Marcelo Henrique, Nelson Santos e Manoel Fernandes Neto
Foto: pixabay – Alexa
Do léxico sobressai o conceito de odisseia: uma longa perambulação marcada por eventos imprevistos e singulares. Assim é a nossa “caminhada espírita”. Como um movimento de ideias (ainda) relativamente novo – 165 anos, desde a publicação da obra originária, “O livro dos Espíritos”, por Allan Kardec – não se tem a desejável maturação (e maturidade, sem ser redundante) para o trato de muitas questões, como se diz, à luz do pensamento espírita.
O fato é que a “Doutrina dos Espíritos”, enquanto filosofia, tem a perspectiva, a possibilidade, a natureza e o DEVER de buscar entender atos e fatos da convivência humana, assim como buscar uma explicação natural, lógica e verossímil para os fatos da Natureza, tanto os que interferem na vida da Humanidade, quanto os demais, afetos aos demais reinos existentes.
Mas, como ilustra o nosso título, as muitas odisseias espíritas, ao invés de nos aproximarem do adequado entendimento das distintas situações da existência, nos colóquios possíveis, condizentes com a contemporaneidade e isentos de dogmatismos, nos debates prospectivos, em sede das entidades sociais espíritas, acabam tendo, para a grande massa de adeptos e simpatizantes, sejam os frequentadores das instituições sejam os consumidores de “produtos” ligados ao Espiritismo (livros, vídeos, artigos, periódicos e, até, páginas e grupos nas mídias sociais), um distanciamento discutível, indevido e inoportuno.
Referido distanciamento acaba se constituindo em omissão. E, aqui, vale recordar o contexto de uma das mais fortes respostas dadas pelos Espíritos Superiores ao Professor francês, na obra primeira, acerca do porquê da influência dos maus ser superior à dos bons, em relação aos homens em geral: “Pela fraqueza dos bons. Os maus são intrigantes e audaciosos; os bons são tímidos”. A diagnose espiritual sobre o “momento” da vida de encarnados, embora de contorno grave, porque evidencia o alcance da submissão humana aos “maus” conselhos, aponta, prospectivamente, a solução possível e viável: os bons “quando quiserem, assumirão a preponderância” (item 932, de “O livro dos Espíritos”).
Dito isto, existe uma zona de sombra na pauta das instituições espíritas. Assuntos que não aparecem nos “púlpitos” (detestamos esta palavra, é verdade, por ela nos remeter à ideia da prática litúrgica, mas, em verdade, a posição central nas mesas de atividades, destinada à palestra ou exposição doutrinária, sem debates, sem contrapontos, a título de “homilia”, acaba sendo propícia, infelizmente), nos veículos e nas normativas de nosso movimento. Curiosamente, os temas ausentes são, exatamente os que versam sobre o lado (ainda) sombrio do ser humano, Espírito encarnado. Que temas? Poderíamos elencar racismo, machismo, conflitos de interesses, violência doméstica, autoritarismo e um tema em especial, que será abordado nesse artigo, que é o do abuso sexual e tópicos correlatos.
Figuras criminais
A casa espírita – e poderíamos estender um pouco mais para albergar, também, os grupos virtuais de estudo e difusão doutrinária assim como as fanpages espíritas – célula na qual desenvolvemos nossas atividades, é uma agremiação humana, como quaisquer outros espaços comuns: a escola, o clube social, o ambiente profissional, a vizinhança e até os meios de transporte coletivo e as “filas” de estabelecimentos comerciais ou bancários. Em todos estes, assim como na instituição ou grupo espírita, convivem Espíritos encarnados em evolução, pequenos extratos da nossa sociedade, em um ambiente sujeito a ocorrências de toda ordem, inclusive as questões relacionadas à sexualidade.
O abuso sexual é crime, definido como a atividade sexual não desejada e sem o consentimento de outrem, onde o agressor usa qualquer modalidade de força para obter o seu intento ou objetivo, que é a satisfação dos seus desejos e interesses sexuais. Há, no abuso, uma relação de confiança ou de dependência, assim como uma de subordinação ou decorrente de alguma modalidade de poder ou autoridade. Também é possível mencionar outras tipologias criminais como o assédio, a importunação e espécies mais graves como o estupro.
O assédio representa o elemento de generalidade, neste contexto, porque pode compreender tanto o abuso quanto a agressão sexual, materializado na atitude de alguém que, desejando obter algum “favor ou vantagem sexual”, assedia outrem e pratica algum tipo de coerção para exigir que o outro ceda aos seus desejos, na forma de ameaça, insinuação de ameaça ou hostilidade.
A importunação consiste na realização de qualquer ato libidinoso (satisfação da libido), com ou sem contato físico com a vítima, em sua presença e sem a sua autorização, para satisfazer o prazer sexual individual (lascívia), próprio ou de outra pessoa.
Já o estupro é configurado pela imposição de prática sexual (conjunção carnal) a alguém, mediante violência (força física), coerção ou ameaça, sendo que a vítima é incapaz de oferecer um consentimento válido.
Estas figuras criminais, destacadamente previstas na legislação criminal brasileira – e em muitos outros países, felizmente – são objeto de prevenção, repressão policial e apreciação judicial, sendo tratadas com rigor pela jurisprudência. Todavia, o maior obstáculo, conforme apontam os especialistas, é em relação à atitude de denunciar quaisquer crimes, seja por parte das vítimas, seja de terceiros que temem eventuais comportamentos por parte do agressor, após as denúncias.
Inverdades espirituais
As religiões, de matriz cristã ou não, têm, infelizmente, sido palco de situações lamentáveis, envolvendo seus frequentadores e as violências na área sexual são relativamente comuns, em especial as que envolvem a figura dos líderes carismáticos ou ocupantes de posições de destaque e poder nas instituições religiosas ou filosóficas. Estes, então, se utilizam de subterfúgios, pela dominação psicológica ou pela coação, para a exploração sexual dos fiéis ou adeptos, em especial mulheres fragilizadas emocionalmente e que buscam na fé o consolo e a solução de suas mazelas, assim como crianças, em fase de inocência, locupletando-se, aqueles, da mesma fragilização de suas vítimas.
São os pavorosos escândalos que figuram nas páginas dos jornais e que nos levam à reflexão sobre como ninguém dentro daquele templo ou instituição percebeu aquilo. Haveria uma lei de silêncio? Isto é, uma forma de dominação tão ampla e coativa, que resulta em inúmeras pessoas reféns da fé que professam, a ponto de se calarem diante do sofrimento do outro. Estariam, todas elas, perdidas na falta de empatia?
Considerando a temática da espiritualidade e das relações entre encarnados e desencarnados – escopo principal da Filosofia Espírita – é possível que muitos espíritas assim perguntem: – Mas, os amigos espirituais não protegem nossos templos, locais santos nos quais os obsessores não atuam? Por que os “mentores espirituais” permitem que isto ocorra e se situe dentro das instituições de caridade e espiritualidade? As casas espíritas não são ambientes preservados e abençoados?
A partir destas afirmativas, podemos perceber que esse problema é muito mais complexo do que se pode imaginar ou antever e que explicações simplistas, dadas por muitos, inclusive companheiros com décadas de leitura e convivência na ambiência espírita, como a pretensa existência de vínculos reencarnatórios (entre agressor e vítima), ou a ação de desencarnados (obsessão) são argumentos indevidos e totalmente contrários à teoria espírita. Não passam de opiniões baseadas no “achismo” e, não raro, constituem respostas “forçadas” e interpretações enviesadas, embora se cite este ou aquele elemento presente na literatura espírita.
O fato é que, em geral, os que se vinculam às atividades espírita não conseguem explicar correta e satisfatoriamente tais questões. Em grande parte das situações, o discurso, a argumentação e – pasmem – até alguns artigos ou obras pretensamente mediúnicas, são portadores de inverdades espirituais, decorrentes da própria inferioridade de seus signatários.
No cerne de todos estes problemas, alguns deles, inclusive, arrastados ao longo das reencarnações, reside a necessidade da educação das individualidades (que trazem suas bagagens de vivências espirituais contendo os deslizes e a falta de entendimentos do passado), mas também exigem cuidados especiais por parte de nós, como comunidade espírita.
O primeiro ponto, entendemos, é reconhecer que esse problema existe, e que é passível de acontecer em nossas fileiras, não sendo uma coisa só do “vizinho”, ou seja, de outras religiões, igrejas, templos ou centros filosóficos. Em geral, a “atitude no meio espírita” é a de nos colocarmos, como adeptos do Espiritismo, em um pedestal de castos e puros, somente por esposarmos as ideias kardequianas. É como se houvesse um “merecimento” em ser espírita e que a circunstância do contexto das explicações espíritas para as diversificadas questões da existência humano-espiritual representaria uma condição de superioridade (dos adeptos e frequentadores) em relação aos praticantes de outros credos. Ledo engano!
Sem enxergar e reconhecer isso como um problema, não conseguiremos ultrapassar o estágio do não dito, da negação e da consequente omissão na resolução do mesmo – já que o que é negado não se torna objeto de preocupação nem de ação. Somente se o chamado movimento espírita assumir que o problema existe e é mais corriqueiro do que se estima, é possível atuar no sentido da prevenção e do combate de todas essas ocorrências, que são reais e que já estampam as mídias, quando associados aos ambientes de outras religiões.
Aqui cabe outro particular de “isenção” do chamado movimento espírita brasileiro (MEB) em relação ao que ocorre em ambientes tidos como espíritas, onde se pratica a mediunidade – de assistência, atendimento e até de cura. Vários escândalos, decorrentes de denúncias que tiveram espaço nos contextos midiáticos envolvem a prática da mediunidade. São, à vista comum, entidades tidas como espíritas, muitas delas, inclusive, que adotam a literatura kardeciana e realizam estudos e palestras sobre temáticas espíritas. Um destes ambientes e o personagem principal, que se encontra preso, por condenações judiciais, era portador de prodigiosa mediunidade, sendo reconhecido, popularmente e pela própria mídia, como espírita.
Diante das acusações – que, em avalanche, foram divulgadas – o que fizeram os espíritas em geral, sobretudo os dirigentes de instituições e/ou órgãos federativos? Vieram a público para descaracterizar pessoas e instituições em relação a um aludido “padrão espírita”. As manifestações foram no sentido de dizer que tais não eram – nem nunca foram – espíritas e, portanto, “o Espiritismo nada tem a ver com isto”. Tem, e muito!
Primeiro porque não há, ao contrário de outras religiões ou filosofias, um órgão de aprovação e certificação ou credenciamento das atividades espíritas. Segundo, porque a mediunidade (e sua prática) não são patrimônio dos espíritas. Terceiro porque, nem em termos organizacionais e federativos, há consenso sobre as chamadas “práticas espíritas”, sendo muito adequado dizer-se que, neste imenso país, se pratica um “Espiritismo à moda da casa” ou um “Espiritismo ao gosto do freguês”. Há um sem-número de instituições que realizam atividades completamente distantes da diretriz contida nas obras basilares (Kardec) e que adotam rituais, atividades, terapias, e demais elementos que não são compatíveis com a chamada teoria espírita. Mas que não deixam de ostentar, na placa de identificação, sobre a porta de entrada, o adjetivo ESPÍRITA. E muitas delas permanecem filiadas a ligas, conselhos ou entidades federativas, sem qualquer embargo.
Daí ser leviano e contraproducente afirmar que “onde há problema, aí não há Espiritismo” ou dizer-se que não há ligação do Espiritismo com dadas pessoas ou atividades, porque este ou aquele incorreu na prática de crimes. E crimes gravíssimos, diga-se de passagem.
Um convite
Ao enxergar esse problema e assumir que ele faz parte de nossas rotinas e tem ligação com nossas práticas e com aquilo a que chamamos Espiritismo, no Brasil, é preciso um receituário terapêutico de medidas preventivas, que passa pela previsão de regras claras de comportamento e conduta para palestrantes, dirigentes e médiuns, assim como para os demais trabalhadores e frequentadores, e, também, para o roteiro de atividades assistenciais e mediúnicas. Uma espécie de “código de conduta” capaz de prever e atuar sobre todas essas questões, bem como outras, que estão ocultas na agenda espírita, já citadas.
O segundo ponto é o da atuação pedagógica, diante da gravidade do tema, adotar, institucionalmente, uma série de prescrições: não atender pessoas isoladamente; evitar os contatos físicos (toque) em qualquer atendimento; reduzir a concentração de poder institucional; regular as atividades mediúnicas de atendimento (sobretudo ao público não-espírita); evitar a idolatria e a formação de séquitos em relação a médiuns, expositores ou dirigentes; e, divulgar permanentemente os canais de denúncia, no âmbito das instituições e dos órgãos federativos. Essas são algumas medidas simples e efetivas que permitem aumentar a confiança de nosso ambiente, ainda que possam sugerir, a princípio, que os locais espíritas sejam um ambiente de pouca confiança. Isto porque, francamente, a atitude de sair da sombra aumenta a confiança, e evita a sensação e a práxis de se viver em um mundo artificial ou postiço.
É verdade que as religiões em geral – e a prática espírita se constitui, para muitos, como uma expressão religiosa – padecem de problemas dessa ordem faz muito tempo. Mas, o tempo em que vivemos, felizmente, tem se caracterizado por uma emergência de uma casuística que tem motivado o debate salutar sobre o tema, forçando os espíritas a abandonarem suas redomas protetoras e zonas de conforto e conformação, para trazer a lume o debate sobre tais temas e questões. E o espiritismo, local da fé raciocinada e libertadora, precisa sair da sua caverna e encontrar espaços para a discussão e a ação sobre esse e outros temas. Todos têm a ganhar com isso. E o “Espiritismo COM Kardec”, pioneiro em muitas destas discussões, além de levantar a lebre por meio de duas lives virtuais, com os debates sobre o abuso sexual e o assédio sexual, agora, também, patrocina a difusão de um artigo que suscita, mais que a preliminar e inaugural discussão, a ação efetiva e coordenada dos espíritas conscientes.
Você, então, diante da odisseia espírita que aqui apresentamos, está convidado a propor esta discussão e buscar a delimitação de um Código de Conduta nas instituições de matiz espírita, para que possamos nos proteger de acontecimentos como os descritos neste ensaio. Podemos contar com você?
Excelente texto. É urgente que a casa espírita, saia desse lugar “religioso”, desse lugar de “salvaçao” e entre de vez em um lugar de acolhimento, de estudo e de discussões filosóficas a cerca da vida prática, do mundo, do indivíduo, tendo como Fonte Kardec. Que haja diálogo, troca e esclarecimento entre todos frequentadores acerca de assuntos atuais, fazendo com que o dia-a-dia seja vivido a cada dia mais alinhado com o que nos convida Kardec. Clareza nas atividades e tarefas, buscando torna-las mais credenciadas ao exercício da Doutrina Espírita enquanto instituições.
Convite aceito!!
A cruz só não cresce se eu tirá-la do chão e isso não é opcional, já que progresso é lei Divina. Preciso de vcs!
Convite aceito. Vergonha a minha de não pensar sobre o assunto até ler os textos.