Leopoldina Xavier e Nelson Santos
Neste mês em que se comemora a encarnação do insigne Professor Denisard Hypollite Leon Rivail e seu imenso legado – já sob o pseudônimo de Allan Kardec – prestamos as nossas homenagens e considerações abordando um dos temas que sempre lhe foram caros: o aspecto religioso do Espiritismo. Surgido, em meio a uma imensa profusão de teorias e concepções filosóficas e científicas legadas pelo Iluminismo, assim como as decorrentes do secularismo e as manifestações dos pensadores de sua época, o entendimento Kardeciano, presente em todas as suas trinta e duas obras, sempre expôs de maneira clara e objetiva o conceito de religião.
Há no homem um desejo inato de buscar alento na interpretação derivada da religiosidade a qual, por vezes, acaba mistificando e mitificando conceitos e entendimentos. No meio espírita, isto não é diferente. Mas, com a evolução do raciocínio, o ser humano melhor compreende os conceitos de “relegere” e “religare” ou os afetos à religião e à religiosidade, culminando em diferenciar uns e outros.
Carlos de Brito Imbassahy, em seu artigo “O conceito de religião”, se apoia no conceito de que a religião moderna se religa a um Deus único e, a partir daí, compõe os seus conceitos, os rituais e as obras, enquanto que, para Kardec o Espiritismo não se adapta a esse conceito, pois não há o que religar, pois nada há separado ou distanciado. Isto não se coaduna com a proposta kardeciana que enquadra uma doutrina filosófica e de ciência experimental que valoriza a evolução permanente, sem enquadrar o dogmatismo das religiões.
Magali Bischoff, em “A diferença entre religião e religiosidade”, enaltece o legado de Herculano Pires, que através de sua vasta obra, espírita, fundamenta a diferença entre religião e religiosidade. A religião, deste modo, é formada por uma instituição com seus conceitos, dogmas, rituais; por outro lado, a religiosidade consiste no sentimento íntimo, na fé, e no vínculo com o universo espiritual. A espiritualidade desenvolve a tolerância, que deve ser praticada em relação a todas as religiões, mas permitindo a análise crítica. Em relação ao Espiritismo no Brasil, chama a atenção que, por vezes, o chamado “movimento espírita” segue o caminho “religioso” caindo numa forma “mística e vulgar” como acentua Herculano. O filósofo brasileiro ressalta, ainda, que a religião tradicional leva a um Deus solitário e sem contato com o mundo terrestre, porque projeta a pessoalidade no seguidor; já no Espiritismo, o homem está ligado ao todo, à Espiritualidade e à Humanidade, pela educação espirita que o faz vivenciar todos os fatos inerentes à sua evolução social e moral.
Em “Uma religião espírita”, Sérgio Maurício, compila conceitos de Émile Durkein e Mircea Eliade, para quem a religião consiste na relação entre dois mundos – o sagrado e o profano com seus rituais e regras de conduta. A partir deste conceito, Maurício avalia que o movimento espírita brasileiro cumpre um papel religioso por meio do ritual presente nas reuniões, na reafirmação da fé pela prece e não como algo espontâneo, natural. Mas, frise-se que, nas regras de conduta, há concordância entre o movimento espírita brasileiro e o Espiritismo, ou seja, o caminho para a transformação moral. Após essa análise, conclui ele com a fala de Kardec de que o Espiritismo não é religião, mas verifica que o movimento espírita brasileiro tem marcantes características de uma religião.
Eliseu F. Mota Jr. adentra em uma discussão espinhosa: O Espiritismo é laico ou religioso? O articulista, para responder a esta dicotomia, sugere a seguinte pergunta: o que é Espiritismo? Sustenta que, sendo o Espiritismo uma doutrina filosófica e uma experiência científica, elimina-se de pronto qualquer divergência possivelmente existente entre o “Espiritismo Laico” e o “Espiritismo Religioso”, haja vista que a essência do espiritismo não admite adjetivação.
Em uma pontual análise da contemporaneidade, Paulo R. Santos discorre sobre o aspecto do mundo profano que vive um período confuso, o que intensifica a busca por religiões. Neste contexto, cabe ao Espiritismo se adequar às novas exigências, levar o conteúdo da sua doutrina filosófica e embasada na ciência, na forma de uma comunicação leve, de entendimento acessível, não permitindo o reducionismo aos conceitos de obsessão e Karma. Porém, a adequação não pode deixar jamais de observar os princípios que regem sua doutrina para o autodesenvolvimento pessoal.
Marcelo Henrique, em “Espiritismo e Misticismo na Religião Espírita Brasileira”, tece considerações sobre o sincretismo religioso e o pensamento oriental e espiritualista presentes na ambiência espírita, o que favorece enxertias, alterações e deturpações. Tudo isto favorecido por uma literatura mediúnica descompromissada com os aspectos científicos e filosóficos do Espiritismo e, sobretudo, da fidelidade ao pensamento Kardeciano, culminando em uma contaminação por conceitos alienígenas na ambiência espírita.
Wilson Garcia, resgatando o pensamento de Herculano Pires, discorre sobre “O Espiritismo e a Religião dos Espíritos”, em seu conceito dualista – ciência e filosofia. E, através desta última e de suas implicações morais, reforçan que todo o conceito que escapar a esses ângulos está fadado ao fracasso e à distorção. Ressalta, ainda, Garcia, que o lugar das ponderações sobre a religião espírita há de ser as casas espíritas, porém, não sem as devidas considerações científico-filosóficas, tanto analíticas quanto críticas, sem as quais se corre o risco de embarcar na utopia.
Milton Medran Moreira, com maestria, em “O Espiritismo e a Religião”, aborda a contaminação do pensamento Kardeciano pelo cristianismo dogmático, desde o instante em que aportou em terras brasileiras, tornando o Espiritismo fortemente religioso. Em decorrência, adotou-se uma principiologia contrária aos postulados de Kardec, concedendo ao Espiritismo um significado que ele não possui. Imanentemente secularista e científico-filosófico, a Doutrina dos Espíritos configura uma proposta cultural dinâmica não podendo restringir-se pelas amarras religiosas.
Entendamos, pois, que os ensinos morais e espirituais de Jesus, encampados e preconizados pela família do Cristianismo e seus dogmáticos conceitos não concedem um caráter religioso e nem podem ser considerados referências à Doutrina, senão tão-somente um modelo que nos serve de referência, por melhor expressá-los.
Esperamos que os leitores apreciem os artigos citados nesse Editorial e que, pelo livre-pensamento, permitam os amplos e necessários debates.
Acesse cada texto da edição:
A diferença entre Religião e Religiosidade, por Magali Bischoff
O Espiritismo no contexto das “novas” Religiões, por Paulo R. Santos (in memoriam)
Espiritismo e Misticismo na Religião Espírita Brasileira, por Marcelo Henrique
Excelente comentário, muito esclarecedor.