De todas as mulheres, Amélie, por Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

Tempo de leitura: 14 minutos

De todas as mulheres, Amélie

Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique

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“Dama do Espiritismo é dessa forma que percebemos essa mulher. Amante das artes e das letras, possuidora de uma visão acurada, trabalhou com seu companheiro desde sempre e legou à posteridade o exemplo: não nos tentem calar, não tentem desmerecer nosso conhecimento, nossa capacidade, nós somos imortais, portanto nosso trabalho constrói o mundo!” (RIVÉ; HENRIQUE, 2024).

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E, assustadoramente, alguém descobriu que a Terra não era o centro do Universo… Mas, em pleno século XXI isto ainda pode causar espanto em alguns. Todavia, sabemos que a Terra possui a forma arredondada e seus polos são levemente achatados. Galileu Galilei, o “pai da Ciência Moderna”, um nome, uma conquista, foi extremamente importante para o caminhar da Humanidade, pois naquele tempo a Igreja Católica começou a perder a sua supremacia em termos de “dona” das verdades.

É neste contexto que os seguidores de Galileu começaram a debater conceitos ortodoxos e efetuar um rompimento entre Religião – e uma só, nesse tempo – e Ciência, até então subordinada à Igreja. O Renascimento – séculos XIV a XVI – emerge, então, de uma necessidade de se voltar aos clássicos, ao antropocentrismo – o Homem como centro do Universo -, à razão,  ao conhecimento científico. Este é conhecido como um período de transição entre a Baixa Idade Média e a Modernidade.

Como tudo avança e a História é um caminhar lento e contínuo, do Renascimento vem o Iluminismo, também é movimento cultural que, na França, tomou força, trazendo mudanças sociais, políticas e econômicas. O conhecimento passou com isso a ser a forma mais importante de poder. O Iluminismo propõe a razão como forma de exclusão da força religiosa que apresentava ao ser humano um Deus mórbido, vingativo e O utilizava para que as massas fossem contidas. A doutrina religiosa prescreveu que a fome e a miséria fossem vistas como forma de se ter um Paraíso após a morte. Contudo, para os Iluministas a forma real de se chegar a Deus era por meio da Razão.

Descartes, em seu “Discurso do Método”, propôs o questionamento: tudo é e pode ser questionado, opondo-se frontalmente ao pensamento da época; segundo ele, a Razão seria usada para a obtenção da verdade. Chega a Enciclopédia, com Denis Diderot , propiciando que o conhecimento pudesse chegar às massas, e os vários campos de pensamento passaram a ser disseminados a um quantitativo cada vez maior de pessoas. A marcante alternativa à ditadura da religião.

Além disso, muitos pensadores começaram a prescrever novos modelos econômicos, que pudessem propiciar às coletividades maior justiça social, maior liberdade e, consequentemente, progresso para todos. Não mais somente o berço é que deveria proporcionar condições dignas de vida. Esse pensamento, então, gerou a queda de governos absolutistas, pela ressonância das ideias iluministas que eram alicerçadas na ciência e, portanto, propiciavam o desenvolvimento intelectual de um número muito maior de pessoas.

Na sequência, Montesquieu, um dos renomados, se não o maior autor dessa época, em sua obra, “O Espírito das Leis”, sugeriu a tripartição dos poderes, como forma de evitar os abusos dos governantes. Nessa época, a aristocracia e o clero viviam à custa do trabalho dos pobres. Em face da pobreza e da miséria, a fome e uma infinidade de doenças eram “patrimônio” exclusivo dos trabalhadores e dos necessitados (quadro, aliás, não muito diferente do de hoje).

Este cenário de fome, doenças e toda sorte de agruras, sobretudo numa França em crise fez eclodir a Revolução Francesa, 1789 a 1799, marcada pelos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, inspiradores das conquistas sociais de todos os povos, daí por diante.

O pequeno histórico acima chama a atenção por não consignar o nome de nenhuma mulher que tenha sido importante. Onde estavam, pois, as mulheres? Estariam escondidas nos porões de suas casas, embaixo das camas, ou a História – escrita, nada mais, nada menos, pelos próprios homens, procurou apagar o trabalho feminino, assim como as lutas a que se alinharam e as causas que defenderam. Curioso é que, em termos de representatividade, olhando para o nosso século e parte do anterior, como testemunhas oculares, inúmeras mulheres participaram ativamente de grande parte dos movimentos sociais representativos.

Mas, como falamos, a pouco, da França, naquela época, o Rei foi muito pressionado e convocou os Estados Gerais, e a população pode escrever seus anseios no que foi denominado Caderno de Queixas (“Cahiers de Doléances”). Neles, as mulheres fizeram seus pedidos de mais educação, mais emprego, mais independência e mais autonomia. Revolucionárias!

Paris, a cidade luz, no Século das Luzes – lembrando que luz é o conhecimento como na Caverna de Platão, em que aquele que sai jamais retorna da mesma forma. Mas há que se falar, igualmente, em sombras ou escuridão. Maximilien de Robespierre (1758-1794), jurista e político, que presidiu a França durante a fase mais caótica da Revolução Francesa, o Período do Terror. Tornou-se famoso por executar suspeitos (!) antirrevolucionários ou, até, moderados: 2.639 pessoas, homens e mulheres, foram guilhotinados.

Mas as revoluções da burguesia foram marcantes exigiam direitos para os homens. É isto que consta da Declaração dos Direitos dO Homem e dO Cidadão – veja as marcações masculinas –, em 1789, numa evidente utopia universal. Utopia não apenas porque o conjunto dos Direitos nela grafados não é vivido por TODOS os humanos, mas, principalmente, porque em nenhum momento foram incluídas as mulheres (ou as minorias como se fala atualmente), e todas as pessoas lutaram para essa conquista… Não, elas passam ao largo do documento!

Versailles era para poucos! E, quase todos, homens!

Mesmo assim, nessa atmosfera insalubre, destacadas mulheres ousaram propor uma “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”. Marie de Guze, sob a alcunha de Olympe de Gouges assinava panfletos e os entregava pelas ruas de Paris, diante da estupefação geral. Principalmente porque ela era… mulher! E, como já dissera e consagrara a Igreja, “mulher não tem alma” e deve pertencer a alguém. Por isso, denunciada e presa, não houve qualquer chance para a nossa heroína girondina, que foi guilhotinada, denunciada como contrarrevolucionária. O Terror seguia mostrando sua força, sem medo do que o futuro lhe esperava: uma verdadeira mudança social, gestada e construída por revolucionárias e revolucionários que tanto lutaram, pagando por seu sangue e vidas o progresso histórico.

Invariavelmente, as mulheres foram e continuam sendo – salvo honrosas exceções – alijadas das narrativas. E não só delas, mas das posições de dianteira e liderança, ainda que, vez por outra, se tenha uma mulher governante ou chefe de algum poder estatal ou de posição hierárquica superior em uma grande empresa. Mas, os heróis “das pátrias”, das “histórias de Estados, povos, civilizações” são, em geral, todos masculinos; são homens! Toda a história feminina, inclusive, foi escrita por homens – nos disse Simone de Beauvoir (1908-1986), escritora, intelectual, filósofa existencialista, ativista política, feminista e teórica social francesa – e por eles foram consagradas as narrativas.

Da mulher, do lar, pacata e servil, com transferência “natural” de poder do pai para o marido, chegamos à bela dama da aristocracia, que passeia escoltada por seus criados. Na contemporaneidade, são as mulheres que executam as mesmas tarefas que os homens, em entes privados ou públicos, com, ainda, diferenças salariais e – mais que isso – com pouca representatividade em cargos de liderança e chefia. E, como se a História se repetisse por fraude, por imitação, persistem mulheres que portam “coleiras invisíveis”, submetidas aos homens-maridos, de diversificadas maneiras. Seguem, pois, sem (quase) nada construírem, nem designarem, distantes de qualquer protagonismo (ainda que tenham virtudes, valores ou “talentos”), porque alguém por ela vive. E por ela decide.

Um adendo: ainda se convive com discursos ou insinuações em relação às mulheres “ativas” socialmente. Quantas delas, que “ousam” ocupar espaços, reivindicar direitos naturais, bradar por equidade, não são tachadas de vulgares, “homens de saia”, ou de promíscuas?

A história, portanto, tem sexo: é o do olho do macho por quem é escrita. Apesar de ser, ela, a historiografia, uma palavra de outro gênero. Negras e negros, indígenas mulheres e homens, pobres de todos os gêneros, homossexuais, transexuais, pansexuais, bissexuais, assexuados, e tantos outros, inomináveis, não possuem sua história narrada – porque não se lhes assegura o direito de, eles mesmo, a escreverem. Quantos contos foram esquecidos? Quantas narrativas, depreciadas? Quantas canções, relegadas à obscuridade? Quantas preces tidas como impróprias? Quantas rezas e curas intituladas impróprias, indecentes, maledicentes, proscritas, bruxólicas? As Marias, tão plenas de vida, tão cheias de cores, sabores, cheiros, essências, motivações, espíritos, não deixaram qualquer lembrança… Foram jogadas ao leu. É como se não tivessem vivido…

Michelle Perrot, historiadora e mulher, introduz-se em um meio sobejamente masculino e exclama: “na França, a História é uma atividade muito prestigiada e, portanto, muito masculina” (SCHVARZMAN, 1995, p. 29), acerca dos dias referenciados acima. Mas, mesmo assim, as lutadoras francesas não titubearam, saindo às ruas, sem medo, em marcha na busca pela comida a matar a fome do corpo e do Espírito também. Havia fome e sede de educação, de saúde, de moradia, de trabalho e emprego, de saneamento, de cultura, de lazer, de direitos políticos… Teciam “outra história”, que não foi contada nem decantada, num esforço de guerra, de vida e morte, de salvação. Mas foram esquecidas…

Mesmo que mulheres das altas rodas sociais escrevessem cartas e petições acerca das políticas de governo da época, solicitando atenção e transformações. Sophie de Condorcet – uma “salonière” (trabalhadoras de salões de alta costura) muito influente, junto a seu marido, o Marquês Marie Jean Antoine Nicolas de Caritat (1743-1794), escreveu o texto “Sobre a admissão das mulheres aos direitos civis”. Nele, ficou grafado: “os direitos dos homens resultam simplesmente do fato de serem seres racionais e sensíveis, suscetíveis de adquirir ideias de moralidade e de racionar sobre essas ideias. As mulheres que têm, então, as mesmas qualidades, têm necessariamente os mesmos direitos” (ALVES, 2018, s. p.).

Mas foi no dia 3 de julho de 1790 (um ano depois do início da Revolução Francesa) que o Marquês de Condorcet publicou o texto “Sobre a admissão do direito de cidadania às mulheres” (ver link na referência abaixo) que explicita sua defesa da cidadania feminina na Assembleia Nacional. O texto é uma verdadeira aula sobre equidade de gênero. Defendendo o direito de voto feminino na Assembleia Nacional. Logo na primeira página, ele diz:

“os direitos dos homens resultam simplesmente do fato de serem seres racionais e sensíveis, suscetíveis de adquirir ideias de moralidade e de raciocinar sobre essas ideias. As mulheres que têm, então, as mesmas qualidades, têm necessariamente os mesmos direitos”.

Também Etta Palm d’Aelders (1743-1799), uma eloquente feminista, escreveu o “Discurso sobre a Injustiça das Leis em Favor dos Homens, às Despesas das mulheres”, proferido, em 1790, na Convenção Nacional Francesa. Ela foi uma das fundadoras da pioneira organização exclusivamente feminina naquele país, a “Société patriotique et de bienfaisance des Amies de la Vérité” (Sociedade Patriótica e Benevolente dos Amigos da Verdade). D’Aelders usou as plataformas políticas no sentido de instruir os cidadãos franceses sobre as lutas das mulheres, tanto na esfera pública quanto na privada, demonstrando os danos às vidas das mulheres em decorrência de sua inferioridade social.

Todavia, nessa época turbulenta e fervilhante, mais precisamente em 23 de novembro, na cidade de Thiais, a dezenove quilômetros de Paris, numa família abastada, nasce uma menina: Amélie Gabriele Boudet (1795-1883). Sua mãe era descendente de artistas franceses e, junto a seu marido, estimulou a menina a estudar, crescer moral e intelectualmente. Aos onze anos, Amélie foi levada a Paris para completar sua educação formal em uma Escola Laica, que aplicava o método de Pestalozzi. Formou-se professora de Letras e de Belas Artes. Poetisa e Professora escreveu, no mínimo três obras: “Contos Primaveris”, “Noções de Desenho” e “O Essencial em Belas Artes”.

Para saber mais sobre a Sra. Boudet-Kardec, a Grande Dama do Espiritismo, recomendamos a leitura do nosso artigo, publicado no Portal COM Kardec [1].

O roteiro e o cenário da época enquadrava as mulheres como instruídas para “acompanharem seus maridos”, assim como “coordenarem a casa e educarem os filhos”. Superando a tendência, as prescrições “morais” e os preconceitos, foi ensinar, escrever e pintar. A cultura, a escrita, as artes seriam, além do matrimônio e da vida familiar, os elementos fundamentais para compor a sua vida.

Em 1832, já uma balzaquiana, casou-se com o professor Denisard Hypollite Leon Rivail (1804-1869), que também havia sido educado pelo método Pestalozziano, mas na Suíça, para, juntos, passarem a trabalhar na Educação, despertando em seus alunos as inúmeras capacidades inatas deles. Tiveram reveses, dificuldades, porém de mãos dadas sempre se apoiaram. Amélie ajudou Rivail não só na Administração da Escola, como também financeiramente, em todos os empreendimentos que construíram. Nas “Cartas de Kardec” [2], recentemente catalogadas e traduzidas, são encontradas palavras amorosas trocadas pelo casal.

Nelas, o meio espírita passou a conhecer que o casal teve uma filha, adotiva. As crianças que até nós chegam, independente da geração biológica são nossos filhos, igualmente, tendo, os adultos a responsabilidade de cuidar e de amar. Mas a pequena Louise acabou falecendo em idade adolescente, conforme registro de uma carta de seu pai, Julien-Louis, lamentando a desencarnação da neta [3]. Era 1845. É quando o genitor de Amélie, que desencarnou dois anos depois, faz o seguinte questionamento: “por que uma criança que pouco viveu e não eu que já vivi muita?”.

Esta pergunta, por certo, ficou algum tempo sem resposta. O conhecimento mundano, sobretudo pelas teorias religiosas, mas também as limitações (naturais) das ciências humano-materiais, não dava respostas satisfatórias e suficientes sobre a morte. De um lado, as primeiras apenas se referiam à “vontade de Deus”, enquanto as segundas se baseavam no esgotamento dos órgãos físicos.

Nove anos depois, diante dos fenômenos mediúnicos que proliferavam na Europa e na América do Norte, com as batidas na parede [4], as mesas girantes [5], e as cestas escreventes [6], neste último caso, já com a presença de Kardec às sessões mediúnicas primitivas, o Professor francês e sua esposa Amélie começam a entender muitas das questões transcendentais e de espiritualidade, como neste trecho:

“O Espiritismo está baseado na existência de um mundo invisível, formado de seres incorpóreos que povoam o espaço e que nada mais são do que as almas dos que viveram na Terra ou em outros globos, onde deixaram os seus invólucros materiais. São esses seres que havíamos dado, ou melhor, que se deram o nome de Espíritos. Esses seres, que nos rodeiam incessantemente, exercem sobre os homens, mau grado seu, uma grande influência; desempenham um papel muito ativo no mundo moral e, até certo ponto, no mundo físico. O Espiritismo, pois, está em a Natureza e pode-se dizer que, numa certa ordem de ideias, é uma força, como a eletricidade também o é sob diferente ponto de vista, assim como a gravitação universal, igualmente” (“Revue Spirite”, maio de 1859).

Amélie e Kardec, juntos, legaram à Humanidade, uma nova forma de pensar a vida e a vida depois da vida, por meio de explicações lógico-racionais, entendendo a sistemática de correlação entre as duas ambiências, física e espiritual. A Filosofia Espírita descortina um “outro Universo”, o metafísico, espiritual ou transcendente, mas apenas aos que possuem olhos e ouvidos atentos, dispostos para estar diante de uma realidade mais ampla. Descrevendo a tarefa de ambos, não um à frente do outro, mas juntos, lado a lado, Rivail assim se pronuncia:

“Fi-lo por meu próprio movimento e minha mulher, que nem é mais ambiciosa nem mais interesseira do que eu, concordou plenamente com meus pontos de vista e me secundou na tarefa laboriosa, como o faz ainda, por um trabalho por vezes acima de suas forças, sacrificando sem pesar os prazeres e distrações do mundo, aos quais sua posição de família a tinham habituado” (“Revue Spirite”, julho de 1865).

Amélie, destarte, nunca foi a sombra nem de Rivail, nem de Kardec. Atuou sempre conjuntamente, pois era essa a sua missão, como educadora de mentes e Espíritos, de inteligências e sensibilidades. Pode-se dizer, sem nenhum assombro ou sobressalto, que ela e ele se completaram reciprocamente e os diálogos sobre Educação formal, primeiramente, e espiritual, na sequência, já na idade madura de ambos, com o “Projeto Espírita”, foram memoráveis.

De 6 de fevereiro de 1832 a 31 de março de 1869 foram trinta e três anos completos de convivência amorosa e conjugal. Como diz o adágio cristão, na homilia católica, “na saúde e na doença, na riqueza e na pobreza, amando-se e respeitando-se”. Não eram fiéis católicos, nem um nem outro, mas seguramente sua ética os levou a um casamento como fonte de carinhos, afeições, amor e companheirismo. No Capítulo IV, da Parte Terceira da obra pioneira, Kardec e os Espíritos dialogaram, na Lei de Reprodução, sobre o Casamento e, desta dialética resultou a pontual conclusão do Codificador (item 696):

“O casamento é um dos primeiros atos de progresso nas sociedades humanas porque estabelece a solidariedade fraterna e se encontra entre todos os povos, embora nas mais diversas condições”.

Mas, como nada que pertence ao mundo material é eterno, chegou o dia da despedida (físico-carnal) entre os cônjuges. O falecimento, abrupto, por uma parada cardíaca após um infarto fulminante do miocárdio – e não por um aneurisma, como muito se diz, equivocadamente a respeito da “causa mortis”, já que aquele só poderia ser demonstrado por necrópsia e o corpo rivailiano jamais foi submetido a tal procedimento – resultou, naturalmente, no entristecimento de Amélie, como acontece com todos nós que estamos em experiência encarnatória. A “dor” da saudade. Todavia, quem melhor do que a própria Filosofia Espírita para explicar acerca da morte, da separação (momentânea) de corpos e da perspectiva, logo à frente, em breve futuro, de um reencontro espiritual? Isto sem falar no fato de que, como ocorre com todos os humanos, a presença do Espírito do ente querido falecido se faz notar por sensações que o encarnado – mesmo sem ser médium ostensivo – consegue perceber.

A grande mulher, baluarte do Espiritismo, representante da Filosofia Espírita e uma das líderes da Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas (SPEE) – destaque-se, pelo fato de que o humanista Kardec sempre colocou em pé de igualdade mulheres e homens nas atividades espíritas e nas tarefas encabeçadas pela SPEE, pela Editora de seus livros e pelas atividades de intercâmbio com outros espíritas da França, da Europa e das Américas.

Fiel a seu marido, já não mais em razão dos laços matrimoniais, mas, sim, em relação ao Espiritismo, coube a ela enviar à SPEE novas normas de funcionamento: os excedentes das vendas dos livros espíritas seriam repassados integralmente ao Caixa Geral do Espiritismo. Doravante, também, a “Revue Spirite” seria aberta a artigos consonantes à Doutrina e haveria um tesoureiro para administrar os valores arrecadados com as vendas das obras espíritas.

Mas, o plano não vingou… A morte do Mestre fez emergir as vaidades, a vontade de se possuir o que nunca se construiu e um pretenso amigo foi, paulatinamente, calando a velha senhora. Lembremos que era o século XVIII e, nele, a mulher tinha sua voz ouvida muito menos do que hoje, no XXI. Sendo a herdeira natural de Kardec, não em termos do patrimônio conjugal e familiar, mas do legado kardeciano, Amélie foi seguidamente menosprezada, até ser totalmente passada para trás.

Uma dos mais destacadas provas deste alijamento da Sra. Kardec das atividades capitaneadas pela SPEE, foi a de que a “Revue” passou a conter artigos controversos e distantes do “Espírito” do Codificador e da própria Doutrina dos Espíritos. Mais que isso, as ideias espiritualistas contraditórias com os princípios e fundamentos espíritas – como as de J.-B Roustaing – calcadas no misticismo e nos dogmas religiosos passaram a figurar ao lado de artigos de companheiros de Kardec e membros da SPEE (estes, sim, consentâneos com a Filosofia Espírita).

Também “matérias pagas”, de interesse pessoal de seus autores foram veiculadas. Isto sem esquecer do escândalo decorrente da produção de falsas fotografias por aqueles que representavam e coordenavam a entidade criada por Kardec e Amélie. Neste episódio, conhecido como “O Processo dos Espíritas”, a velha senhora mais uma vez foi humilhada, inclusive pelo magistrado que conduzia o processo. Mas, Mme. Kardec prosseguiu de maneira firme e direta, defendendo seu esposo, sua memória e a Doutrina dos Espíritos”. Disse ela: “Todos os literatos adotam pseudônimos. Meu marido jamais pilhou coisa alguma”.

Marcantemente, eis mais uma prova da força incomensurável do Espírito da mulher que, mesmo na velhice, no ocaso de sua existência, mas mantendo sua personalidade, seu caráter, sua ética, não se calou e não teve medo. Deixou, assim, para as gerações futuras – e, principalmente, para nós que enaltecemos sua condição, seu trabalho, seus esforços e seu Espírito – a capacidade de continuar sua vida e deixar registrada, na História, a sua história.

À velha senhora, o nosso muito obrigada! Através de seu exemplo, nós, mulheres, também edificamos as nossas histórias, individuais e coletivas, plenas de flores, apesar de termos consciência de que todas as flores possuem espinhos. Relembrando Cecília Meireles,

“Não te aflijas com a pétala que voa, também é ser deixar de ser assim … Eu deixo aroma até nos meus espinhos, ao longe, o vento vai falando em mim e por perder-me por perder-me é que me vão lembrando, por desfolhar-me é que não tenho fim”.

De pétalas, aromas, espinhos são feitas mulheres. E também homens. Todos humanos. Todos iguais, com a necessária equidade!

E, para falar de Espiritismo com totalidade não há somente Denisard Rivail (Kardec). Há também, no mesmo degrau de importância, Amélie Gabrielle Boudet!

Por isso, de todas as mulheres, Amélie!

Justificativa:

Artigo elaborado a partir de pesquisas para a participação de Maria Cristina Rivé na programação especial de outubro/2024, do Centro Espírita Bezerra de Menezes, de Cataguases (MG), com o título “Amélie Boudet: A guardiã do legado de Allan Kardec e sua influência no Espiritismo”. O vídeo da exposição pode ser visualizado em: <https://www.youtube.com/watch?v=7g14HxGTUVI>.

 

Notas:

[1] O título do artigo é “A Grande dama ao lado de um Grande Homem”, de Maria Cristina Rivé e Marcelo Henrique, cuja referência consta abaixo.

[2] Detalhes e maiores informações, assim como acervos do Projeto Allan Kardec (Cartas), podem ser acessados em: <https://projetokardec.ufjf.br/>. Acesso em 12. Nov. 2024.

[3] Compilação de Charles Kempf, do movimento espírita francês, a partir das correspondências de Kardec. Vide referência completa, em “Fontes”.

[4] Kardec aborda a questão das batidas, enquadrando as manifestações do Século XIX, na América do Norte, em Hydesville, logo no primeiro fascículo da “Revue Spirite”, em Janeiro de 1858, na dissertação “Os médiuns julgados”.

[5] Recomendamos a leitura de “O livro dos Médiuns”, Segunda Parte, Cap. II. Das Manifestações Espíritas. Das Mesas Girantes. Itens 60 e seguintes.

[6] Também deve ser compulsado “O livro dos Médiuns”, Segunda Parte, Cap. XIII. Da psicografia. Psicografia indireta: cestas e pranchetas. Item 152 e seguintes.

 

Fontes:

ALVES, J. E. D. Dia Internacional da Mulher: Condorcet e Olympe de Gouges. “EcoDebate”. Artigo. Disponível em: <Dia Internacional da Mulher: Condorcet e Olympe de Gouges>. Acesso em 12. Nov. 2024.

KARDEC, A. “O livro dos Espíritos”. Trad. J. Herculano Pires. 64. Ed. São Paulo: LAKE, 2004.

KARDEC, A. “Revue Spirite”. Trad. Julio Abreu Filho. Supervisão de J. Herculano Pires.  São Paulo: Edicel, 1964.

KEMPF, C. A pequena Louise, filha adotiva de Rivail e Amélie. “Federação Espírita do Paraná”. Disponível em: <https://www.feparana.com.br/topico/?topico=2863>. Acesso em 12. Nov. 2024.

MEIRELES, C. 4º Motivo da Rosa. “Antologia Poética”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

RIVÉ, M. C.; HENRIQUE, M. A Grande dama ao lado de um Grande Homem. “COM Kardec”. Artigos. 18 de abril de 2024. Disponível em: <https://www.comkardec.net.br/a-grande-dama-ao-lado-de-um-grande-homem-por-maria-cristina-rive-e-marcelo-henrique/>. Acesso em 12. Nov. 2024.

SCHVARZMAN, S. Entrevista com Michelle Perrot. “Cadernos Pagu”. N. 4. Campinas: Unicamp, 1995.

 

Foto: Filme “Kardec: A história por trás do nome”, de Wagner de Assis.

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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