Marcelo Henrique
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Porque para ti, eu me chamarei A Verdade e todos os meses, aqui, durante um quarto de hora, estarei à tua disposição” (Kardec, Allan. Obras Póstumas. Segunda Parte. A minha primeira iniciação ao Espiritismo).
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Um dos fascinantes temas que tangenciam o pensamento espírita é sobre as identidades dos Espíritos comunicantes. Kardec, mesmo, alerta para a condição secundária do nome ou da assinatura, avaliando como de maior importância a mensagem e a sua concordância com os postulados (princípios) espíritas. Mas, em paralelo, a identificação do comunicante, ao médium e para a posteridade, com o registro e a divulgação da comunicação, também é elemento importante para outras análises, como a coerência (de estilo) e as evidências acerca da personalidade – agora desencarnada – em cotejo com o que foi e produziu quando de sua última existência conhecida.
Num segmento mais específico das lucubrações kardecianas, há toda uma “celeuma” em torno de um dos Espíritos que ditaram orientações a Kardec e que se posicionou, ao lado de Erasto e S. Luís como os mais evidentes em toda a obra. Trata-se da identificação do Espírito Verdade. De início, friso que compactuo com o lúcido pensamento do falecido escritor Jorge Rizzini – biógrafo e amigo pessoal do Professor Herculano Pires, acerca da identidade do referido Orientador.
Há quem pretenda, em face de afirmações esparsas contidas nos textos da Codificação e, também, movido pelo sentimento pessoal de vincular uma e outra personalidade, que o referido Espírito tenha sido o homem Jesus de Nazaré. Respeitamos quem pensa e, até mais, quem pesquisa esta questão, com os olhos enamorados da personalidade do Rabi e, diante da excelência dos ensinos contidos na Doutrina Espírita, imaginar que ele, pessoalmente, estivesse dando cumprimento à profecia do “outro consolador”, o prometido – por Jesus (“O Cristo Consolador”, cap. V, de “O evangelho segundo o Espiritismo”).
Se a profecia, para nós espíritas, se cumpriu, ela não está materializada nem num homem (Espírito encarnado), nem nas orientações de um único “guia”, posto que a obra “consoladora” é, como bem predisse Kardec, inclusive na Introdução de “O evangelho segundo o Espiritismo”, uma obra COLETIVA.
Assim, comungo com Rizzini para entender que o Espírito Verdade nada tem a ver com uma plêiade, muito menos com o homem (agora, Espírito) Jesus. Ele mesmo acentua ter sido um Espírito familiar de Kardec, o qual teria vivido anteriormente em nosso planeta, na condição e posição de “um ilustre filósofo da antiguidade”. Vale a pena ler, deste autor, a obra “Kardec, Irmãs Fox e Outros”.
Pensamos da mesma forma. Não que Jesus de Nazaré não tenha se comportado como um grande filósofo. Não foi um religioso, embora respeitasse as crenças de seu povo e sua família, no Judaísmo e, como sabidamente nós espíritas reconhecemos, não fundou nenhuma religião. Foram os homens que se enamoraram de sua filosofia é que cunharam religiões em torno de seu pensamento.
Chego, até, maieuticamente falando, duvidar da expressão que é atribuía ao Rabi, de que teria considerado um dos expoentes de seu ministério, Pedro, como “uma pedra sobre a qual estaria erigindo a SUA igreja”. Como as religiões estabeleceram seus credos e liturgias e escreveram – ou escolheram – dentre os (quase) noventa evangelhos existentes, os quatro “interessantes”, também apuseram, neles, como antes, a Humanidade também apôs no Velho Testamento, “falas” e situações que interessavam aos cânones, aos dogmas e às filosofias religiosas. Não tenhamos nenhuma dúvida disso.
Tenho falado e escrito que, dos Evangelhos, sobra pouco. Faça, você, leitor, um pequeno exercício. Abra “O evangelho segundo o Espiritismo” e, ao lado, abra um exemplar do “Novo Testamento”. Pode ser aquele gratuito, dos gideões, ou, até, se lhe for do interesse, a recente edição (!) publicada pela Federação ESPÍRITA Brasileira! Incrível, mas é!
Neste exercício, avalie, dos textos contidos nos quatro evangelistas (João, Lucas, Marcos e Mateus) – muitos dos quais se repetem, em relação aos fatos relatados – com os trechos que integram o Evangelho kardeciano. Você irá perceber que a maior parte, cerca de setenta por cento, ficou de fora no “nosso” evangelho, não é mesmo?
E isto é explicado pelo próprio Professor francês, logo abaixo do título do “Evangelho espírita”, quando ele apõe: “Contendo a explicação das máximas morais do Cristo, SUA CONCORDÂNCIA com o Espiritismo e sua aplicação nas diversas situações da vida” (grifos nossos). O que não fosse considerado “máxima moral” ou não tivesse “concordância” com a Doutrina dos Espíritos, por representar inclusões feitas em nome de dogmas religiosos, foi desconsiderado pelos Espíritos Superiores e, consequentemente, por Kardec.
Nós que nos debruçamos sobre TODA a obra de Kardec, percebemos que as informações acerca das condições pessoais de seu trabalho estão dispostas de modo esparso em suas 32 obras. Aqui ou ali se pinçam elementos, na forma de relatos, recordações, dissertações e, até, desabafos, em que o Mestre lionês dá detalhes e nuances de sua atividade espírita. Também no seu “laboratório”, a “Revue Spirite”, há elementos importantíssimos que não podem ser deixados de lado. Em especial, remetemos o leitor ao exame do fascículo de 1862, na edição que eu tenho em mãos às páginas 72 e 172, para chegar às seguintes diagnoses conclusivas:
1) O Espírito Verdade é um Espírito familiar de Allan Kardec, exatamente como está descrito na resposta à questão 514 de “O livro dos Espíritos”, posto que é alguém da família espiritual, o “amigo da casa”. Kardec inclusive, em comentário, assevera que esta vinculação entre o encarnado e o referido “amigo” pode ser mais ou menos durável, com o fim de ajudar o que transita por este orbe.
2) A divulgação do nome (real, da última encarnação conhecida) do Espírito, assumindo-se apenas como um “filósofo na Antiguidade”, não iria conferir, à obra em curso, nenhum proveito.
3) É, ele, uma individualidade espiritual, não podendo ser confundida ou conceituada como falange, plêiade ou reunião de Espíritos Superiores. Kardec mesmo destaca: “A qualificação de Espírito de Verdade não pertence senão a um só, e pode ser considerada como um nome próprio. Está especificada no Evangelho” (“Revue Spirite”, Julho/1866, “Qualificação de santo aplicada a certos Espíritos”).
4) Kardec nunca afirmou ser Jesus o Espírito Verdade e, também, ao analisar uma mensagem obtida na Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas, atribuída a Jesus, entendeu que este jamais se comunicaria diretamente, pela condição espiritual haurida no conjunto de suas encarnações e ao final de sua última existência, em Nazaré (conforme consta em “O livro dos médiuns”, cap. XXXI, item IX).
Por fim, também o Codificador em suas “memórias”, destaca em “Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas”, decorridos dois anos do seu inicial contato com tal individualidade espiritual: “Tendo eu interrogado esse Espírito, ele se deu a conhecer sob um nome alegórico (eu soube, depois, por outros Espíritos, que fora ele um ilustre filósofo da Antiguidade)”.
Este tema, por oportuno, assim como outros relativos tanto à missão do Codificador e as relações entre Espiritismo e a doutrina de Jesus de Nazaré (já que não gostamos do uso da expressão “Cristianismo” para a isso se referir, em função de todo o contexto que envolve as religiões ditas cristãs) permanece como um “celeuma” ou “cisma” entre os espíritas – estudiosos ou simpatizantes – até que, mediante o método kardeciano, intitulado “Controle Universal dos Ensinos dos Espíritos” (CUEE), se inquiram os Espíritos Superiores, e o próprio Kardec a esse respeito, para continuarmos aprendendo e fazendo progredir a Doutrina Espírita.
Não obstante, pelos fatos e tópicos aqui transcritos, nossa afirmação é categórica: Espírito Verdade não é Jesus!
Imagem de Rosy / Bad Homburg / Germany por Pixabay