pixabay.  Evidências sugerem que os druidas encontraram os círculos de pedra e os utilizaram com fins religiosos.

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Os chefes druidas não limitavam sua ação à religião, acumulando a função de juízes, professores, médicos, conselheiros militares e guardiões da cultura céltica. O cargo não era exclusivo dos homens, pois também existiam druidesas. Entre eles estava Allan Kardec.
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Influenciados pela moda que varria a França, os Baudin (Émile-Charles, Clémentine e as filhas Caroline e Julie) começaram a conversar com uma mesa girante em 1853, quando ainda moravam na colônia francesa da Ilha da Reunião, na costa oriental da África. Como em outros lugares, logo constatou-se que a mesa era movida pelas almas dos mortos.

Depois de algum tempo, as reuniões passaram a ser dirigidas por um Espírito, que se apresentou como o guia espiritual da família. Interrogado a respeito do seu nome, o ser invisível respondeu: – Chamem-me pelo que sou, o zéfiro da verdade.

Zéfiro era o nome de um vento típico da região. O apelido pegou.

Certa noite, o guia previu que seus protegidos mudariam brevemente para Paris: – Émile arrumará seus negócios e entrará na Escola Naval. Caroline e Julie tomarão professoras mais competentes e encontrarão seus noivos. E eu procurarei contato com um velho amigo e chefe, desde o nosso tempo de
druidas.

Nessa época, os Baudin não tinham a menor intenção de morar na França. No entanto, uma crise no comércio do café e do açúcar, principais produtos das atividades agrícolas e comerciais de Émile-Charles, obrigou-os a mudar para a Corte em 1855. Zéfiro os acompanhou. Ou foi o contrário? As reuniões continuaram em Paris. Numa noite, Zéfiro escreveu: – Nosso dia de glória já chegou.

O Sr. Baudin pediu mais explicações. O espírito amigo respondeu: – Vamos ter, afinal, o convívio de nosso velho chefe druida!

– Aquele que você esperava encontrar em Paris?

– Sim, ele mesmo, em pessoa. Você vai trazê-lo aqui. Caroline vai
atraí-lo.

– Você pode me dizer o nome dele?

– Allan Kardec!

Émile achou o nome estranhíssimo e deu o diálogo por encerrado.
As sessões dos Baudin davam-se num clima de total descontração e sem
qualquer formalismo.

Na hora combinada, a casa enchia-se de curiosos, convidados pela família
ou recomendados pelos amigos do clã.

Nessa época, os Espíritos já tinham abandonado as mesas girantes e se comunicavam através da psicografia indireta, escrevendo num quadro de ardósia (uma lâmina de pedra, portátil). Caroline, Julie e Clémentine funcionavam como médiuns, segurando uma cestinha de vime (corbelha, do francês corbeille), em cujo bico amarravam um lápis de pedra.

Os participantes faziam perguntas, que eram respondidas na ardósia e lidas em voz alta. Após a leitura das respostas, seguiam-se comentários nos mais diversos tons, revelando o espanto de uns e o contentamento de outros.

Zéfiro, o dirigente espiritual da casa, gostava de pilheriar e alfinetar os consulentes antes de dirigir-lhes a palavra.

Certa noite, o Sr. Denizard Rivail, educador lionense radicado em Paris, compareceu à reunião, acompanhado de sua esposa, Amelie Boudet, a convite do próprio Émile-Charles. O pai Baudin os havia conhecido numa sessão de mesa girante na casa da Sra. Planemaison, na qual Rivail aprofundava seu recente interesse pelos fenômenos espíritas.

O Espírito guia dos Baudin os recebeu efusivamente, saudando o professor com as seguintes palavras: – Salve, caro pontífice, três vezes salve! Lida em voz alta, a saudação arrancou risadas da plateia.

O Sr. Baudin, meio envergonhado, explicou a Rivail que Zéfiro era muito espirituoso e tinha o costume de brincar com os visitantes. O professor não
se agastou e respondeu sorrindo: – Minha bênção apostólica, prezado filho!

Nova risada geral. Zéfiro, porém, redarguiu que tinha feito uma saudação respeitosa, a um verdadeiro pontífice, pois Rivail havia sido um grande chefe druida, no tempo da invasão da Gália pelo Imperador Júlio César. Os druidas eram os sacerdotes do povo celta, uma etnia que habitava várias extensões da antiga Europa.

Essa área compreendia Portugal e Espanha (a oeste), a Cordilheira dos Cárpatos (a leste), a Bélgica (ao norte) e a Itália (ao sul), passando pela
Irlanda, Inglaterra, País de Gales, Escócia, França, Dinamarca, Suíça, Áustria e Alemanha.

Imagem de Druida, gerada em IA, por Land_of_Books_YouTube, do Pixabay

Júlio César invadiu a Gália (atual França) no Ano 58 a.C. e denominou os celtas locais de gauleses. Segundo Zéfiro, ele e Rivail estavam reencarnados nessa época e local.

O termo druida quer dizer consciência do carvalho, a árvore sagrada dos celtas. Os futuros sacerdotes, escolhidos na classe aristocrática, submetiam-se, desde crianças, a intenso aprendizado junto aos druidas mais velhos.

Os chefes druidas não limitavam sua ação à religião, acumulando a função de juízes, professores, médicos, conselheiros militares e guardiões da cultura céltica. O cargo não era exclusivo dos homens, pois também existiam druidesas.

Viviam integrados na comunidade e podiam se casar. Estimulavam os homens a combater o mal e a praticar bravuras e as mulheres a serem o ponto de união  entre o céu e a terra. Júlio César os perseguiu duramente porque insuflavam
a resistência ao domínio romano. Segundo o próprio Imperador, foi na Gália que ele viveu a mais árdua de suas campanhas.

Os celtas dominavam diversas áreas do conhecimento humano, como a fitoterapia, a agricultura, a tecelagem, a mineração, a cerâmica, a pecuária, a metalurgia e a astronomia. Inventaram a roda de madeira, o barril e a carroça. No campo artístico, cultivavam a música, a poesia, a escultura, a ourivesaria e a joalheria.

O que unia os povoados, vencendo as grandes distâncias que os separavam, não era a obediência a um único rei, mas a língua, a arte e a religião. A filosofia religiosa dos celtas era muito avançada.

Acreditavam numa Divindade única, que podia ser cultuada como homem (Deus ou o céu) ou mulher (Deusa ou a terra). Como não admitiam templos, seus cerimoniais eram realizados ao ar livre, nos campos e florestas, debaixo de grandes carvalhos.

Além disso, criam na imortalidade da alma, na reencarnação, no livre-arbítrio, na lei de causa e efeito, na evolução espiritual, na inexistência de penas eternas, nas esferas espirituais, na existência de elementais (duendes, fadas, gnomos, etc.) e na proteção dos Espíritos Superiores.

Um celta não morria, pois a morte era apenas um ponto no meio da estrada.

Só houve uma coisa negativa: os druidas proibiram a palavra escrita como instrumento de preservação da história céltica, por temerem que textos escritos caíssem em mãos escusas.

Por isso, todo o conhecimento desse povo era transmitido oralmente e se perdeu muito no decorrer dos séculos.

Com a queda do grande chefe Vercingetórix, no ano de 52 a.C., toda a Gália acabou rendendo-se, pouco a pouco, aos exércitos romanos, mais treinados e portadores de armas mais leves e manejáveis. No final do Século I a.C., todos os domínios celtas, exceto a Irlanda e a Escócia, estavam submetidos à Roma. A falta de unificação política, geográfica e militar das tribos também colaborou para o sucesso de Júlio César.

Com a forte repressão política aos druidas, movida pelo Imperador, a cultura céltica foi perdendo sua força e, no final do Século I d.C., a quase totalidade dos celtas estava “romanizada” ou misturada à multidão de povos que invadiu o continente europeu.

O druidismo passou então a ser uma prática fechada e esotérica. Isso, porém, não impediu que muitos druidas aceitassem as idéias de Jesus de Nazaré, quando o Cristianismo primitivo chegou à Europa. No entanto, o nascente Catolicismo romano não gostou desse sincretismo e ajudou a perseguir os sacerdotes celtas. Pode-se dizer que o desaparecimento dos druidas é diretamente proporcional ao crescimento e fortalecimento da Igreja Católica.

Como os grandes druidas eram conhecidos como as serpentes da sabedoria, São Patrício regozijava-se de ter acabado com as “serpentes” da Bretanha. A vitória final teria sido de Roma se não existisse a reencarnação. Utilizando-se desse mecanismo natural, o druida Allan Kardec renasceu no Século XIX para dar continuidade ao seu trabalho no campo científico e filosófico.

O local escolhido foi a cidade de Lyon, na atual França, antiga Gália, no ano de 1804. Seu novo nome seria Denisard Hypollite Leon Rivail. Educado na Suíça, mudou-se, depois, para Paris, capital cultural do mundo.

Durante muitos anos, o ex-druida dedicou-se ao estudo e prática da Educação. Todavia, aos 50 anos, atraído pelos fantasmagóricos fenômenos que invadiram o globo, sua atenção voltou-se integralmente para as questões transcendentais da vida.

Convencido que os estranhos acontecimentos eram produzidos por Espíritos, Rivail começou a fazer-lhes várias perguntas sobre as causas e características das coisas. Desse material saiu sua primeira obra sobre o assunto: “O livro dos Espíritos”. Estava inaugurada a nova filosofia espiritualista, que ele chamou de Espiritismo.

Já sabendo que era um druida reencarnado, através da revelação do Espírito Zéfiro, Rivail preferiu assinar seus livros com seu antigo nome celta, a fim de separar seu trabalho de educador do de autor espírita. Fechava-se, assim, um ciclo palingenésico, pessoal e histórico.

O espírito Kardec/Rivail completava sua tarefa de condutor de almas e as grandes teses druídicas ressurgiam no bojo da novel Doutrina Espírita. Tudo sobre o mesmo solo gaulês.

Esses fatos, porém, não aconteceram sem a resistência de uma velha inimiga  dos druidas. A Igreja Católica tentou denegrir o Espiritismo de várias maneiras. Mas essa já é outra história…

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Referências:
“O Livro dos Espíritos e sua tradição Histórica e Lendária”, de Silvino
Canuto de Abreu, Edições LFU, São Paulo, 1992.

“Os Celtas”, de Venceslas Kruta, Editora Martins Fontes, São Paulo, 1979.

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Nota do ECK:
Artigo originalmente publicado no extinto jornal “A Voz do Espírito”, em sua edição n. 89, de Janeiro/Fevereiro de 1998.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

3 thoughts on “Allan Kardec, o chefe druida, por Mauro Quintella

  1. Excelente registo da genese do Espiritismo. Esta história continua com todos nós que sabemos como Kardec trabalhou afincadamente para que ficasse escrito tudo o que tinha aprendido antes e depois. Nós temos que continuar a espalhar essas palavras. Gratidão à Espiritualidade.

  2. Um texto leve de se ler, mas que remete a uma reflexão da vida reencarnatória de Kardec e o conteúdo vivenciado para desenvolver a ciência Espirita, ou seja, com seu passado de celta privilegia no ser humano a liberdade de ser, que seja livre em suas escolhas, o livre arbitro, o que se contrapõe a todo e qualquer dogma imposto pelas religiões, uma diferença que não deixa dúvida que o Espiritismo se aparta das religiões, por ser na potência uma filosofia que define os conceitos morais para uma vida coletiva harmoniosa, mas na essência é libertária por permitir o livre arbítrio e em permanente ação por privilegiar a evolução do ser.

  3. Resgatar a historicidade de Kardec/Rivail é uma missão épica, especialmente considerando as distorções a sua memória vivenciada, infelizmente, um tanto apagada em Casas Espíritas sincretistas da atualidade. No entanto, tudo isto nos dá fôlego para não desistirmos no início do caminho, visto, inspirados pelo exemplo contido no texto apresentado, seria um heresia (sendo religioso) de nossa parte.

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