Nelson Santos
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“Não pense separadamente nesta e na próxima vida,
pois uma dá para a outra a partida.
O tempo é sempre curto demais para quem precisa dele,
só que para os amantes ele dura para sempre”.
Rumi
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Apesar da inevitabilidade da morte, o falecimento de um ente querido é uma das vivências mais marcantes do ser humano, aspectos socioculturais e psicológicos convergem no enlutamento. Fenômeno no qual, a ausência, guardada a particularidade e a experiência de cada ser, resulta em negação da realidade, tristeza, melancolia, saudades, entorpecimento, descrença, choque, aturdimento, desamparo, enfim, um limbo existencial.
Sejam espiritualistas ou não, a ânsia de compreender e aceitar a ausência, gera expectativas, calcadas, principalmente, na esperança, ainda que distante, de uma vida além da vida e impulsionam a busca de notícias dos entes queridos falecidos e resposta a suas indagações, buscando alívio do sofrimento vivenciado, intenso e significativo. Nesse quesito as mensagens mediúnicas familiares despertam, fascinam e intrigam a humanidade desde a antiguidade.
Kardec, o investigador.
Kardec, em suas pesquisas e investigações sobre a relação inter-existencial, pesquisou e analisou, cientificamente, mensagens de além-túmulo, defrontando-se, certamente, com várias de cunho familiar, por meio de evocações. Isto antes, provavelmente, até mesmo de sistematizar a obra basilar que é “O livro dos Espíritos”.
Nesta obra, de modo questionador, abordou a temática na questão 935:
“Que pensar da opinião das pessoas que consideram as comunicações de além-túmulo como uma profanação?”.
E as Inteligências Esclarecidas lhe responderam:
“Não pode haver profanação quando há recolhimento e quando a evocação é feita com respeito e decoro. O que o prova é que os Espíritos que vos são afeiçoados se manifestam com prazer, sentem-se felizes com a vossa lembrança e por conversarem convosco. Profanação haveria se as evocações fossem feitas com leviandade”.
À resposta dos Espíritos, Kardec, comenta com seu habitual senso crítico:
“A possibilidade de entrar em comunicação com os Espíritos é uma bem doce consolação, que nos proporciona o meio de nos entretermos com os parentes e amigos que deixaram a Terra antes de nós”.
São mensagens que concedem, assim, aos familiares, esclarecimentos e informações acerca da sua condição na erraticidade, no sentido de aliviar a consternação que decorre da súbita separação.
O laboratório permanente.
Kardec, durante o período de 1858 a 1866, publicou na “Revue Spirite”, seu imenso laboratório, 93 (noventa e três) comunicações exemplificando o trânsito de informações dos entes queridos, sempre com análises críticas e ponderadas. Neste escopo, denominou as dissertações como “Palestras familiares de além-túmulo”, como ilustra a contida na “Revue” de Janeiro de 1858, em uma evocação intitulada “Mamãe, aqui estou!”, na qual havia informações que o médium não tinha conhecimento.
Nas mencionadas “palestras familiares”, Kardec, sistematicamente, analisou as mensagens, sempre eivado de seu habitual bom senso e critério como na “Revue” de novembro de 1860, quando, apesar, de apontar que as comunicações seriam uma das mais doces consolações que o Espiritismo poderia proporcionar, ele enfatiza:
“não é preciso nada aceitar sem tê-lo submetido ao controle da razão, e aqui a razão e os fatos nos dizem que essa teoria não poderia ser absoluta”.
As evocações.
Adiante, em “O livro dos Médiuns”, no Item 273, Kardec destaca:
“É também conveniente só com muita prudência fazer evocações na ausência das pessoas que as pedem, e no mais das vezes é mesmo preferível não fazê-las. Porque somente essas pessoas estão aptas a controlar as respostas, a julgar a identidade do Espírito, a provocar os esclarecimentos que as respostas suscitarem e a fazer as perguntas ocasionais a que as circunstâncias podem levar. Além disso, sua presença é um motivo de atração para o Espírito, geralmente pouco disposto a se comunicar com estranhos pelos quais não tem nenhuma simpatia. Em suma: o médium deve evitar tudo o que possa transformá-lo em instrumento de consultas, o que, para muita gente equivale a ledor da sorte”.
Mas não fica, o Professor francês, nisso. Adiante, no Item 275 e sucessivos, do mesmo livro, ele pontua:
“as causas estranhas ligam-se principalmente à natureza do médium, à condição da pessoa que evoca, ao meio em que faz a evocação e, por fim, ao fim que se propõe. Certos médiuns recebem mais facilmente as comunicações de seus Espíritos familiares, que podem ser mais ou menos elevados; outros são aptos a servir de intermediários a todos os Espíritos. Isso depende da simpatia ou da antipatia, da atração ou da repulsão que o Espírito do médium exerce sobre o evocado, que pode tomá-lo por intérprete com satisfação ou com aversão”.
Os desvios mediúnicos.
Kardec, para evitar o charlatanismo, as fraudes e as dúvidas contumazes que podem envolver a prática mediúnica e as respectivas mensagens produzidas, também se dedicou, no Item 304 e sucessivos, novamente de “O livro dos Médiuns”, aos cuidados que seriam necessários para identificar possíveis desvios na prática mediúnica, com a participação de médiuns interesseiros e de Espíritos inferiores, em verdadeiro “consórcio” espiritual. Neste sentido, ele enfatiza, no Item 323, o imprescindível parâmetro de aferição:
“Em resumo, repetimos, a melhor garantia está na moralidade reconhecida dos médiuns e na ausência de todas as causas de interesse material ou de amor-próprio que pudessem estimular-lhes o exercício das faculdades mediúnicas, porque essas mesmas causas podem levá-los a simular aquelas que não possuem”.
Em um entendimento basilar, a análise do fenômeno psicográfico é o elemento que poderá (ou não) conferir validade e veracidade à comunicação (conteúdo). Elementos acessórios, presentes nas situações de fato, envolvem tanto a credibilidade de quem a emitir/recepcionar, isto é, o Espírito (desencarnado) comunicante e o suposto médium, bem como a credulidade de quem a receber (o interessado, como o familiar do ente que faleceu e que retorna com sua mensagem). Neste caso, ambas as condições enquadram um critério pessoal.
Em outras palavras, qualquer coisa que seja dita servirá para “aquecer” (consolar) os corações que sofrem, independentemente de serem verdadeiras ou não as informações que o médium disponibilizar.
As “Cartas Consoladoras”.
As chamadas “Cartas Consoladoras” prosseguiram no “modo brasilis” do Espiritismo, envoltas numa “aura” de muito misticismo, superstição, sobrenatural e credulidade cega, porque, aqui, talvez mais do que em qualquer outra parte do orbe, haja um “caldo cultural” propício, decorrente da miscigenação de etnias e religiões. Tem-se, portanto, neste rincão sul-americano, um “Espiritismo diferente”, muito mais identificado sobre alcunhas como espiritolicismo e espirigelicismo, em função das “misturas” entre conceitos espíritas (e suas deturpações, derivadas da visão pessoal de adeptos e simpatizantes) e práticas, rituais e percepções litúrgicas do catolicismo, do neopentecostalismo e, também, das religiões de matiz africana, como Umbanda e Candomblé.
Em amplo espectro, poderíamos dizer que aqui grassa um “colorido” espiritualismo sui generis, multifacetado, ramificado, permissivo e inclusivo (!?), onde o ponto principal não é a análise racional, lógico-sistemática, à luz da filosofia e da ciência espíritas (lembremos que foram essas as duas estacas sobre as quais o Espiritismo se erige e se sustenta), mas a aceitação tácita do que “provenha” do “Alto”, por meio de “missionários” que trazem afirmações peremptórias (gerais ou pessoais), aceitas sob viés dogmático e sobrenatural.
Mas, nem sempre foi assim…
Chico Xavier.
No chamado meio espírita, tais mensagens foram, por décadas, produzidas pela mediunidade ímpar de Francisco Cândido Xavier e popularizadas de forma marcante no Brasil, apresentadas, depois, em muitos dos livros do escritor-médium. Não resta dúvida, todavia, em relação à produção chicoxavieriana que, além de ser TOTALMENTE INCONSCIENTE, sem qualquer contato do medianeiro com informações dos entes queridos que compareciam às reuniões públicas em Uberaba (MG), apresentou, em sua totalidade, o teor verdadeiro das comunicações, em função dos detalhes e fatos descritos em cada carta, depois confirmadas – sem o excesso de emoção particular das situações que envolvem a espetacularização contemporânea (grandes e luxuosos auditórios, presença de dirigentes e personagens populares, com música ao vivo e o beija-mão característico da idolatria mediúnica).
Chico, por isso, é um capítulo à parte na “História do Espiritismo Brasileiro” e, em relação a essa tipologia de comunicação mediúnica, NÃO PAIRAM DÚVIDAS NEM SUSPEITAS, destacando-se, entre os espíritas em geral e também entre os populares, leigos ou simpatizantes da Doutrina dos Espíritos, o pleno e inconteste reconhecimento público de sua missão (a de informar o que os Espíritos lhe ditavam e a de efetivamente consolar os entes queridos saudosos e desesperados).
O Brasil-espírita.
É, contudo, MUITO DIFERENTE a situação que o Brasil Espírita vivencia atualmente. E já vem de algumas décadas, três ou quatro, infelizmente. Hoje, “qualquer um” é um “consolador”! Forte isso, não? Pois tem de ser… Quando dizemos “qualquer um” é porque, justamente, entre o trigo dos verdadeiros médiuns, que efetivamente realizam intercâmbio com os desencarnados que assinam mensagens dirigidas a públicos restritos (familiares e amigos), tem-se o joio composto por pseudomédiuns, cuja “mediunidade” talvez nem exista, seja uma encenação, uma prestidigitação, uma fraude, além das outras também conhecidas situações no meio espírita em que médiuns, antes autênticos, acabam enveredando por trajetos de honra, orgulho, vaidade, fama e bens materiais e valores financeiros associados à “tarefa”, perdendo, pois, o auxílio de Inteligências Sensatas (guias familiares e Espíritos adiantados), passando a ser “massa de manobra” de Espíritos brincalhões e zombeteiros.
Os nossos tempos, são dinâmicos e instantâneos, com uma profusão de mídias sociais, em que se constata a ampla facilidade de obtenção de informações e dados pessoais de quem quer que seja. Muitas pessoas, então, neste segmento “mediúnico”, tem se valido de informações públicas (redes sociais) do “morto” e de seus afins (que lamentam a saudade ou recordam passagens de sua existência, com pesar, luto e carinho), o que intensifica os questionamentos sobre a veracidade das comunicações, ao mesmo tempo em que, em função do alto peso de emotividade dos envolvidos, torna ainda mais penosa, complexa e difícil a tarefa de averiguação dos conteúdos.
Vale destacar, também, que as tais cartas ganham ainda maior vulto, graças aos próprios recursos cibernéticos, porque se popularizam rapidamente em face do apelo que contêm, sendo protagonizadas por meio de distintos personagens – a quem se atribui a condição de “médiuns”, alguns anônimos e outros bem “famosos”.
Critérios de validação.
Por isso se insiste na verificação por terceiros, idôneos e distantes dos personagens partícipes do evento psicográfico (isto é, o médium, seus auxiliares, os promotores de reuniões desta natureza e, é claro, os familiares que desejam receber os “comunicados do Além”). Sem isto, de modo coerente com a Filosofia Espírita, estaremos não diante de fenômenos mediúnicos críveis e verossímeis, mas, sim, de situações em que a fé cega e a emotividade, somada à “necessidade” de receber notícias daquele que faleceu, podem produzir o ilusionismo e a crendice exacerbada.
Deste modo, perante a infinita multiplicação das “cartas da imortalidade”, os espíritas e, também, os espiritualistas, devem se valer de seguros e necessários critérios para aquilatar a veracidade das mensagens e dos próprios “transes” mediúnicos. Para isto, não conhecemos nada melhor e mais adequado do que o rito de controle estabelecido por Kardec, sobretudo em “O livro dos Médiuns”, para realizar, com bom senso, racionalidade e instrumentalidade, a análise crítica de cada mensagem em seus mínimos detalhes.
Em qualquer evocação, recordemos que nada mais é necessário do que o nome do desencarnado, a data de falecimento do ente querido e a presença do familiar, pois, se assim o quiser, o Espírito se manifestará voluntariamente e prestará as informações necessárias e suas particularidades. Simples, direto e objetivo. Sem floreios, invencionismos ou adornos. Porque a mediunidade é simples, é natural, e se baseia numa destacada Lei que rege os “vivos” e os “mortos”: a de sintonia ou afinidade.
Sem ela, pode ser tudo, menos Espiritismo!
Fontes:
KARDEC, A. “O livro dos Espíritos”. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE, 2004.
KARDEC, A. “O livro dos Médiuns”. Trad. J. Herculano Pires. 20. Ed. São Paulo: LAKE, 1998.
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Aliado a isso, é justo destacar a sanha, não rara, de dirigentes e federativas que se empenham em manter suas instituições movimentadas e abarrotadas, frequentemente disputando entre si os frequentadores. Para assegurar o sucesso desse objetivo, muitas vezes sem qualquer critério, valida-se a livre comercialização de livros e até a venda de cursos, ainda que de forma subliminar, promovendo expositores, sejam eles medalhões ou não, do Espiritismo. São os vendilhões dos “templos” espíritas.
Pelo pouco que ainda conheço, esse fenómeno de aproveitamento da dôr, ainda não existe em Portugal . É possível existir dentro das paredes das casas espíritas, mas não tem esse vínculo ligado ao espectáculo. Numa das últimas lives do LIPE, ouvimos um médiun aí no Brasil muito conhecido, que nos falou de uma situação em que uma mãe queria a todo o custo uma mensagem do seu filho “morto” e ele não sentia nenhuma presença espiritual que pudesse consolar a pobre mãe , então porque ele estava condoído por nada ter para lhe dizer, um espírito familiar veio e disse para ele repetir exactamente o que lhe devia dizer, q era ….se ela queria uma mentira que a consolava ou a verdade que a esclarecia? É isso mesmo que um médiun honesto deve fazer. Para isso Kardec deve ser lido,estudado e conhecidas as suas instruções que lhe foram dadas pelos Espíritos. Somos nós os que temos o dever de espalhar essas ideias e de incentivar a todos os que podem fazer essa diferença, para honrar Kardec e os q tiveram boa vontade de nos juntar neste grupo e em outros que fazem este trabalho de divulgação da Doutrina dos Espíritos .Foi o que o Nelson fez neste excelente texto.
Texto excelente, trazendo os esclarecimentos das obras fundamentais do Espiritismo bem como a arte de camuflar os interesses próprios que diversos nomes do movimento espírita nacional realizam. Já passei por situações anos atrás em que ao chamar oradores de fora para falarem na cidade em que moro: ambos, em conversar particular comigo, colocaram que, dentro da política do Espiritismo (sic) deveriam então me convidar para falar na cidade deles. Fui, porém, aguardavam um “show” de psicografia pública, este não veio para a decepção deles, mas o esclarecimento foi dado e, de um orador ouvi o seguinte ao final: “Quando você falar, conte suas experiências, não se prenda muito à teoria não”. E acrescentou: “Apesar disso, uma das mulheres mais críticas de nossa sociedade, estava aqui assistindo sua palestra e ela disse que você conhece a.Doutrina Espírita de forma profunda e que sua oratória é boa”. Aí, nem falei mais nada, retornei à minha cidade com a consciência de dever cumprido e não mais mantive contatos com tais pessoas que usam da Doutrina Espírita para seu crescimento profissional e financeiro, vendendo livros rasos de autoajuda.