Marcelo Henrique
Revisões inacabadas foram utilizadas para dar a aparência de autenticidade às adulterações, em edições póstumas das duas obras de Kardec, justamente para dar aparência de veracidade às novas publicações. Todavia, nada – nem mesmo uma revisão inacabada – no âmbito histórico, jurídico-legal e doutrinário autorizariam a ilegalidade de um novo conteúdo apócrifo da obra, como se de Kardec fosse.
Os fatos envolvendo a adulteração e a recuperação da edição original de A Gênese e O Céu e o Inferno, de Allan Kardec, entraram definitivamente para a história do Espiritismo, dada a gravidade do ocorrido e a importância do resgate doutrinário, realizado desde 2017 com a publicação de “O Legado de Allan Kardec”, pela pesquisadora Simoni Privato, e “Nem Céu nem Inferno”, por Paulo Henrique de Figueiredo e Lucas Sampaio. Em vista da clareza dos fatos e do direito aplicável, federações espíritas de diversos países (França, Argentina, Portugal etc.) restabeleceram os textos originais da obra, como também o fizeram relevantes editoras e instituições no Brasil.
Isso porque, de acordo com o Direito Autoral no mundo inteiro e desde a época de Kardec, apenas o autor tem o direito de modificar sua própria obra, razão pela qual o novo conteúdo, surgido e depositado após sua morte, é considerado apócrifo e ilegal, devendo ser descartado. A razão de ser da norma é proteger a memória do autor e a cultura em geral, não prevalecendo conteúdos duvidosos, que possam ter sido modificados em qualquer momento e que não tenham recebido o depósito legal com o autor em vida. É esse o ato jurídico oficial que atesta a autoria e autenticidade do conteúdo de uma obra.
No caso de “A Gênese”, apenas um depósito legal foi feito durante a vida do Professor Rivail, logo após o pedido da primeira tiragem da obra, com 3.000 exemplares, que, conforme a praxe, permitiriam a publicação das três primeiras edições a partir de janeiro de 1868. Em fevereiro do ano seguinte, Kardec ainda solicita a impressão de mais 2.000 exemplares, que permitiriam publicar a quarta e a quinta edições. Todavia, como não houve novo depósito legal (necessário caso houvesse novo conteúdo), ambas as edições obrigatoriamente deveriam ter o mesmo conteúdo original, o que não ocorreu com a quinta edição, publicada com adulterações após a desencarnação do autor. Quanto à obra “O Céu e o Inferno”, apenas as três primeiras edições foram publicadas, também havendo só um depósito legal com o autor em vida, em 1865.
O que pouco se sabe é que, para praticar o malfeito, os adulteradores aproveitaram-se de uma revisão inacabada que Kardec realizava sobre essa obra. Após o lançamento do livro, Kardec passou a trabalhar na revisão do mesmo. Conversava com Espíritos sobre a revisão enquanto convivia com os problemas de saúde que recrudesciam havia alguns anos. Já em fevereiro daquele ano, um Espírito o orientava a não retirar nenhum conceito doutrinário da obra. Essa comunicação, a propósito, viria a ser adulterada em duas oportunidades, em reação à denúncia da adulteração de “A Gênese”, por Henri Sausse, em 1884.
Em 25 de setembro de 1868, Kardec diz em carta que o trabalho de revisão estava na metade e que “O Céu e o Inferno” também aguardava. Ocorre que em 13 de outubro, menos de um mês depois, ele escreve outra carta informando que, em razão de seu delicado estado de saúde, precisou suspender todo trabalho além do estritamente necessário. Vemos que, em seguida, Kardec passa a se dedicar apenas à “Revue Spirite” e à constituição futura do Espiritismo, abandonando o trabalho de revisão das obras fundamentais.
Desencarnado o Professor Rivail em 31 de março de 1869, seus sucessores abandonaram seu plano para a fase de direção coletiva do Espiritismo, substituindo-a por uma empresa meramente comercial pela qual sua viúva Amélie perderia todo o poder sobre a estrutura do Espiritismo. Com essa empresa, a “Librairie Spirite” tornava-se editora em julho de 1869, e abria espaço para a elaboração de uma edição adulterada de “O Céu e o Inferno”, com um depósito legal nulo (por ser posterior à morte do autor), além de um exemplar clandestino de “A Gênese” (sem qualquer registro oficial) encontrado recentemente na Suíça. Pois somente em 1872 a edição adulterada de “A Gênese” ganhava um depósito legal, confirmando definitivamente a adulteração.
As revisões inacabadas haviam sido utilizadas para dar a aparência de autenticidade às adulterações, exatamente o que os adulteradores necessitavam para que não houvesse questionamentos sobre a autoria das novas publicações, e embora nada, nem mesmo uma revisão inacabada, autorizasse a ilegalidade de um novo conteúdo apócrifo da obra, como se de Kardec fosse.
Felizmente, o trabalho recente de diversos pesquisadores vem permitindo compreender os graves prejuízos doutrinários e restabelecer os verdadeiros textos de Kardec, sendo uma grande oportunidade para nossa atual geração compreender de forma mais pura e profunda os princípios originais da Doutrina, em todo seu alcance no sentido da renovação social.
Carta de 13/10/1868 em que Kardec afirma que, por questão de saúde, necessitou suspender todos os trabalhos além do estritamente necessário.
Exemplar clandestino (sem registro) e adulterado de A Gênese editado pela Librairie Spirite, que somente foi constituída meses após a desencarnação de Rivail.
Depósito legal da 4ª edição de O Céu e o Inferno em jul/1869, evidenciando a inautenticidade da autoria e do conteúdo.
Depósito legal da 5ª edição de A Gênese em dez/1872, evidenciando a inautenticidade da autoria e do conteúdo.
Sinto-me previligiada por ter a possibilidade de ter neste meu tempo de contacto com a obra de Kardec, o acesso à verdadeira e legitima mensagem que o insigne Codificador nos deixou. Gratidão a todos quantos trabalham com honestidade e enorme dedicação para que o verdadeiro objectivo de dar a conhecer a Filosofia Espírita seja atingido. Obrigada.