Ansiedade, Depressão e Fé: o preço de uma espiritualidade desvirtuada, por André Marouço

Tempo de leitura: 5 minutos

André Marouço

Do Umbral à Libertação: repensando a Espiritualidade no Brasil

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O Brasil ocupa o nada lisonjeiro primeiro lugar no ranking mundial de pessoas com Transtorno de Ansiedade Generalizada (TAG). Em relação à depressão, embora não estejamos no pódio, não há motivo para comemoração: somos o quinto país com mais casos de Transtorno Depressivo Maior (TDM).

De maneira simplificada, a ansiedade pode ser descrita como o “medo do futuro”, e a depressão, como o “peso do passado”. No entanto, é importante lembrar que ambos os transtornos são condições complexas, com causas biológicas, psicológicas e sociais, envolvendo uma variedade de sintomas físicos e emocionais.

Se os números de pessoas afetadas por TAG e TDM no Brasil são alarmantes, isso nos leva a refletir sobre o quanto estamos distantes dos ensinamentos de Jesus. Afinal, como disse Yeshua: “Eu vim para que tenham vida e vida em abundância” (João 10:10). 

“Espiritismo à Brasileira” [1]: quando a Fé se Torna Prisão

Atuando como psicanalista clínico e com um extenso envolvimento na Doutrina Espírita, frequentemente me deparo com pessoas que buscam ajuda devido a sofrimentos psíquicos não superados por meio de “tratamentos espíritas”. Muitas vezes, esses sofrimentos são atribuídos a uma obsessão contumaz, e os processos de desobsessão foram realizados em suas “casas de religião” — uso aspas aqui porque o Espiritismo não é, nunca foi e jamais será uma religião, nem tampouco pode promover qualquer desobsessão sem que a pessoa promova mudanças em sua conduta e em suas crenças.

Após décadas de estudo espírita, anos de formação psicanalítica e prática terapêutica, posso afirmar com segurança que o Brasil, embora seja o país com o maior número de católicos no mundo, um dos cinco maiores em número de evangélicos e a nação com a maior quantidade de seguidores do Espiritismo em termos absolutos, está psiquicamente doente — justamente por não viver os princípios espirituais superiores em sua essência. 

Em primeiro lugar, é importante ressaltar que não é totalmente preciso afirmar que o Brasil tem a maior quantidade de espíritas no mundo, pois o chamado “espiritismo à brasileira” difere substancialmente da racionalidade filosófica proposta por Allan Kardec em sua vasta obra literária. Nossa prática espírita, em muitos aspectos, afastou-se da universalidade dos ensinamentos dos Espíritos e transformou-se em um fenômeno cultural e religioso singular, com a adoção de opiniões pessoais, de médiuns, expositores, dirigentes ou atribuídas a Espíritos (desencarnados) sem qualquer método de aferição e segundo o critério kardeciano da universalidade.

Infelizmente, perdemos [a maior] parte da essência espírita original. Em vez de seguir a proposta kardequiana, fundamentada na razão, na ciência e na moral de Yeshua, criamos um Espiritismo sincretizado, influenciado por tradições católicas, afro-brasileiras e até mesmo por interpretações mediúnicas questionáveis. Muitas vezes, conceitos são introduzidos como verdades absolutas, baseados em “ensinamentos” transmitidos por médiuns com visões católicas derivadas da moral do Catolicismo ou dirigidos por Espíritos que reproduzem dogmas religiosos.

A vasta produção literária tida como espírita no Brasil reflete esse sincretismo. Embora tenha méritos em disseminar ideias de caridade e consolo, muitas obras distanciam-se da base filosófica e científica proposta por Kardec. É por isso que, de forma crítica, me refiro ao Espiritismo brasileiro como algo que perdeu sua “pureza” original e tornou-se um amálgama de influências diversas, sem uma identidade claramente definida. Tornada Espírita, então, apenas em função de ser “revelada” através da mediunidade, sem levar-se em conta a racionalidade do método proposto por seu codificador.

Do Umbral à Libertação: repensando a Espiritualidade no Brasil

Assim, somando católicos (romanos, brasileiros e ortodoxos), evangélicos e “espíritas à brasileira”, chegamos a aproximadamente 178 milhões de indivíduos (segundo o Censo 2010). São quase 200 milhões de pessoas que, em maior ou menor grau, acreditam em conceitos como o inferno, o purgatório (que no “Espiritismo à brasileira” ganhou o nome de Umbral), o diabo, o inferno, o purgatório ou regiões de sofrimento como o “Vale dos Suicidas”, a licantropia (a ideia de que Espíritos assumem a forma de lobos), os ovoides (casulos ou “ovos” onde Espíritos supostamente ficam encapsulados após graves transgressões às leis divinas) e outras crenças que carecem de base filosófica ou científica.

Como alcançar a paz psíquica quando essa imensa massa de religiosos ainda está presa a uma visão de Deus e de Sua lei anterior à vinda de Yeshua? Arrisco-me a dizer que pelo menos 90% desses quase 200 milhões de religiosos ainda creem no Deus do Antigo Testamento, o “Senhor dos Exércitos”, e se definem como “tementes a Deus”. Apenas essa última expressão — “tementes a Deus” — já revela a síntese de nosso adoecimento psíquico e de nosso afastamento dos ensinamentos de Yeshua. Tememos o Pai, mas não aprendemos o básico que Jesus nos ensinou, tão bem descrito no Sermão do Monte:

“Se vocês, apesar de serem maus, sabem dar boas coisas aos seus filhos, quanto mais o Pai que está nos céus dará coisas boas aos que lhe pedirem! Assim, em tudo, façam aos outros o que vocês querem que eles façam a vocês, pois esta é a Lei e os Profetas. Entrem pela porta estreita, pois larga é a porta e amplo é o caminho que leva à perdição, e são muitos os que entram por ela.” (Mateus; 7:11-13)

Como ter vida em abundância, especialmente a mais importante, que é a psíquica, se ainda estamos presos a uma visão de fé anterior à liturgia do Cristianismo? 

Conforme dissemos anteriormente, se de forma resumida podemos dizer que o Transtorno Depressivo Maior é o “peso do passado”, e todos sabemos, a partir do tribunal de nossa consciência e até mesmo dos porões do inconsciente, que colecionamos erros contra nós próprios e contra os outros, é natural prever que a coletânea de descaminhos que todos nós experimentamos em nossa jornada, inevitavelmente, pesa sobre nossas mentes, uma vez que ainda visualizamos a Lei Divina com o peso da punição de um Deus antropomorfizado.

E se os religiosos do catolicismo e do protestantismo experimentam o medo da punição pelos erros cometidos na atual existência, aos “espíritas à brasileira” a situação é ainda mais grave, pois somam-se as transgressões cometidas em encarnações passadas. Tal sistema de crença nos rouba a paz do presente e nos empurra para o Transtorno de Ansiedade Generalizada, antecipando em nossas instâncias psíquicas as punições que virão, seja no amanhã da atual encarnação, no retorno para a vida espiritual ou mesmo em futuras experiências reencarnatórias. Infelizmente, no meio espírita é comum ouvirmos frases como: “é meu karma”, “eu devo ter jogado pedra na cruz”, “meu(s) obsessor(es) me atormenta(m) por causa dos meus erros do passado”, “eu tenho que permanecer casado com essa pessoa, mesmo estando em um casamento falido, pois trata-se de um Espírito que eu desencaminhei no passado”. A nosso ver, o “espírita à brasileira” vive preso no passado, sofre no presente e antecipa a dor do futuro.

A genuína e confortadora proposta espírita pelo esclarecimento

O Espiritismo, conforme codificado por Allan Kardec, do contrário, ensina que a reencarnação visa à evolução moral do Espírito. No entanto, muitos justificam os seus sofrimentos atuais como consequências inevitáveis de vidas passadas, o que contradiz a lógica espírita e também a psicanalítica, que valoriza a autonomia psíquica no presente. Espiritismo e Psicanálise convergem para a mesma análise.

Se Deus nos concedeu o esquecimento das encarnações anteriores, qual o sentido de nos aprisionarmos em supostas culpas? Kardec deixa claro que esse esquecimento é necessário para a construção de um futuro livre de amarras. A psicanálise, por sua vez, ensina que o sujeito não deve se resignar ao passado, mas trabalhar seus conflitos para superá-los.

A ação de atribuir dificuldades aos erros do passado ignora que muitos problemas são fruto de escolhas atuais e a realidade de padrões inconscientes que podem ser transformados. O verdadeiro progresso espiritual ocorre pelo enfrentamento consciente dos desafios e pela transformação moral, não pela resignação cega a um passado que Deus, sabiamente, nos fez esquecer. 

Assim, atualmente, a frase “conhece-te a ti mesmo”, do Oráculo de Delfos, está mais atual do que nunca. O divã e as dores, os traumas e as limitações atuais desvendadas em um processo de análise podem, em um primeiro momento, restringir-se apenas à experiência reencarnatória atual, permitindo a ressignificação de crenças limitantes e a busca do aprimoramento individual no presente. 

Na terapia de base psicanalítica, o inconsciente é a essência do trabalho. Compreende-se, assim, que ele é fruto de todas as vivências passadas, incluindo traumas, medos e conteúdos reprimidos. Ou seja, não é necessário nos preocuparmos com encarnações anteriores, pois, no inconsciente, tudo se manifesta no presente. Dessa forma, ao ressignificar as instâncias inconscientes, abre-se caminho para a construção de um novo presente, tornando-o o grande pacificador e o alicerce de um passado, presente e futuro mais harmoniosos.

Nota:

[1] A expressão “Espiritismo à brasileira” foi cunhada por Sandra Jacqueline Stoll, em sua Tese (Doutorado), defendida na Universidade de São Paulo (USP), em 1999, intitulada: “Entre dois mundos: o espiritismo da França e no Brasil”.

Iamgem: Arte do Canvas, fornecida por André Marouço.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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