Marco Milani
Algumas pessoas se mostram escandalizadas pela realização de análises comparativas entre as edições, pois para elas, isso macularia a memória de Allan Kardec. Podemos supor que os devotos escandalizados consideram a formação de grupos de estudos comparativos de edições um sacrilégio, pois, para eles, questionar as alterações seria duvidar da infalibilidade papal que atribuem a Kardec.
A doutrina espírita é um corpo teórico estruturado por Allan Kardec mediante as informações obtidas no intercâmbio mediúnico, seguindo-se um método racional baseado na observação e concordância entre si dos ensinamentos recebidos.
É evidente o meticuloso trabalho realizado por Allan Kardec, demonstrando sua capacidade intelectual e nobreza de caráter, angariando o devido respeito, até de contraditores de sua época.
Não só por uma questão de humildade, mas também por se tratar de ensino coletivo, Kardec atribuiu aos Espíritos a origem da doutrina, mas seu protagonismo é inegável e registrou seu nome na história.
Passados mais de 160 anos desde o lançamento de “O livro dos Espíritos”, o movimento espírita mundial segue se fortalecendo, com peculiaridades regionais, mas tendo as obras de Kardec como referência fundamental.
No Brasil, o Espiritismo adentrou em diferentes segmentos sociais e, como era de se esperar em um país predominante católico, muitas pessoas aparentam certo apego a essas tradições. Esse traço se manifesta, principalmente, em alguns novos adeptos espíritas, que de certa forma ainda refletem costumes religiosos institucionalizados e pode perdurar em alguns outros adeptos mais antigos, contribuindo para posturas sincréticas. Um desses costumes é a santificação informal de pessoas que sejam consideradas modelos de caridade e moralmente superiores.
O adepto sincrético habituado à intermediação de santos nos acontecimentos cotidianos, mesmo sem usar esse termo, considera-se devoto de Bezerra de Menezes, Chico Xavier, Maria de Nazaré, Allan Kardec e outros. Em momentos de dificuldades, apenas retiram o prefixo “santo” do nome do Espírito alvo de sua devoção e a eles dirigem súplicas, não raramente, com promessas de ações futuras mediante o atendimento de pedidos urgentes.
Tal postura devocional não impede que o adepto continue estudando e praticando o bem a si e ao próximo, entretanto, o fanatismo disfarçado de devoção pode prejudicar o exercício da fé raciocinada, uma das bases do espiritismo. Um exemplo recorrente é o devoto que acha uma heresia questionar o conteúdo da mensagem de algum Espírito famoso recebida por um médium igualmente popular, pois o médium “filtraria” qualquer mensagem menos edificante e a comunicação sempre seria de elevado teor moral e verdadeira, mesmo que contrariasse o ensino dos Espíritos apresentados nas obras fundamentais.
Outro exemplo de fé cega é a atribuição da infalibilidade “papal” à pessoa de Allan Kardec, de maneira oposta ao que o próprio mestre lionês sempre demonstrou.
A honestidade intelectual de Kardec em momento algum desejou que os espíritas o vissem como detentor da verdade absoluta. Ele mesmo revisou e desenvolveu conceitos e aspectos doutrinários já publicados e até retificou afirmações que fizera.
Um exemplo é o fenômeno da possessão. Demonstrando o compromisso com a verdade, Kardec afirmou:
“Dissemos que não havia possessos no sentido vulgar do vocábulo, mas subjugados. Mudamos de opinião sobre essa afirmativa absoluta, porque agora nos é demonstrado que pode haver verdadeira possessão, isto é, substituição, posto que parcial, de um Espírito encarnado por um Espírito errante” (Revista Espírita, Dez/1863, Um caso de possessão: Senhorita Júlia).
Em 2017, após a publicação do livro “O Legado de Allan Kardec”, por Simoni P. Goidanich, a obra “A Gênese” atraiu a atenção de diversos pesquisadores que se debruçaram sobre as alterações ocorridas na 5ª edição, publicada após a desencarnação de Kardec. Vários grupos de estudos foram formados para se analisar comparativamente as edições, a fim de se verificar eventuais impactos na compreensibilidade do texto e dos conceitos tratados. Um desses grupos, o qual produziu um relatório sintético sobre as alterações, foi organizado pela União das Sociedades Espíritas do Estado de São Paulo (USE-SP) e disponibilizou publicamente o respectivo documento [1].
Dentre os capítulos de “A Gênese”, foram identificados alguns itens cuja edição original foi apontada por parcela dos estudiosos como mais adequada para se abordar aspectos doutrinários do que as respectivas alterações ocorridas na 5ª edição. Outros estudiosos não apontaram diferenças significativas e alguns chegaram a apontar melhorias. No relatório final do grupo de estudos da USE-SP, destaca-se a recomendação para que cada adepto compare e verifique por si mesmo as alterações, sem qualquer imposição de preferência.
Interessante fato, entretanto, foi notado. Algumas pessoas se mostraram escandalizadas pela realização de análises comparativas entre as edições, pois para elas, isso macularia a memória de Allan Kardec. Podemos supor que os devotos escandalizados consideram a formação de grupos de estudos comparativos de edições um sacrilégio, pois, para eles, questionar as alterações seria duvidar da infalibilidade papal que atribuem a Kardec.
Apesar das resistências, o Espiritismo progride e continua incentivando a fé raciocinada e a prática do bem. Sigamos!
Nota do Autor:
[1] Disponível em: https://usesp.org.br/wp-content/uploads/2020/11/Relatorio-Final-GVE-2020.pdf
Nota do ECK:
Artigo originariamente publicado no jornal “Correio Fraterno”, edição n. 498, de março/abril de 2021 e reproduzido no blog “Educador Espírita”. Por sua relevância e atualidade, o Conselho Editorial considera oportuníssima a sua republicação nesta edição.
Imagem de rbrudolph por Pixabay