“Sua força (do espiritismo) está na filosofia, no apelo que faz à razão, ao bom senso.”
Allan Kardec, O Livro dos Espíritos, Conclusão, Item 6.
Há uma distinção fundamental entre o espiritualismo místico e o racional. Aquele está vinculado ao pensamento mágico, enquanto este tem, na razão, seus sólidos alicerces.
Fruto amadurecido do Iluminismo que o antecedeu, o Espiritismo iluminou, com o facho da razão, questões que o misticismo religioso houvera aprisionado no quarto escuro do mistério.
O pensamento e o agir mágicos nutrem-se e sobrevivem do mistério. Você pode, se lhe aprouver, interpretar questões como a existência de Deus, do Espírito, sua sobrevivência após a morte e sua comunicabilidade com o mundo material, a partir dos apelos do mistério. As religiões optaram por compartimentar cada uma dessas questões em dogmas que independem ou se fazem insuscetíveis à interpretação racional.
Já o Espiritismo, histórica extensão e condensação doutrinária do moderno espiritualismo racional, encontrou na própria razão e nas ciências humanas, elementos de demonstração experimental e consequente convicção filosófica.
Nós, espíritas, nesses episódios, somos testados a aferir se os valores que cultivamos estão vinculados ao âmbito da razão ou do pensamento mágico.
Todos quantos nos declaramos espíritas somos testados, em cada episódio de nossa vida individual ou social, a aferir se os valores por nós tidos como espíritas, estão vinculados, efetivamente, ao âmbito da razão ou se ainda tendemos, por atávicas influências religiosas, a interpretá-los a partir do pensamento mágico.
Vivemos neste momento um grave episódio de abrangência mundial, no campo da saúde pública, que pode, como tantos outros fenômenos da vida, ser interpretado e combatido tanto a partir do pensamento mágico, como do racional.
Estaremos vinculando-o ao pensamento mágico, por exemplo, se atribuirmos sua origem à iniciativa e à ação de um ser angelical, agente da justiça corretiva de um deus repressor, que se mostra cansado das maldades humanas, mas, ao mesmo tempo, misericordioso, por poupar a humanidade de drástica e dolorosa destruição. Igualmente, estaremos dando vazão ao atavismo mágico se buscarmos a solução dos males físicos causados por um vírus – que é produto da natureza – recorrendo a processos curativos sobre-humanos e alienados da ciência e do mundo natural.
Não há, na interpretação racional e livre-pensadora espírita, qualquer desprezo às causas espirituais dos males humanos e nem à possibilidade da intervenção dos Espíritos no campo terapêutico.
Entretanto, não se pode perder de vista que:
a) O homem é um complexo biológico/espiritual/social em cuja intimidade se devem harmonizar todos esses componentes, os quais precisam sempre ser observados e administrados conjuntamente; e,
b) A mais eficiente expressão da comunicabilidade entre as dimensões material e espiritual não se dá por processos eivados de misticismo cismo e mistérios, mas tende a se perfectibilizar mediante a fina sintonia entre encarnados e desencarnados, detentores, em seus respectivos planos, de conhecimentos capazes de aliviar ou pôr fim aos sofrimentos humanos. Logo, se, no mundo espiritual, um ente desencarnado é, efetivamente, detentor de conhecimentos capazes de trazer a cura de alguma patologia aqui ainda incurável, seu esforço preferencial há de se dirigir justamente a mentes encarnadas voltadas a esse mesmo objetivo. É a partir desse processo, mente a mente, entre a humanidade encarnada e desencarnada, que se operam as grandes descobertas e os avanços da ciência e do pensamento humanos.
Nessa linha de pensamento, é sempre dever dos espíritas buscar na própria natureza humana – na qual convivem o erro, o acerto, as experiências exitosas ou equivocadas – o caminho do aprimoramento físico, intelectual e moral da humanidade. A ciência, aí, assume importância capital para a correta e racional resolução dos grandes problemas humanos.
Entendam-se como ciência todas as áreas do conhecimento humano, da biologia ao direito, da química à pedagogia, da medicina à psicologia, instâncias, todas elas, sujeitas a uma ética de validade universal. O intercâmbio espiritual, área específica desenvolvida pelo Espiritismo, deve ter como objetivo justamente a busca de uma síntese de todos esses conhecimentos, numa perspectiva centrada na realidade da existência do Espírito e na comunicabilidade entre a humanidade encarnada e desencarnada, em ações onde estejam presentes o amor e a racionalidade, distanciados de misticismos e superstições.
A ciência, vista sob uma perspectiva imortalista e progressista, deve ser o centro para o qual convirjam os esforços dos espíritas, desestimulando-se, assim, as crendices, as visões mitológicas acerca de Deus e do Universo, as curas milagrosas, substituindo o pensamento e a ação mágicos pelo incentivo ao conhecimento racional, construído pelo natural e sadio intercâmbio entre as dimensões material e espiritual.
NOTA:
* Texto publicado como Editorial, no jornal “Opinião”, do Centro Cultural Espírita de Porto Alegre (CCEPA), edição de abril de 2020 (número 283).