Maria Cristina Rivé
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A mola mestra do progresso é: indivíduos fazendo a parte que lhes cabe e influenciando coletividades. Na esteira do progresso é preciso enfrentar os escândalos que se fazem necessários. E, mais que isso: que se apurem os escândalos e se aprenda com eles.
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“O que causa a maior parte dos males da Terra, se não for o contato incessante dos homens maus e perversos? O egoísmo mata a benevolência, a condescendência, a indulgência, o devotamento, a afeição desinteressada e todas as qualidades que fazem o encanto e a segurança das relações sociais” (Kardec, na “Revue Spirite”, Julho/1865 – Estudos Morais: a Comuna de Koenigsfeld, mundo futuro em miniatura).
As divindades não trabalham. Na pirâmide social, quando nos remontamos à Idade Média, notamos que a classe trabalhadora era quem cumpria os desígnios bíblicos (Gênesis) de tirar da terra, com trabalhos penosos, o seu sustento, todos os dias de sua vida.
Trabalho era para os que pouco tinham, “em dignidade e em direitos”. Aqueles que estavam mais perto de Deus – os privilegiados, os bem-aventurados, assim se julgavam – não precisavam tirar da terra o seu alimento, nem suar para manter suas regalias.
Passou o tempo, e muito mudou… Ou nada mudou?
A base da pirâmide continua a erguer países, transformar anseios, corrigir vivências mas, volta e meia, nos deparamos com a dor em relação àquilo que maltrata e aniquila: “quem sente, logo existe”. Todavia, o ato de existir (sobreviver, e não viver) em meio a maus tratos, indiferenças, desprezo torna a criatura adoecida… Ela pouco entende, quase nada se entende e se maltrata. Os dias no “tripalium” [1] são lentos, doídos, a enfraquecer, dia a dia, quem sofre.
No início dos tempos, a descendência era atribuída à mulher, pois com uma sociedade nômade não entendíamos exatamente como se dava a participação masculina na reprodução. Já na forma sedentária de sociedade, observamos o papel masculino neste processo, com a estabilização da família a partir da monogamia.
Com isso, o masculino foi se apropriando do feminino, subjugando-o à sua vontade. Chegara a hora do patriarcado e, com ele, o desprezo à mulher, a qual necessitaria de um “macho” a seu lado, a fim de estar plena, sendo que a ela cabia cumprir a sua missão de dar a seu marido a continuidade de seu legado. É, então, o nome da família a ser perpetuado por aquela que serve e que pare, com dor, pois essa é a vontade de Deus. A estrutura judaico-cristã da sociedade que se mantém atualmente muito deve a Aristóteles essa forma de pensar o feminino: frágil, incapaz, sem alma, portanto sem merecimento.
O patriarcado é, assim, mais um dos descontroles criados, com o intuito de justificar o que “Narciso acha feio, porque não é espelho” [2]. O racismo, o sexismo, o machismo, junto a uma coletânea de rachaduras nos espelhos, rompe a cadeia do bem e do belo, visto que se passa a acreditar no individualismo como forma primordial de convivência. Todavia, não há sociedade sadia sem o conjunto: é a (e na) diversidade que se compõe a natureza e, nela, a cooperação está presente em todos os sentidos.
A leoa caça junto a seu bando. A matriarca da matilha ensina a cada descendente como se faz e nas brincadeiras com as matronas e seus pais, os filhotes aprendem como sobreviver na savana, pois, na selva, não há nem leões, nem leoas. É uma unidade forte e aguerrida a seguir o curso da vida. Por quê? Porque assim Deus quer! E, portanto, criou seres e Leis Naturais que vão dar sequência à série infinita de idas e vindas, na senda da Lei do Progresso, para assim chegar à relativa perfeição.
Infelizmente, não basta essa série de “ismos” infames criados por alguns seres insatisfeitos com as relações, as quais poderiam ser tranquilas, mas não são. Porque, para alguns, não basta ser forte, é preciso submeter. Nas relações “tripalianas” – nosso neologismo –, a mente, o corpo e o sexo estão presentes. O assédio moral é, então, instrumento abjeto. Realizado por criaturas aéticas, que humilham e prejudicam os “tripalianos”, conduzindo-os ao adoecimento e, não raro, à morte. E essa morte é como pessoa, já que a esperança se esvai, a certeza não existe e a tristeza toma conta. Ao assédio moral se junta o sexual, a invadir não somente a mente, como também o corpo.
Condutas por vezes, veladas, outras nem tanto. Qual de nós, mulheres, pode se dizer livre desse maltrato? Um olhar lascivo, a mão a escorregar, o lábio a se mexer libidinosamente. E precisamos continuar vivendo. Talvez seja esta a dor maior. Como continuar se não mereço? O corpo – instrumento do ser – está remexido, porque foi invadido e suas estruturas foram rompidas. Ahhh! Que dor, que tropeço, as lágrimas descem e molham e pintam de vermelho os sonhos da invadida!
Não há, assim, progresso e, por extensão, não há sossego; existe a ânsia do não ser visto, não ser tocado, não se ver lambido. As dúvidas de nossa integridade como existentes em sociedade ficam abaladas: somos mesmo capazes, ou somente um corpo “durinho e dançante” nos “bailes da vida ou num bar em troca de pão” é que importa? Existe mais, muito mais…
É preciso SEMPRE esclarecer: somos capazes, sim, por mais que a sociedade diga que não. Não há somente UM corpo, há uma vida pujante num crescente infindável de existências. Muito a fazer, muito a crescer. É preciso o entendimento de que “o caminho que vai dar no sol” [3] resulta da união de criaturas na busca incessante pelo direito de viver em paz, em harmonia. Isto, com a forma que mais se lhe apraz, em que a individualidade é verdadeira. Porque no caminho há uma unidade e para se chegar ao entendimento dessa, o conjunto vai lentamente sendo traçado: e em conjunto.
Refletindo o pensamento de Kardec, na continuidade do texto que destacamos nas linhas iniciais deste artigo, encontramos:
“aquele que, por sua cupidez e sua dureza causa a ruína de um indivíduo […] não é pior do que um assassino e um ladrão? […] Que seria preciso para fazer cessar este estado de coisas? Praticar a caridade; tudo está aí, como disse Lammenais” (“Revue Spirite”, Julho/1865 – Estudos Morais: a Comuna de Koenigsfeld, mundo futuro em miniatura).
Entretanto, a caridade deve ser pensada. A verdadeira é livre de interesses e de condescendências: nada se troca, tudo se dá. Olha-se a criatura necessitada como se este olhar pudesse preencher seus vazios existenciais. E como se dissesse: “Vem vamos embora, que esperar não é saber” [4].
Pois que
“Tudo está submetido à lei do progresso; os mundos também progridem fisicamente e moralmente; mas se a transformação da Humanidade deve esperar o resultado da melhoria individual; se nenhuma outra causa vier acelerar essa transformação, quantos séculos, quantos milênios serão necessários ainda?” (“Revue Spirite”, Julho/1865 – Estudos Morais: a Comuna de Koenigsfeld, mundo futuro em miniatura).
Eis aí a mola mestra do progresso: indivíduos fazendo a parte que lhes cabe e influenciando coletividades. Na esteira do progresso é preciso enfrentar os escândalos que se fazem necessários. E, mais que isso: que se apurem os escândalos e se aprenda com eles, visto que “os tempos são chegados” [5].
Nota do ECK:
[1] Tripalium, do latim, é historicamente trabalho. Na origem da palavra, a figura de um instrumento de tortura, composto por três pedaços de madeira, compondo uma canga colocada sobre animais. Também era um instrumento agrícola para moldar o trigo, o milho e o linho (Martins, 2012).
[2] Parte da letra da poesia musicada por Caetano Veloso, intitulada “Sampa” (1978), uma homenagem à cidade de São Paulo. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/caetano-veloso/41670/>. Acesso em 26. fev. 2025.
[3] Parte da letra da poesia que virou canção, de Fernando Brant e Milton Nascimento, “Nos bailes da vida” (1981). Disponível em: <https://www.letras.mus.br/milton-nascimento/47438/>. Acesso em 26. fev. 2025.
[4] Refrão da canção de Geraldo Vandré, “Pra não dizer que não falei das flores” (1979). Disponível em: <https://www.letras.mus.br/geraldo-vandre/46168/>. Acesso em 26. fev. 2025.
[5] Texto do Prefácio de “O evangelho segundo o Espiritismo”, assinado pelo Espírito Verdade.
Referências:
KARDEC. O evangelho segundo o Espiritismo. Trad. J. Herculano Pires. 20. Ed. São Paulo: LAKE, 1998.
KARDEC, A. “Revue Spirite”. Trad. Salvador Gentile São Paulo: IDE, 1993.
MARTINS, S. P. História do Direito do Trabalho. 28. ed. São Paulo: Atlas, 2012.
Parabéns pelo artigo! Uma excelente e poderosa reflexão sobre princípios fundamentais da desigualdade, do progresso e da resistência.