Deus ama os distraídos, por Manoel Fernandes Neto

Tempo de leitura: 2 minutos

Por Manoel Fernandes Neto

Em tempo de atenção pelo melhor momento, o café se mantém quente, a manteiga ficou na geladeira e só é retirada aos pedaços. Quantas migalhas de pão tem na mesa? Que pássaro é esse que canta à distância? Será que o caminhão de reciclado já passou? Em tempo de atenção, ainda estou de pijama; muitas chamadas no meu celular e notificações ignoradas… Nada me parece mais importante que saber se a empatia existe de fato em todas as situações. 

Não importa se o outro devolve na mesma dimensão o que eu faço por ele — quase nada; não tenho interesse por reciprocidade ao pequeno amor enviado ou por algum mistério existente nas coisas que não enxergo. Talvez até o outro esteja tentando me dizer algumas coisas com atos rudes.

Meu Eu Poeta devaneia em versos sem sentido, o ciclone chega sem ninguém perceber: a árvore balança vigorosamente, derruba as roupas do varal e ninguém pergunta os motivos. Desconfiamos que é o fim; um apocalipse desavisado. Pouco me interesso por um novo mundo. Vejo um quase nada gigantesco. Ruas desertas, telas acessas, livros empoeirados, CDs sem ter onde rodar, o DVD do Hair 1 ainda no plástico. 

O olhar da mulher amada me cativou há mais de 30 anos e continua a me mostrar coisas importantes que temos que prestar atenção em uma vida alucinante. Muitas vezes doce, tantas vezes aço; “o tempo é inexorável,” li no parachoque do caminhão. O vácuo inesperado não me faz mal, mas sinto falta de latidos, das corridas no quintal, da alegria na chegada.  

Sinto falta de um tempo que viver online era para poucos: mensagens cifradas, descobertas, o e-mail não respondido, a foto que demorava a carregar, a atração do faça você mesmo, as torres no chão 2, a descoberta em cada busca, o sonho da multiplicação do conhecimento, a importância do filtro solar 3.

Revejo filmes que me trazem desassombro. Revisito finais daqueles que admiro, coleciono temas em série, redescubro últimos episódios, cenas imponderáveis. Coleções variadas das mesmas emoções. O trovador Belchior canta “Pois sou uma pessoa; Esta é minha canoa; Eu nela embarco;  Eu sou pessoa; A palavra pessoa hoje não soa bem; Pouco me importa”4.

O olhar que brota é todo nostalgia, mas desvio os pensamentos e encontro as plantas no quintal, os vasos espalhados pelo alpendre, as trepadeiras infinitas em pilastras, o mato por toda parte… 

Não telegrafei ao jardineiro, não telefonei ao carpinteiro, goteiras entram pelo soquete da lâmpada. Qual o tamanho do meteoro a caminho da terra? Cientistas sabem das coisas; gosto de ouvir cientistas, gosto de ouvir discursos que não compreendo, aprecio livros difíceis, parágrafos impenetráveis. 

Lapsos são divinos. Meu saber é invenção. Meu esquecimento é dádiva. Minha desatenção é necessária e libertadora.

Notas

1- Referência ao filme Hair, de Milos Forman, 1979.

2- Referência aos atentados de 11/09/2001 que derrubou as Torres Gêmeas, em NY, marco politico e midiático dos anos 2000.

3- Referência ao vídeo viral “Wear Sunscreen”, que dominou a Internet no final dos anos 1990.

4- Música do cantor Belchior, “Conheço o meu lugar”, 1978.

 

Imagem de Dean Moriarty por Pixabay

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

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