Por Marcelo Henrique
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“Falam de algum lugar
Mas onde é que está?
Onde há virtude e inteligência
E as pessoas são boas e sensíveis”
(Renato Manfredini, “Sagrado Coração”, escrita em 1996).
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A lembrança do ícone e de suas letras-músicas
Neste onze de outubro nos recordamos da partida de um “ícone” para diversas gerações. As que conheceram o personagem, ao vivo (como eu) ou por transmissões via TV e pelas músicas exaustivamente tocadas em rádios, e se encantaram com a poesia musicada de Renato Manfredini Júnior, o Russo (1960-1996).
Carioca radicado na capital federal, Brasília, em face da carreira de servidor público vinculado ao Banco do Brasil de seu pai, Renato Russo foi um dos bastiões do Pop-Rock nacional, sobretudo por criar (1982) liderar a banda “Legião Urbana”, com quatro componentes na origem, depois três
Certamente, mesmo não sendo “fã”, ao escutar uma das músicas da banda, você se lembrará da voz marcante do nosso homenageado. Se for um pouco mais adiante, se pegará pensando no teor da(s) poesia(s) ou na profundidade da(s) letra(s). Sobretudo os refrões ou bordões, que aqui, alguns, transcrevemos:
“Será só imaginação? Será que nada vai acontecer? Será que é tudo isso em vão?” Será que vamos conseguir vencer? (“Será”, 1985);
“Se lembra quando a gente chegou um dia a acreditar que tudo era pra sempre, sem saber que o pra sempre, sempre acaba” (“Por enquanto”, 1985);
“Somos os filhos da revolução, somos burgueses sem religião, somos o futuro da nação, geração coca-cola” (“Geração Coca-Cola”, 1985);
“Nem foi tempo perdido, somos tão jovens” (“Tempo Perdido”, 1986);
“Quem um dia irá dizer que não existe razão nas coisas feitas pelo coração, e quem me irá dizer que não existe razão” (“Eduardo e Mônica”, 1986);
“Nos deram espelhos e vimos um mundo doente” (“Índios”, 1986);
“Já não me preocupo se eu não sei porque, às vezes, o que eu vejo, quase ninguém vê; e eu sei que você sabe, quase sem querer, que eu vejo o mesmo que você” (“Quase sem querer”, 1986);
“Tem gente que machuca os outros, tem gente que não sabe amar; mas eu sei que um dia a gente aprende” e “Tem gente que está do mesmo lado que você, mas deveria estar do lado de lá; tem gente que machuca os outros, tem gente que não sabe amar” (“Mais uma vez”, 1986);
“Que país é esse?” (“Que país é esse?”, 1987);
“Não entendia como a vida funcionava; discriminação por causa da sua classe e sua cor; ficou cansado de tentar achar resposta” (“Faroeste Caboclo, 1987);
“Não quero lembrar que eu minto também, eu sei” (“Eu sei”, 1987);
“É preciso amar as pessoas como não houvesse amanhã” (“Pais e Filhos, 1989);
“E há tempos, são os jovens que adoecem; e há tempos, o encanto está ausente e há ferrugem nos sorrisos; Só o acaso estende os braços a quem procura abrigo e proteção” (“Há tempos”, 1989);
“É só o amor, é só o amor que conhece o que é verdade” e “Ainda que eu falasse a língua dos homens e falasse a língua dos anjos, sem amor eu nada seria” (Monte Castelo, 1989);
“E eu gosto de meninos e meninas” e “Preciso de oxigênio, preciso ter amigos; preciso ter dinheiro, preciso de carinho; acho que te amava, agora acho que te odeio; são tudo pequenas coisas e tudo deve passar” (“Meninos e Meninas, 1989);
“Tudo é dor, e toda dor vem do desejo. de não sentirmos dor” (“Quando o sol bater na janela do teu quarto”, 1989);
“E quando vejo o mar, existe algo que diz que a vida continua e se entregar é uma bobagem” (“Vento no Litoral”, 1991);
“Este é o nosso mundo, o que é demais nunca é o bastante e a primeira vez é sempre a última chance” (“O teatro dos vampiros”, 1991);
“O mundo anda tão complicado, que hoje eu quero fazer tudo por você” e “Quero ouvir uma canção de amor, que fale da minha situação, de quem deixou a segurança de seu mundo… Por amor” (“O mundo anda tão complicado”, 1991);
“Venha, meu coração está com pressa, quando a esperança está dispersa, só a verdade me liberta; chega de maldade e ilusão” (“Perfeição”, 1993);
“Quando tudo está perdido, sempre existe uma luz; quando tudo está perdido, sempre existe um caminho” (“A Via Láctea”, 1996);
“Hoje, a noite não tem luar e eu estou sem ela; Já não sei onde procurar, onde está meu amor? (“Hoje, a noite não tem luar, 1999).
Não são, naturalmente, todas as canções. E, igualmente, não seriam, apenas esses, os trechos a relembrar. Mas eles nos dão, suficientemente, a “palinha” da espiritualidade marcante de Russo…
Um Espírito triste e melancólico
Há, sim, muita tristeza e melancolia, mesmo nas músicas mais “animadas” do Legião, em razão do “peso” da voz (belíssima e afinadíssima, por sinal) de Russo. Penso que essa(s) angústia(s) existencial(is) sempre acompanharam, desde a infância o nosso querido compositor e músico. Falar de si, abrir-se para o mundo, por meio da poesia, é um recurso tradicional de quem “poetiza”. E, quando se faz isso, se encontra a ressonância em legiões urbanas (olha aí a referência natural ao nome da banda), em suas vidas de altos e baixos, alegrias e tristezas, dificuldades e êxitos.
E há reclames, ansiando por dias melhores, para si, para os “jovens”, para os brasileiros, para os terrenos. Música de protesto, diriam alguns. Que embalaram sonhos, lutas e conquistas. A redemocratização do país, a luta contra os fascismos, os preconceitos e as iniquidades de qualquer “tom” e a busca por justiça social verdadeira e perene. Permanentemente, porque os esqueletos estão nos armários, prontos a deles saltarem e se acomodarem tranquilamente entre nós, como assombros, não mais meros espectros, podendo se tornar deploráveis realidades
Sim, como traduz o título deste ensaio, as almas sofrem! A Cristandade, inclusive, se refere à Terra (mundo visível, material-corporal, plano existencial) como um “vale de lágrimas”, marcado por uma sucessão – diria, eu – interminável de “lutas”, sejam as íntimas, sejam as externas, até o “último suspiro”, a passagem.
O sofrimento derradeiro em “Sagrado Coração”
E Renato sofre… E muito! Quanta dor nesse coração, nessa alma…
Em “Sagrado Coração” – a última música de Renato, encartada (apenas instrumentalmente) no disco derradeiro da banda, “Uma outra estação”, se percebe as cores da alma do poeta. Vejamos:
“é difícil de explicar / De falar de bondade e gratidão / E estas coisas que ninguém gosta de falar”; “Falam de algum lugar / Mas onde é que está? / Onde há virtude e inteligência / E as pessoas são boas e sensíveis”; “a luz no coração / É o que pode me salvar / Mas não acredito nisso / Tento, mas é só de vez em quando”
Renato, exaurido pelas enfermidades, inundado pelos (ainda precários) remédios do coquetel AZT (de combate aos efeitos da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA-AIDS), compôs esta letra como a ansiar por um lugar onde haja virtudes e que tenha luz, como uma saída do sofrimento; Eis a sua (permanente) busca, diante da alma irrequieta e com muitas dores, por toda a sua existência de (apenas) 36 anos.
À luz do Espiritismo
Há, pois, na interpretação da Filosofia Espirita, os sofrimentos inerentes à existência físico-corporal e outros que acompanham a individualidade espiritual por sua caminhada progressiva.
Vejamos, inicialmente, alguns elementos conceituais sobre a vida, no que tange às “penas e gozos terrestres” [1]:
a) A felicidade plena não pertence à existência terrena, pelo fato de ela ser um conjunto de provações (testes, oportunidades) e expiações (restaurações de erros anteriormente cometidos);
b) A infelicidade humana quase sempre é decorrente de sua própria atuação/omissão;
c) A condição de encarnado é a de uma estação temporária (uma “parada momentânea numa hospedaria precária”, como reforça Kardec);
d) Grande parte dos males experimentados decorrem de infrações às Leis Universais e a excessos individualmente cometidos;
e) A felicidade (relativa, neste mundo) pode ser enquadrada em dois vetores: i) material, como a “posse do necessário”; ii) moral, em relação à “consciência tranquila” e à “fé no futuro”;
f) São fontes da infelicidade as ideias materialistas, os preconceitos, a ambição e as ridículas extravagâncias;
g) A resignação em relação aos infortúnios depende da consolação que há de vir de sua própria consciência, que lhe fornece a esperança de um futuro melhor, desde que faça o que é preciso para tanto;
h) “O sofrimento está por toda a parte” e não há ninguém que estagie nesse mundo que não os experimente; e,
i) O mal (ações más) ainda se sobrepõe ao bem (ações boas) porque os maus são “intrigantes e audaciosos”, enquanto os bons, “tímidos”.
Já em relação a “penas e gozos futuros” [2], os tópicos são os que seguem:
j) O sentimento instintivo de uma vida futura decorre da lembrança do Espírito em relação às experiências que teve e “do que viu no estado espiritual”;
k) A preocupação com o (próprio) futuro é um sentimento natural e o nada após a morte é uma ideia que ele, até instintivamente, repele;
l) Dúvida, temor e esperança são os sentimentos que o encarnado experimenta em relação ao porvir, estando diante da morte;
m) A vida futura é a direta consequência dos próprios atos humano-espirituais e, portanto, bons e maus são diferentes entre si, no que tange ao que receberão no futuro;
n) Deus não recompensa nem castiga, não premia nem condena. Os resultados vivenciados pelo Espírito são a consequência de ações/omissões e da aplicabilidade natural das Leis Universais; e,
o) As eventuais faltas cometidas são saldadas por meio de expiações e provas; as últimas só ocorrem na condição físico-material e ainda podem envolver expiações; as primeiras podem ocorrer na condição material (física) ou imaterial, como Espíritos propriamente ditos, desprovidos dos corpos que lhe serviram de morada. Como diz Kardec [3], “a expiação serve sempre de prova, mas nem sempre a prova é uma expiação”.
Estes são importantes aportes para o entendimento acerca das nossas vivências, experiências e sentimentos quando encarnados. Afinal de contas, todos passamos por situações angustiantes, todos estamos em expiações e provas e todos vivenciamos felicidade (alegria) e infelicidade (tristeza).
Sentimentos, sensações e percepções de Russo, em seu Réquiem
Quais deveriam ser, então, os sentimentos, sensações e percepções do Espírito Renato Russo, em seus (poucos) 36 anos nesta última existência no Brasil? Somente ele pode saber dizer. Muito disto consta de sua poesia melancólica e com episódios de desencanto e desalento. Talvez depressivo em muitos dos versos.
Como está ele hoje? Como despertou da passagem para o “outro lado” [4]? Tem, ele, a consciência exata do que fez (e do que deixou de fazer), de suas ações/omissões e a relação de tudo com o seu (próprio) progresso espiritual? São questões que motivam nossa reflexão…
Renato agonizava em seus últimos momentos, como demonstra parte da letra da música em tela: “Falam de algum lugar / Mas onde é que está? / Onde há virtude e inteligência / E as pessoas são boas e sensíveis”. Quem sabe implorando por um “mundo melhor” do que aquele que viu em sua experiência terrena mais recente. Uma súplica para que as Inteligências Invisíveis – que o receberam na e após a partida – lhe auxiliassem no inafastável processo do CONHECER (“Conhece-te a ti mesmo”, Sócrates).
O título da poesia que se transmudava em letra de canção – a última parte que Russo escolhia, no seu processo produtivo – não por acaso é um libelo genuinamente cristão. O “sagrado coração” simboliza o amor de Cristo pela humanidade e a sua caridade infinita”. Liturgias à parte, deixando de lado o mito cristão e enquadrando a visão possível de um homem do seu tempo, com “talentos” a mais que os nossos, o que se conta dele e o que se pode atribuir verossimilhança ou veracidade, além do misticismo e das amarras dos dogmas religiosos, nos remete, realmente, a um Homem amante de Homens, isto é, um ser com uma missão específica de apontar caminhos para todos os seus irmãos, mulheres e homens, que ele indistintamente amou e ama.
Por fim, ao chamar seu último disco, o Réquiem de sua carreira – e a da Legião Urbana – de “Uma outra estação”, Russo já estava antevendo que deixaria a morada física e, com isso, encheria a nossa alma de saudade…
E é por isso, especialmente, que lembramos de Renato com carinho, entoando os versos das canções (preferidas de cada um), nos momentos de alegria como nos de tristeza. E, para lembrar o poeta, nesta mesma derradeira canção, repetimos: “Este lugar distante [o de alcance da verdadeira felicidade] está dentro de você”.
Notas do Autor:
[1] KARDEC, A. O livro dos Espíritos. Parte Quarta, Capítulo I, itens 920 e seguintes. Trad. J. Herculano Pires. 64. ed. São Paulo: Lake, 2004.
[2] KARDEC, A. O livro dos Espíritos. Parte Quarta, Capítulo II, itens 958 e seguintes. Trad. J. Herculano Pires. 64. ed. São Paulo: Lake, 2004.
[3] KARDEC, A. O evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo V. Item 9. Trad. J. Herculano Pires. 59. ed. São Paulo: Lake, 2003.
[4] A prudência recomendada por Kardec em relação às comunicações mediúnicas alcança, também, eventuais psicografias (até “poesias” póstumas apareceram por aí, após a sua desencarnação!), ou depoimentos de médiuns (?) acerca da condição espiritual póstuma de Renato Russo. O princípio é: os Espíritos continuam sendo o que foram durante a existência, sem céleres e instantâneas mudanças. E grande parte das informações atribuídas a Renato não passam de conceitos pessoais e limitados, muitas das vezes, ciosos de júbilo, consternação, admiração e idolatria seja aos aludidos médiuns seja aos próprios desencarnados, inclusive se são, como o caso, pessoas públicas.
Imagem autoria: Jedigoy
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Anexo:
Sagrado Coração
Legião Urbana
Sei que tenho um coração
Mas é difícil de explicar
De falar de bondade e gratidão
E estas coisas que ninguém gosta de falar
Falam de algum lugar
Mas onde é que está?
Onde há virtude e inteligência
E as pessoas são boas e sensíveis
E que a luz no coração
É o que pode me salvar
Mas não acredito nisso
Tento, mas é só de vez em quando
Onde está este lugar?
Onde está essa luz?
Se o que vejo é tão triste
E o que fazemos tão de errado?
E me disseram!
Este lugar pode estar sempre ao seu lado
E a alegria dentro de você
Porque sua vida é luz
E quando vi seus olhos
E a alegria no seu corpo
E o sorriso nos seus lábios
Eu quase acreditei
Mas é tão difícil
Por isso lhe peço por favor
Pense em mim, ore por mim
E me diga
Este lugar distante está dentro de você
E me diga que nossa vida é luz
Me fale do sagrado coração
Porque eu preciso de ajuda
Limito-me ao apaixonante, como nas canções de Renato Russo. Que homenagem carregada de saudades, meu amigo. Uma reflexão assertiva sobre o tempo e as memórias. Só resta a gratidão.