Diversidade, por Milton Medran Moreira

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Milton Medran Moreira

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Não deve, assim, causar mal-estar a existência, no meio espírita, de diferentes enfoques do paradigma espírita, assumidos por grupos que se fortaleceram na última década e que, mesmo, eventualmente, fora dos centros espíritas e suas estruturas hierárquicas, alimentam e revigoram o pensamento espírita valendo-se, preferencialmente, da moderna comunicação eletrônica. A eles deve-se a eclosão de um novo e interessante capítulo da história do Espiritismo.

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Tenho visto companheiros espíritas muito preocupados. A causa vem de anos. Mas, dois fatores bastante recentes terminaram por ampliá-la exponencialmente: a pandemia e o consequente debate maciço de ideias via redes sociais.

Nasceu daí e se intensificou a diversidade de interpretações acerca de aspectos de certa relevância doutrinária. Enquanto o Espiritismo foi tido e organizado como um movimento praticamente monolítico, com um sistema federativo “oficial” a ditar normas de organização e interpretações doutrinárias, divulgadas como orientações emanadas “do Alto”, parecia reinar a paz. Havia algumas dissidências, que corriam marginalmente e eram apontadas como obra das “trevas”, vinda dos “inimigos internos no Espiritismo”. Mas eram quase invisíveis e inaudíveis pela grande massa formadora da “religião espírita”.

Kardec era, então, uma referência bastante remota, estudado por alguns “intelectuais”, distanciados do “Espiritismo cristão e evangélico”, alimentado e sustentado este pela produção mediúnica de um ou dois médiuns, intérpretes do pensamento de dois ou três Espíritos de forte impregnação católica.

A Descoberta de Allan Kardec

Tudo começou a mudar com a implantação dos programas de estudos nas casas espíritas.

Mesmo que, nas cartilhas oficiais, fossem recomendadas preferencialmente fontes de estudos provindas da mediunidade “à brasileira”, modelo “emmanuelino”, “andreluizista” e “bezerrista”, era impossível, num estudo sério, patrocinado pelas federações, deixar de lado os pressupostos básicos de Kardec. Uma mensagem mediúnica de Chico Xavier, atribuída a Bezerra de Menezes, propunha, então: “Kardequizar é a legenda de agora”, como a anunciar uma nova etapa para o Espiritismo brasileiro, a partir dos pressupostos básicos de seu fundador.

O movimento espírita qualificou-se com a “descoberta” de Allan Kardec. Mas, ao mesmo tempo, passou-se a atribuir a ele uma aura de infalibilidade. Expressões como “todo o Espiritismo está em Kardec” ou “fora de Kardec não há Espiritismo” fortalecerem os grupos da chamada “ortodoxia kardeciana”. Escritores lúcidos e conferencistas ilustres corajosamente criticavam a produção mediúnica, de caráter evangélico, tão abundante em nosso meio, mas não ousavam criticar Kardec. Dir-se-ia, hoje, que “passavam pano” em eventuais incongruências kardecianas, evidenciadas pelo avanço do conhecimento ou evolução cultural, social e política.

Quando a CEPA, em seu Congresso do ano 2.000, em Porto Alegre, acenou com a indagação: “Deve o espiritismo atualizar-se? ”, abriu-se uma nova e promissora fase ao movimento.

Atualizar o Espiritismo implicaria não apenas em contextualizar a obra de seu fundador, escrita em meados do Século 19, como também apontar eventuais equívocos, incompatíveis com a cultura e os conhecimentos atuais. Tratando-se de uma obra humana, fruto do diálogo entre a humanidade encarnada e humanidade desencarnada, é evidente que não conteria ela toda a verdade. Seus princípios fundamentais, muito bem deduzidos na literatura kardeciana, escorados na “lei natural, eterna e imutável”, exigiam, no entanto, permanente adaptação à evolução do conhecimento. A lei natural tem diversificadas aplicações e diferentes níveis de compreensibilidade no tempo e no espaço.

Um novo paradigma de conhecimento

O Espiritismo, bem visto, propõe um novo paradigma de conhecimento, a partir da realidade do “Espírito”, definido na questão 23, de “O livro dos Espíritos” como “princípio inteligente do universo”. Sua abrangência, pois, tem a dimensão do universo. Tal amplitude torna possível diferentes formulações, a partir de diversificadas perspectivas.

Não deve, assim, causar mal-estar a existência, no meio espírita, de diferentes enfoques do paradigma espírita, assumidos por grupos que se fortaleceram na última década e que, mesmo, eventualmente, fora dos centros espíritas e suas estruturas hierárquicas, alimentam e revigoram o pensamento espírita valendo-se, preferencialmente, da moderna comunicação eletrônica. A eles deve-se a eclosão de um novo e interessante capítulo da história do Espiritismo.

Vale, ali, a crítica ao próprio Kardec, preservando-se e revalidando-se, embora, os princípios da filosofia que nos legou. Kardec nos autorizou a tanto. Mais do que isso: estimulou que seus pósteros atualizassem e contextualizassem sua obra, à luz do progresso das ideias e pelo exercício do livre pensamento. É isso, fundamentalmente, que nos diferencia das religiões. E é justamente a essa postura que está condicionada a própria sobrevivência do Espiritismo.

Inconformismo

Uma proposta paradigmática da dimensão do Espiritismo não cabe, assim, numa fôrma na qual o prenderam, por décadas, notadamente no Brasil, onde se desenvolveu sua perspectiva “cristã e evangélica”. Era natural que surgissem e se ampliassem, graças, principalmente, à explosão das redes sociais, pessoas e grupos “inconformados”. Isto é: aqueles cujas ideias não mais cabiam na fôrma onde o acomodaram.

Esses grupos podem não constituir um segmento monolítico, mas seus integrantes são livre-pensadores, terreno, onde diferentemente do universo dos crentes, está situado o espiritismo. Eles delineiam, quiçá, o futuro do Espiritismo que, como teoriza Marcio Sales Saraiva, em “Espiritismo hoje: breve introdução” (Editora Comenius, 2024) “talvez não tenha o nome ‘espiritismo’ e as referências explícitas a Allan Kardec sejam ralas e distantes”. Entretanto, como ainda assinala Saraiva, temas como “Deus […], reencarnação, comunicações extrafísicas, pluralidade de mundos habitados, infinitude, relativização da morte física, terapias alternativas”, poderão “forjar um pacote de crenças e práticas para este mundo pós-religioso do século 21”.

Mesmo que assim seja, presumo eu, Allan Kardec terá um lugar de destaque nessa história.

E o Espiritismo será lembrado como a mais forte referência pela semeadura de um novo paradigma de conhecimento, em período onde o mundo ainda transitava da Idade Moderna à Contemporaneidade.

Nota do ECK:

Artigo publicado na edição de dezembro/2024 do jornal ABERTURA, do Instituto Cultural Kardecista de Santos.

 

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Postagem efetuada por membro do Conselho Editorial do ECK.

One thought on “Diversidade, por Milton Medran Moreira

  1. Excelente! A necessidade de contextualizar a obra kardeciana à luz dos avanços culturais, sociais e científicos é um dos eixos centrais do futuro espírita.

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